sábado, 12 de julho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - Os cemitérios aceitam o que lhes dão / IV - Onde Jean Valjean faz acreditar que leu Austin Castillejo

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão

IV - Onde Jean Valjean faz acreditar que leu Austin Castillejo
     
     Passos de coxo são como olhares de vesgo; nunca chegam com presteza ao alvo.
     Além de que, Fauchelevent estava perplexo. Por isso, levou-lhe um quarto de hora a chegar à barraca do jardim. Cosette já estava acordada, sentada ao pé do fogão, para onde a levara Jean Valjean. Mostrava-lhe ele no momento em que Fauchelevent entrou, o cesto do jardineiro, pendurado da parede e dizia-lhe:

— Toma bem sentido no que eu te digo, Cosette. Nós não temos remédio senão irmo-nos daqui embora, mas havemos de voltar e ficar otimamente. Aquele velho que tu viste leva-te às costas dentro daquilo e hás de esperar por mim em casa de uma senhora, onde eu hei de ir ter contigo. Mas olha bem, se não queres que a Thenardier te leve outra vez, obedece e não digas nada.
     Cosette fez um aceno de cabeça com ar grave.
     Ao rumor que Fauchelevent fez, abrindo a porta, Jean Valjean voltou-se e disse rapidamente:

— Então? 
— Tudo se arranja e nada se arranja! — disse Fauchelevent — Tenho licença para o fazer entrar, mas, antes de o fazer entrar, é necessário fazê-lo sair. Aí é que pega o carro. Lá quanto à pequena, isso é fácil. 
— Sempre a levo. 
— Irá ela calada? 
— Por isso respondo eu. 
— Mas o senhor, senhor Madelaine?

     E, após um silêncio cheio de ansiedade, exclamou:

 — Mas porque não sai por onde entrou?

      Jean Valjean limitou-se a dizer, como da primeira vez: 

— Impossível! 

     O jardineiro murmurou por entre dentes, mais falando consigo do que com Jean Valjean: 

— Ainda há outra coisa que me apoquenta mais: é ter dito que lhe deitaria terra dentro. A terra não se parece nada com um corpo, há de mexer dum lado para o outro e os homens hão de por força conhecê-lo. Bem percebe, senhor Madelaine, pode ser descoberto pela autoridade.

      Jean Valjean encarou-o e julgou-o delirante. 
      Fauchelevent prosseguiu: 

— Como di... acho há de o senhor sair? É necessário que fique tudo feito amanhã! Amanhã é que hei de apresentá-lo; amanhã é que a prioresa o espera.

     Em seguida explicou a Jean Valjean, que era a recompensa de um serviço que ele, Fauchelevent, prestara à comunidade. Que entrava nas suas atribuições tomar parte nos enterros, que era ele quem pregava os caixões, e no cemitério ajudava o coveiro.
     Que a religiosa que morrera pela manhã pedira para ser me da no caixão que lhe servia de cama e sepultada no carneiro situado por baixo do altar da capela. Que isto era proibido pelos regulamentos da polícia; mas que a defunta era daquelas a quem não se nega coisa alguma. Que a prioresa e as madres vocais esperavam executar a última vontade da finada, e que quem ficava mal era o governo. Que ele, Fauchelevent, pregaria o caixão na cela, levantaria a pedra na capela e faria descer a morta para o carneiro. Que a prioresa, para lhe agradecer este serviço, lhe admitia no convento seu irmão como jardineiro e sua sobrinha como educanda. Que seu irmão era o senhor Madelaine, e sua sobrinha Cosette. Que a prioresa dissera que lhe apresentasse seu irmão no dia seguinte, depois do enterro fingido do cemitério; mas que não poderia trazer de fora o senhor Madelaine, se o senhor Madelaine ali não estivesse; que era esta a primeira dificuldade, mas que depois desta ainda havia outra, que era o caixão vazio.

