segunda-feira, 14 de julho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - Os cemitérios aceitam o que lhes dão / V - Não basta a embriaguez para se ser imortal

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão

V - Não basta a embriaguez para se ser imortal
     
     No dia seguinte, quando o Sol já declinava, descobriam-se raros transeuntes do boulevard do Maine, na passagem de um carro de antigo modelo, ornado de caveiras, de tíbias e de lágrimas. Neste carro ia um caixão coberto com um pano branco, sobre o qual se via uma grande cruz preta, semelhante a uma gigante defunta com os braços pendentes. Atrás do carro ia uma berlinda levando um padre de sobrepeliz e um menino de coro de batina vermelha. Aos lados do carro marchavam dois gatos-pingados, de uniforme pardo com guarnições pretas. Atrás de tudo caminhava um velho, com o traje de trabalhador e que coxeava. O préstito dirigia-se para o cemitério Vaugirard.
     O cemitério Vaugirard constituía exceção entre os demais cemitérios de Paris.
     Tinha os seus usos particulares, pelo mesmo modo que tinha além da porta principal uma porta pequena: estas portas eram denominadas pelos teimosos, porta dos cavaleiros e porta dos peões. Como já dissemos, as bernardas-beneditinas do Petit Picpus tinham obtido licença para ali serem enterradas em lugar à parte e de noite, porque aquele terreno pertencera, noutro tempo, à comunidade. Os coveiros, tendo deste modo no cemitério serviço de tarde no verão, e de noite no inverno, estavam sujeitos a uma disciplina particular. As portas dos cemitérios de Paris fechavam-se naquela época ao pôr-do-sol, e, por determinação municipal, estava o cemitério Vaugirard sujeito ao mesmo regime. A porta dos cavaleiros e a porta dos peões eram contíguas e juntas a um pavilhão construído pelo arquiteto Perronnet, onde morava o porteiro do cemitério.
     Aquelas portas, que eram de grade, giravam, pois, inexoravelmente em seus gonzos, no momento em que o Sol desaparecia por detrás do zimbório dos Inválidos. Se neste momento algum coveiro se demorava no cemitério, não tinha para sair senão um recurso: a sua nomeação de coveiro, passada pela administração das pompas fúnebres.
     No postigo da janela do porteiro havia uma fenda como as das caixas do correio. O coveiro lançava a nomeação na caixa, o porteiro sentia cair o papel, puxava uma corda, e logo se abria a porta dos peões. Se o coveiro não tinha consigo a nomeação, dizia quem era; o porteiro muitas vezes já deitado e dormindo, levantava-se, ia reconhecer o coveiro, abria a porta e este saía, mas pagava quinze francos de multa.
     Este cemitério, com as suas originalidades fora da regra, incomodava a simetria administrativa. Em 1830 foi suprimido. Sucedeu-lhe o cemitério do Mont-Parnasse, chamado de Este, herdando a famosa taberna pegada ao cemitério de Vaugirard, que tinha em cima um marmelo pintado numa tábua e que fazia esquina de um lado para as mesas dos fregueses e do outro para as sepulturas, com esta tabuleta: Taberna do bom Marmelo.
      O cemitério de Vaugirard era o que poderia chamar-se um cemitério murcho. Ia caindo em desuso; a erva ia-o invadindo e as flores deixando-o. Os burgueses pouco apreço davam em ser enterrados em Vaugirard, porque cheirava a pobreza. No Père-Lachaise era outra coisa ser enterrado no Père-Lachaise corresponde a ter móveis de acaju. O cemitério de Vaugirard era um recinto venerável, com a forma dos antigos jardins franceses. Ruas muito direitas, grandes buxos, caniçados, etc., velhos túmulos sob velhos teixos e erva muito alta. A noite naquele recinto era trágica; aquelas linhas eram todas fúnebres.
     O sol não tinha ainda de todo desaparecido quando o carro entrou na avenida do cemitério de Vaugirard. O homem que o acompanhava coxeando era Fauchelevent.
     O enterro da madre Crucificação sob o altar, a saída de Cosette e a introdução de Jean Valjean na sala das defuntas, fora tudo executado sem qualquer estorvo.
      Digamo-lo de passagem, a inumação da madre Crucificação sob o altar da capela do convento, é para nós coisa perfeitamente venial; é uma falta das que se assemelham a um dever. As religiosas tinham-no não somente desempenhado sem perturbação, mas com aplauso de suas consciências. No claustro aquilo a que se chama «governo» não é mais do que uma ingerência na autoridade, ingerência sempre discutível. Em primeiro lugar, a regra; quanto ao código, veremos. Façam os homens quantas leis quiserem, mas guardem-nas para si. O tributo a César nunca é mais do que a sobra do tributo a Deus; um príncipe não é nada ao pé de um princípio.
     Fauchelevent coxeava contentíssimo atrás do carro. As suas duas conspirações gémeas, uma com as religiosas e outra com Madelaine; uma a favor do convento, outra contra ele, tinham obtido ótimo resultado. A impassibilidade de Jean Valjean era dessas tranquilidades poderosas que facilmente se comunicam. Fauchelevent já não duvidava do completo bom êxito. O que faltava a fazer era nada. Havia dois anos que emborrachara dez vezes o coveiro, o senhor Mestienne, um pobre homem, um bochechudo. Ria-se consigo do senhor Mestienne. Fazia dele quanto queria, e penteava o segundo a sua fantasia A cabeça de Mestienne adaptava-se ao barrete de Fauchelevent: a sua confiança era completa.
     Na ocasião em que o préstito entrou na avenida do cemitério, ia Fauchelevent tão extremamente satisfeito, que olhou para o carro e esfregou as grosseiras mãos, dizendo:

