quarta-feira, 2 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (7b) - O príncipe parou

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

7.

continuando...

     O príncipe parou para tomar fôlego pois argumentara com incrível precipitação. Estava pálido e sem ar. O velho dignitário, depois que todos se entreolharam, deu um largo sorriso. O Príncipe N... tirou os óculos, pondo-se sem eles a observar Míchkin por algum tempo. Por sua vez o poeta alemão, saindo do seu canto, se aproximou da mesa, um sorriso hostil nos lábios, com ar de querer prolongar assunto tão inédito. Nisto, com afetação de quem se sente desconsiderado diante de tamanha desenvoltura, Iván Petróvitch disse vagarosamente:

- Mas como o senhor está exagerando! Existem representantes dessa igreja que não somente são virtuosos como até mesmo merecedores de todo o nosso respeito!
- Não estou falando contra os representantes individuais da igreja. Estou falando da essência do catolicismo romano. Estou falando de Roma. Como haveria uma igreja toda de desaparecer? Nunca disse isso!
- Estou de acordo. Trata-se de fato bem conhecido. De assunto, com efeito, aqui, inadequado e inconveniente, agora. De mais A mais, é uma questão puramente teológica...
- Oh! Não, não! Não é uma questão apenas teológica, posso afiançar-lhe. Interessa-nos muito mais intimamente do que o que o senhor julga. O erro está justamente em não sabermos ver que não se trata de uma questão teológica, exclusivamente! Foi precisamente como desespero, como oposição ao catolicismo que o ateísmo nasceu, com uma função ética para substituir a força moral perdida da religião. Para extinguir a sede espiritual da humanidade abrasada e então salvá-la a seu modo, não através de Cristo, mas pela violência. Ora, também isso não passa de tentativa de liberdade por intermédio da violência! Também isto outra coisa não é senão a união feita com a espada e o sangue. “Não ouseis ter crença em Deus! De que adianta ter propriedades e individualidade! Fratermité ou la mort! Dois milhões de cabeças!” Pelas suas obras os convenceremos, já foi dito. E não acredite o senhor que tudo isso não tenha um alvo, que tudo isso não constitua um perigo. Oh! É preciso resistirmos, imediatamente, já! Aquele Cristo que conservamos intato, o nosso Cristo, e que eles não conheceram nunca, deve brilhar diante de todos e vencer o Ocidente! Não deixemos que as forças dos jesuítas nos escravizem! Levemos a nossa civilização russa até eles, enfrentemo-los, e não consintamos que seja dito diante de nós, como ainda agora foi, que a sua pregação é mais sagaz e mais proficiente. 
- Mas me permita um instante.., um instante! - retrucou Iván Petróvitch, cujo espanto crescia à medida que olhava para o príncipe positivamente com receio. Todas essas suas ideias são muito valiosas e demonstram patriotismo, mas tudo isso está exagerado ao extremo e... com efeito, seria melhor desistirmos de...
- Exagerado em quê? Eu não disse tudo, absolutamente; não disse tudo pois me faltam os termos mediante os quais possa...
- Per-mi-ta-me...

     Sentando-se de chofre na cadeira, o príncipe parou de falar, encarando com olhar fixo e fervente Iván Petróvitch.