— Mas que caixão vazio é esse? — perguntou Jean Valjean. 
— O caixão da administração — respondeu Fauchelevent. 
— Qual caixão? Qual administração? 
— Quando morre uma religiosa, o médico dos mortos vem comprovar o fato. O governo manda um caixão, e no dia seguinte o carro dos defuntos e os gatos-pingados para lhe pegarem e o acompanharem ao cemitério. Pois quando vierem os gatos pingados, levantarão o caixão e conhecerão que não tem nada dentro. 
— Mas meta-lhe alguma coisa. 
— Um morto? Não tenho. 
— Não é isso. 
— Então o quê? 
— Um vivo. 
— Mas qual vivo? 
— Eu. — disse Jean Valjean.

      Fauchelevent, que se sentara, ergueu-se, como se aos pés lhe houvesse rebentado uma bomba. 

— O senhor?! 
— Porque não? 

     Jean Valjean mostrou um daqueles sorrisos que lhe apareciam no rosto, qual clarão num céu de inverno.

— Bem sabe, Fauchelevent, que quando disse: a madre Crucificação está morta, acrescentei eu: e o senhor Madelaine enterrado. Não será mais do que isto. 
— Ah, o senhor ri-se, não fala seriamente! 
— Muito seriamente. Não é preciso sair daqui? 
— Sem dúvida. 
— Não lhe disse que visse se achava também para mim um cesto com tampa? 
— E então? 
— O cesto será de pinho e a tampa um pano preto. 
— Não há de ser preto, mas sim branco. As religiosas são enterradas de branco. 
— Pois seja de branco. 
— O senhor não é um homem como os outros, senhor Madelaine.

      Ter semelhantes ideias, que não representam senão as selvagens e temerárias invenções das galés, sair das coisas pacíficas que o rodeavam, e envolver-se no que ele chamava mexericos do convento, era para Fauchelevent um motivo de espanto, igual ao que experimentaria o transeunte que visse um groenlandês pescando na enxurrada das ruas de S. Diniz.
     Jean Valjean prosseguiu: 

— Trata-se de sair daqui sem ser visto. Aqui está um meio. Mas preciso de informações. Como é que se passam estas coisas todas? Onde está o caixão? 
— O vazio? 
— Sim. 
— Está lá em baixo, no que chamam a câmara dos defuntos. Está sobre dois cavaletes e coberto com um pano mortuário. 
— Que cumprimento tem ele? 
— Seis pés. 
— Mas o que é a câmara dos defuntos? 
— É uma casa à beira da rua, com uma janela de grades para o jardim, que se fecha pela parte de fora, e que tem um postigo e duas portas: uma para o interior do convento, outra para a igreja. 
— Qual igreja? 
— A igreja que dá para a rua, a igreja de toda a gente. 
— E tem a chave dessas duas portas? 
— Não. Tenho a chave da porta que comunica com o convento; a da outra, a que dá para a igreja, tem-na o porteiro. 
— Quando abre o porteiro essa porta? 
— Unicamente quando tem de deixar entrar os gatos-pingados que vêm buscar o caixão. Apenas sai o caixão é logo a porta fechada. 
— Quem é que prega o caixão? 
— Sou eu. 
— Quem é que o cobre com o pano? 
— Sou eu. 
— Só você? 
— Além de mim e do médico da polícia, nenhum outro homem pode entrar na câmara das defuntas. Isto mesmo lá está escrito na parede. 
— Não poderá, esta noite, quando estiver tudo a dormir no convento, esconder-me nessa casa? 
— Não. Mas posso escondê-lo num cubículo que dá para ela, onde guardo os meus utensílios dos enterros e cuja chave está em meu poder. 
— A que horas virá amanhã o carro buscar o caixão? 
— Aí pelas três da tarde. O enterro é no cemitério Vaugirard, pouco antes da noite. 
— Pois ficarei escondido no tal cubículo toda a noite e toda a manhã. E de comer? Hei de ter fome. 
— Comida levo-lhe eu. 
— Em sendo duas horas pode ir fechar-me no caixão.

     Fauchelevent recuou espantado, fazendo estalar os ossos dos dedos. 

— É impossível! 
— O quê! Impossível pegar num martelo e pregar uma tábua?

