segunda-feira, 14 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (9a) - Tinham-se passado quinze dias

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

9.

.     Tinham-se passado quinze dias, desde os acontecimentos narrados no último capítulo, e a situação dos personagens que lhes dizem respeito estava tão completamente mudada que nos é difícil continuar a nossa história sem algumas explicações. No entanto nos temos de restringir, o mais possível, à declaração singela dos fatos, e por uma razão muito simples: porque defrontamos com muitas dificuldades, em vários pontos, ao querermos explicar quanto ocorreu.
     Tal declaração de nossa parte deve parecer muito estranha e obscura para o leitor que tem o direito de perguntar por que nos pusemos a descrever aquilo de que não tínhamos uma ideia clara ou uma opinião pessoal. Evitando colocar-nos em uma posição ainda mais falsa, preferimos dar um exemplo, mercê do qual o leitor bondosamente compreenderá a nossa dificuldade. Tentaremos, até, fazer com que esse exemplo não quebre a sequência da narrativa, tornando-se, antes, mera continuação dela.
     Quinze dias antes, isto é, no começo de julho, a história do nosso herói, e, de um modo mais particular, o último incidente dessa história, se foi transformando no escândalo do ano, dada a sua estrutura estranha, divertida e até mesmo solene, espalhando-se gradualmente pelas ruas contíguas às vilas de Liébediev, Ptítsin Dária Aleksiéievna, atingindo a casa dos Epantchín, ultrapassando, a seguir, a cidade, e se desfigurando nos distritos vizinhos. Quase toda a sociedade que se aglomerava na praça, habitantes, veranistas” e povo, que se reuniam para escutar a banda, glosavam esta história, através de mil variações. 
     De como um príncipe, depois de ter causado um escândalo em uma família muito conhecida e distinta, namorando uma formosa moça dessa família e chegando até a ficar noivo, se deixava cativar por uma conhecida cocote, e, rompendo com todos os amigos, indiferente a tudo, desdenhando ameaças, zombando da indignação popular, resolvera, poucos dias depois, olhando todo o mundo de cabeça erguida, casar-se ali mesmo em Pávlovsk, franca e publicamente, com essa mulher de passado ignominioso. A história tornou-se tão ricamente adornada de escandalosas minúcias, tantas e tão distintas pessoas tomaram parte nela, tão fantásticas e enigmáticas evidências foram dadas, e por outro lado, foram apresentados fatos tão concretos e tão incontestáveis que a Curiosidade geral e a tagarelice não podiam deixar de ser desculpáveis.  
     Verdade é que os comentários promanavam da mais múltipla, sutil e engenhosa interpretação. E promanavam - isso lhes dando maior probabilidade! - dessa gente sensível que, em todas as classes da sociedade, transforma a sua vocação em consolo, apressando-se sempre em explicar tudo aos vizinhos. Segundo a versão dessa gente, um jovem de esplêndida família, um príncipe quase rico, mas louco e democrata, dera guarida em seu cérebro ao niilismo contemporâneo revelado pelo Senhor Turguénev. Embora não sabendo quase uma só palavra de russo, se apaixonara pela filha do General Epantchín, conseguindo ser aceito pelo noivo, pela família.
     Mas, como certo francês daquela história que os jornais recentemente tinham publicado (que depois de consentir que o sagrassem sacerdote, voluntariamente, tendo recebido as ordens, e se sujeitado a todo o cerimonial de reverências, orações, ósculos e votos, acabara, no dia seguinte, para informar, publicamente, ao bispo, em cartas mandadas aos jornais liberais, que não acreditava em Deus e que por considerar desonroso enganar os fiéis, e deles receber considerações sem motivo, renunciava à batina!), como esse francês ateu, o príncipe também fingira e representara!
      Chegaram a afirmar que ele esperou, de propósito, pela recepção formal, dada pelos pais da moça para participarem o noivado (recepção essa em que fora apresentado a muitos personagens distintos), para declarar alto e bom som, diante de todos, que julgava leviandade venerar velhos dignitários, renunciando, a seguir, e de modo insultuoso, ao noivado. E que, depois, em luta com os lacaios que o punham para fora, quebrara um magnífico vaso da China. E assim, mais uma vez ficaria patenteada mais uma das características e tendências da época, pois não havia dúvida de que o desmiolado jovem estava apaixonado pela noiva - a filha de um general - mas renunciara simplesmente por causa do niilismo. E ainda por cima resolvera levar o escândalo mais adiante, determinando-se a casar com uma mulher perdida, somente para comprovar, com isso, à vista de todo o mundo, que a sua convicção era que não havia mulher perdida nem mulher virtuosa, todas elas sendo iguais e livres! Que a antiga divisão não merecia crédito! E que aos seus olhos uma mulher perdida era superior a uma que não fosse perdida!