- A minha impressão é que o amigo se deixou afetar pelo que aconteceu ao seu benfeitor – observou indulgentemente o velho dignitário em tom calmo e inalterável. - Esse seu temperamento ardoroso deve provir da sua solidão. Se vivesse mais entre as pessoas, e visse um pouco mais o mundo, espero que chegaria a ser um notável moço. Se não tivesse crescido assim tão irritável, veria como tudo isso é muito mais simples. E acabaria reconhecendo, ainda por cima, como eu reconheci, que esses casos excepcionais são devidos, por uma parte, por estarmos blasés, por outra parte por estarmos aflitos...
- Justamente, justamente! - aplaudiu Míchkin. - Esplêndida ideia! Tudo isso advém da nossa estupidez, de uma grande estupidez nossa. Não por sermos blasés. Muito ao contrário. Pela nossa insatisfeita sofreguidão, e não por sermos blasés. Nisso o senhor está errado. Não só, simplesmente, pela nossa sofreguidão insatisfeita, mas por esta abrasadora, sufocante sede. E não se diga que a diferença é assim tão diminuta que dela nos possamos rir. Desculpe-me, mas essas coisas devem ser olhadas de frente. Logo que os russos sentem o chão sob os pés e se convencem que é chão, ficam tão contentes de o terem atingido que não param mais, vão aos limites mais avançados. Por que será? O senhor se surpreendeu com Pavlíchtchev e deu como causa, da parte dele, loucura ou simplicidade. Mas não foi uma coisa nem outra. A intensidade russa é uma surpresa não só para nós, como para a Europa inteira. Se um de nós se torna católico, automaticamente vira jesuíta e dos mais inabaláveis. Se se torna ateu, não cessará nunca de clamar pela extirpação da crença em Deus, através da força, isto é, pela - espada. Por que é isto? Por que este frenesi? Precisamos descobrir: o motivo. Seria porque encontrou a pátria que tinha perdido aqui?: Ele atingiu o litoral, descobriu a terra e investe para beijá-la. Os. ateus russos, da mesma maneira que os jesuítas russos, são os exilados não só da vaidade, não só de um mau e vão sentimento, mas também de uma agonia espiritual, de uma sede interior, a fome por uma coisa mais alta, a rota firme rumo a uma outra pátria já que deixaram de crer nesta porque nunca chegaram a conhecê-la. É mais fácil um russo se tornar ateu, do que qualquer outra pessoa no mundo. E os russos não só se tornam ateus, como acreditam invariavelmente no ateísmo, como em uma nova religião, sem reparar que estão pondo a sua fé a serviço de uma negação. Tão grande é a nossa fome! “Quem não tem raízes debaixo de si, não tem Deus!” Não sou eu que o estou dizendo! Foi dito por um mercador e Velho Crente que encontrei certa vez em viagem. Na verdade, as suas palavras não foram estas. O que ele disse, foi: “O homem que renunciou à sua pátria, renunciou ao seu Deus!” Corre entre nós que muita gente altamente educada se filia à seita dos Flageladores. Ora, pergunto, será isso pior do que o ateísmo, o jesuitismo ou niilismo? Não será, antes, um pouco mais profundo? Pois foi ao que os levou a sua agonia. Revelado aos sôfregos e febris companheiros de Colombo o “Novo Mundo”, revelemos ao russo o “mundo” da Rússia, deixemo-lo descobrir o ouro, o tesouro. escondido dentro da terra! Mostremo-lhe a humanidade inteira levantando-se outra vez renovada pelo pensamento russo tão somente, talvez pelo Deus e pelo Cristo russo, e veremos em que poderoso e verdadeiro gigante, belo e sábio, ele se desenvolvera diante dos olhos do mundo atônito! Atônito e pasmado, porque não esperava de nós senão a espada! Senão a espada e a violência, porque, julgando-nos por eles próprios, não nos podiam conceber livres da barbárie. Sempre foi assim até aqui e continuará sendo, cada vez mais! E...

     Mas, a esta altura, aconteceu um incidente que cortou de pronto a eloquência do locutor, da maneira mais inesperada. Este período desordenado, este rasgo de estranhas e agitadas palavras e de entusiásticas ideias confusas que pareciam tropeçar umas nas outras, pareciam indicar, todas elas, algo da ominosa condição mental desse jovem que, a propósito de uma nonada, se pusera nesse estado assim tão inesperadamente. 
     Dentre os presentes, aqueles que conheciam o príncipe, se encheram de apreensões (e alguns até ficaram contrafeitos) ante essa explosão que não era de esperar, dada a sua habitual timidez e notório acanhamento, ou melhor, dado o seu raro e especial tato diante de certos casos, pois tinha um sentimento instintivo das conveniências reais. Não puderam entender o motivo a que era devido isso. O que lhe tinham contado a respeito de Pavlíchtchev não podia ter sido a causa.
     Lá dos seus lugares as damas o contemplavam crentes de que estava fora do seu juízo. E a Princesa Bielokónskaia confessou depois que estivera até para se retirar. Os senhores de idade ficaram desconcertados, em seu primeiro espanto. O diretor de seção olhou-o, lá do seu canto, de um modo carrancudo e antipático. O coronel de engenharia permaneceu em absoluta imobilidade. O alemão empalideceu, mas, sorrindo um sorriso artificial, observou toda aquela gente a ver que efeito estava sentindo.
     Mas tudo isso, se escândalo houve, em outra circunstância teria terminado de maneira comum. O General Epantchín, que estava extremamente estupefato, compreendera a situação muito antes dos demais e fizera diversas tentativas para que o príncipe parasse. Os seus esforços tendo falhado, dirigiu-se em pessoa, para o príncipe, com firme e resoluto desígnio e, se houvesse tido tempo, um minuto só que fosse, teria tomado a extrema solução de levar Míchkin para fora do salão, de maneira amistosa, pretextando achar-se ele doente, o que bem poderia talvez ser verdadeiro, estando o general, no íntimo, convencido disso...
     Mas a cena acabou de um modo muito outro.
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (7b) - O príncipe parou 
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