 — Não está má a farsada!

     De repente o carro parou: chegara à porta. Era necessário exibir a permissão para o enterro. O empregado das pompas fúnebres dirigiu-se ao porteiro. Durante o colóquio dos dois, que sempre ocasionou demora de um quarto de hora, apareceu um homem desconhecido, que se colocou atrás do carro, ao lado de Fauchelevent. Era uma espécie de trabalhador, com grandes algibeiras na blusa e uma enxada na mão.
      Fauchelevent encarou o desconhecido.

— Quem é você? — perguntou ele.

     O homem respondeu: 

— Sou o coveiro. 

     Se fosse possível sobreviver a uma bala de artilharia recebida no peito, far-se-ia uma careta semelhante à que fez Fauchelevent.

— O coveiro! 
— Sim, senhor! 
— Você. 
— Eu mesmo. 
— O coveiro é o senhor Mestienne. 
— Foi. 
— Como foi? 
— Foi, porque já morreu.

      Fauchelevent tudo esperava, menos que um coveiro pudesse morrer. Todavia é uma verdade: até os próprios coveiros morrem. A força de fazerem covas para os outros, abrem-nas para si mesmos.
      Fauchelevent ficou de boca aberta; teve apenas força para murmurar:

— Não pode ser! 
— Pois é assim mesmo. 
— Mas — tornou ele com voz muito fraca — o coveiro é o senhor Mestienne. 
— Depois de Napoleão, Luís XVIII; depois de Mestienne, Gribier. Eu chamo-me Gribier.

     Fauchelevent, empalidecendo, contemplou Gribier.
     Era um homem alto, magro, lívido, completamente fúnebre. Tinha ar de médico infeliz, metamorfoseado em coveiro.

— Ah! Ah! Sempre acontecem coisas mais ratonas! — exclamou Fauchelevent, desatando às gargalhadas. — Ora, o senhor Mestienne morreu! Adeus! Morreu o tiozinho Mestienne, mas ficou o tiozinho Lenoir! Você sabe quem é o tiozinho Lenoir? É o cantarinho do belo vermelho. É o cantarinho do Suresne, do verdadeiro Suresne de Paris! Ah! com que então o Mestienne morreu! Tenho pena, porque era um velho patusco. Mas você também não lhe fica atrás, não é assim, camarada? Daqui a bocado havemos de ir ambos beber uma pinga.

      Porém, o homem respondeu:

— Eu estudei. Tenho o quarto ano. Beber é coisa que não uso.

     A este tempo tinha-se de novo posto a caminho o carro, rodando pela álea principal do cemitério. 
     Fauchelevent afrouxara o passo. O pobre homem coxeava mais ainda por causa da ansiedade em que ia do que por causa do aleijão que padecia. 
     Adiante dele caminhava o coveiro, o inesperado Gribier, que Fauchelevent passou outra vez em revista. 
     Era um desses homens que são novos e têm aparência de velhos, que são magros, mas dotados de grande força.

— Camarada! — gritou Fauchelevent.

     O homem voltou-se.

— Eu sou o coveiro do convento.

      Fauchelevent, que, conquanto não fosse erudito, era dotado de extrema finura, conheceu que tratava com uma espécie temível, com um bem-falante.