     O que parecia inaudito a Fauchelevent, era da maior simplicidade para Jean Valjean, que atravessara muito piores estreitos. Quem quer que tenha estado preso, sabe a arte de se encolher segundo o diâmetro das evasões. O prisioneiro é sujeito à fuga como o doente à crise, que o mata ou que o salva. Uma evasão é uma cura. O que é que o doente não aceita para se restabelecer? Fazer com que o pregassem e conduzissem num caixão, como qualquer mercadoria, viver por muito tempo numa boceta, ter ar onda o não há, economizar a respiração durante horas inteiras, saber abafar sem morrer, era um dos sombrios talentos de Jean Valjean.
     No fim de contas, se um caixão levando dentro uma pessoa viva, é expediente de forçado, é também expediente de imperador. Se dermos crédito a Austin Castillejo, foi este o meio que Carlos V, querendo, depois da sua abdicação, ver pela última vez a Plombes, empregou para a fazer entrar e sair no convento de S. Justo.
      Fauchelevent, passado o primeiro momento de espanto, exclamou: 

— Mas como há de arranjar-se para respirar? 
— Hei de respirar. 
— Dentro do caixão Eu sinto-me sufocado só por pensar nisso.  
— O senhor tem por força uma verruma; faça com ela alguns furos no lugar da boca e depois pregará a tábua sem a unir. 
— E se tiver vontade de tossir ou de espirrar? 
— Quem foge nunca tosse nem espirra.

      E Jean Valjean continuou: 

— Senhor Fauchelevent, é preciso tomar-se uma decisão; ou hei de ser apanhado aqui, ou hei de sair no carro.

      Não há ninguém que haja notado o prazer que têm os gatos em brincar entre os dois batentes de uma porta cerrada. Quem não tem dito a um gato: Pode entrar! Há homens que, num acidente entreaberto diante deles, têm pelo mesmo modo pronunciada tendência para ficar indecisos entre duas resoluções, mesmo correndo o risco de serem esmagados pelo destino, que pode fechar de repente a aventura. Os demasiadamente prudentes, gatos como são, e mesmo porque o são, correm muitas vezes maior perigo do que os audazes. Fauchelevent pertencia a este gênero hesitante. Todavia, o sangue-frio de Jean Valjean ia-o, a seu pesar, dominando de tal modo, que o obrigou a murmurar:

— Com efeito, não há outro meio. 
— A única coisa que me inquieta, é o que sucederá no cemitério. 
— Isso é que me não dá cuidado! — exclamou Fauchelevent. 
— Se o senhor tem a certeza de sair bem do caixão, da cova tiro-o eu sem dificuldade. O coveiro é meu amigo e gosta muito de vinho. É o senhor Mestienne, um velho doutro tempo. Eu lhe digo o que se passará. Chegar-se-á um pouco antes do sol posto, três quartos de hora antes de se fechar o cemitério. O carro rodará até à cova e eu irei atrás; é a minha obrigação. Levarei na algibeira um martelo, uma tesoura e uma turquês. O carro parará e os gatos-pingados, passando uma corda em volta do caixão, fá-lo-ão descer para a cova. O padre recita as orações e faz o sinal da cruz, lança a água benta e safa-se Mestienne, como já lhe disse, é meu amigo. De duas coisas uma, ou ele está atestado ou não; se não está atestado, digo-lhe: venha daí, vamos beber uma golada; o bom Marmelo está ainda aberto. Levo-o comigo e emborracho-o; o senhor Mestienne custa pouco a emborrachar, está sempre em princípio, deito-o debaixo da banca, tiro-lhe o bilhete para entrar no cemitério e volto ali só. Depois o senhor tem que se haver comigo. Se ele, pelo contrário, está pesado, digo-lhe: vai-te embora, que eu arranjo tudo. Ele vai-se e eu tiro-o do buraco.

     Jean Valjean estendeu-lhe a mão, que Fauchelevent apertou com enternecedor e campesino entusiasmo. 

— Está combinado. Tudo se há-de fazer em bem. 
— Contanto que a coisa se não transtorne. Se isto tudo se tornasse terrível...

continua na página 416...
______________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________


Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - IV - Onde Jean Valjean faz acreditar que leu Austin Castillejo
_______________________
  
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Nenhum comentário:

Postar um comentário