— Com que então o senhor Mestienne morreu? — murmurou ele. 
— Completamente — respondeu o homem. — Deus consultou o seu livro de assentos, viu que era chegada a vez do senhor Mestienne e o senhor Mestienne morreu. 
— Deus... — repetiu Fauchelevent maquinalmente. 
— Deus, sim — repetiu o homem com autoridade. — Para os filósofos o Padre Eterno; para os jacobinos o Ser Supremo. 
— Então nós não havemos de ficar conhecidos? — balbuciou Fauchelevent. 
— Conhecidos já nós somos. Você é um campónio e eu sou parisiense. 
— Ora, adeus! A gente não se conhece enquanto não bebe de companhia alguns tragos. Quem abre as goelas para beber, abre o coração para falar. Há de vir beber comigo. A isto não há de dizer que não. 
— Em primeiro lugar está a minha obrigação.

     Fauchelevent reflectiu e disse consigo: «Estou perdido».
     Restavam apenas alguns passos para chegar ao sítio onde as religiosas tinham o privilégio de ser enterradas.
     Após alguns instantes de silêncio, o coveiro continuou:

— Meu homem, eu tenho de sustentar sete rapazes. Para eles comerem é preciso que eu não beba. — E acrescentou com a satisfação de um homem que profere uma frase bonita: — A fome deles é inimiga da minha sede.

      O carro deu volta por uma moita de ciprestes, deixou a álea principal, tomando por outra lateral e deitou por um matagal, o que indicava a proximidade imediata da sepultura. Fauchelevent afrouxava o passo, mas não podia afrouxar o andar do carro.
      Felizmente, como a terra era movediça e estava molhada com as chuvas do inverno, pegava-se às rodas e não deixava rodar o carro com grande ligeireza.

— Eu sei onde há vinho de Argenteuil muito bom! — murmurou Fauchelevent, acercando-se do coveiro. 
— Homem, eu não estava talhado para coveiro. Meu pai, que era porteiro no Prytaneu, destinava-me para a literatura. Mas nem tudo corre como a gente quer. Meu pai perdeu o que tinha na Bolsa, e eu vi-me obrigado a renunciar à minha carreira literária. Contudo, ainda sou escrevente público. 
 — Mas então você não é coveiro? — replicou Fauchelevent, agarrando-se a este, na verdade bem frágil, apego. 
— Um não tira o outro. Acumulo.

     Esta última palavra não a entendeu Fauchelevent.

— Havemos de ir beber — disse ele.

      Torna-se aqui necessária uma observação. Fauchelevent, qualquer que fosse a sua angústia, oferecia de beber, mas não se explicava sobre quem havia de pagar. De ordinário, Fauchelevent oferecia e o senhor Mestienne era quem pagava. O oferecimento resultava, certamente, da nova situação criada pelo novo coveiro e era urgente fazê-la, mas o velho jardineiro deixava na sombra o proverbial quarto de hora, chamado de Rabelais. Quanto a ele, por mais impressionado que estivesse, não lhe dava cuidado saber quem pagaria.
     O coveiro, porém, prosseguiu com um sorriso superior:

— A gente precisa de comer. Por isso é que eu aceitei o cargo que tinha o senhor Mestienne. Quando qualquer chega quase a concluir os seus estudos, é filósofo. Eu, ao trabalho das mãos, acrescentei o trabalho dos braços. O meu escritório de escrevente público é na feira da rua de Sèvres. Você bem sabe, na feira dos guarda-chuvas. Todas as cozinheiras da Cruz Vermelha se dirigem a mim, quando querem arrumar as suas declarações a algum tunante. Pela manhã escrevo cartas de namoro, de tarde abro covas. A vida é assim, meu amigo.

     Cada vez, porém, mais o carro fúnebre se aproximava do lugar do seu destino.
      Fauchelevent olhava, no cúmulo da inquietação, para todos os lados em roda de si e o suor escorria-lhe da testa em grossas bagas.

— Contudo — continuou o coveiro — não se pode servir a duas amas. É-me preciso escolher; ou a pena ou a enxada. A enxada essa faz-me calos nas mãos.

     Neste momento parou o carro e da carruagem desceu o menino do coro e em seguida o padre.
     Logo após um monte de terra, sobre o qual pousava uma das rodas dianteiras do carro, via-se uma cova aberta.

— Ora aí vai principiar a comédia — disse Fauchelevent, consternado.

continua na página 416...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - V - Não basta a embriaguez para se ser imortal
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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