     Tais versões, parecendo extremamente prováveis, foram aceitas pela maioria dos veranistas e mais prontamente à medida que os fatos diários lhes davam azo. Garantiram que a pobre moça adorava tanto o noivo - no dizer de alguns, seu sedutor - que no dia em que a abandonou correu a encontrá-lo, deparando com ele nos braços da amante. Outros asseguraram, ao contrário, que a coitada fora propositadamente atraída por ele à casa da amante, por causa ainda do niilismo que é a doutrina que timbra em envergonhar e insultar. De todos esses rumores resultou um interesse cada dia mais crescente, culminando quando se veio a saber que o incrível casamento realmente ia ser o desfecho.
     E agora, se nos pedissem uma explicação, não quanto à significação niilista do incidente, oh! Não!, mas até que ponto o casamento proposto satisfazia aos desejos reais do príncipe, e quais eram esses desejos nessa ocasião, definindo a condição espiritual do nosso herói, teríamos dificuldade em responder. Só podemos dizer uma coisa: que o casamento, de fato, foi combinado e que o próprio Míchkin autorizou Liébediev, Keller e um amigo de Liébediev, apresentado por este nessa emergência, a empreender todas as providências necessárias, tanto as religiosas, como as seculares, sendo-lhes recomendado não poupar dinheiro, pois Nastássia Filíppovna insistia na urgência. Que Keller conseguira ver atendido o seu ardente desejo de ser escolhido como padrinho, enquanto Burdóvskii, escolhido para assumir o mesmo papel por parte de Nastássia Fillíppovna, aceitara evidenciando entusiasmo.
     O casamento estava marcado para o começo de julho. E não foram só estes os informes autênticos. Outros fatos foram por nós sabidos, e, por estarem em contradição direta com os precedentes acima narrados, atrapalham os nossos cálculos. Desconfiamos, por exemplo, que, depois de ter autorizado Liébediev e outros a acelerar todos os preparativos, horas depois o príncipe parecia ter esquecido o casamento, os padrinhos e as cerimônias, sendo mais razoável pensarmos que justamente incumbiu urgência e cuidados a outrem para evitar pensar ele próprio no fato, apressando assim o esquecimento.
     No que estaria ele pensando simultaneamente com isso? Que era que não conseguia esquecer? Com o que estava lutando? Também não resta dúvida de que não houve coação da parte de Nastássia Filíppovna, muito embora tivesse sido ela quem pensara no casamento e dera a entender a sua urgência, de Míchkin partindo, sem dúvida um imediato acordo. (Mas uma espécie de acordo casual, como se o que lhe era sugerido fosse um pedido comum.)
     Esses fatos estranhos pululam diante de nós, mas, em vez de clarearem as coisas, tornando-as compreensíveis, positivamente as obscurecem, tornando absurdas as explicações tomadas onde quer que o sejam.
     Passemos a outro exemplo.
     Ficou notório, como coisa verdadeira, que durante essas duas semanas o príncipe passava os dias inteiros em casa de Nastássia Filíppovna, sendo levado por ela a passear e a ouvir música. Que era visto na carruagem, acompanhando-a, todos os dias. Que uma só hora sem vê-la, o inquietava (indícios de amor sincero). Que, todavia, quando ela falava com ele, ficava a escutá-la com um sorriso indulgente e sutil, sem, porém, durante essas longas horas, dizer quase nada.
     Também se veio a saber que, no decorrer daqueles dias, fora muitas vezes à casa dos Epantchín, não o tendo feito às escondidas de Nastássia Filíppovna, sabendo embora que isso a exasperava. Verificou-se que, enquanto permaneceram em Pávlovsk, os Epantchín não o receberam, proibindo peremptoriamente Agláia Ivánovna de o ver. Que ele se retirava do vestíbulo, sem dizer palavra, voltando no dia seguinte, parecendo ter esquecido a recusa da véspera e saindo indiferente à de então.
     Também se descobriu que, uma hora depois da volta de Agláia Ivánovna da casa de Nastássia Filíppovna, o príncipe tinha ido pressuroso à casa dos Epantchín, certo de encontrá-la, à sua chegada, tendo posto toda a casa em rebuliço visto não se saber onde estivesse Agláia, tendo sido por ele que os Epantchín se puseram a par da ida da moça à casa de Nastássia Filíppovna. Asseverou-se que, nessa ocasião, aflitíssimos, Lizavéta Prokófievna, as filhas e o Príncipe Chtch... destrataram violentamente Míchkin, renunciando, nos mais fortes termos, a qualquer amizade ou relação daí em diante com ele. E que fora justamente no momento mais acalorado que Varvára Ardaliónovna subitamente aparecera para dizer a Lizavéta Prokófievna que Agláia Ivánovna estava lá em sua casa, em um pavoroso estado de espírito, jurando não querer voltar à casa paterna.
     Tal novidade afetara ainda mais Lizavéta Prokófievna. (E acontece que era verdadeira, pois, fugindo atarantada da casa de Nastássia Filíppovna, Agláia preferiria morrer a entrar em casa, tendo voado para casa de Nina Aleksándrovna, debulhada em pranto, tendo então Varvára Ardaliónovna, por sua parte, achado ser essencial ir avisar prontamente a mãe da moça.) Mãe e filhas arrojaram-se, imediatamente, para a casa de Nina Aleksándrovna, seguidas pelo chefe da família, Iván Fiódorovitch, que mal acabara de chegar da rua.
     Atrás deles seguira o príncipe, atarantado, embora o expulsassem e descompusessem, nem mesmo na casa onde ela estava lhe tendo sido permitido, devido às cautelas de Vária, ver Agláia. O final disso fora que, mal viu a mãe e as manas; também debulhadas em pranto, sem ousarem proferir uma palavra de censura, Agláia se arremessou nos braços delas, regressando logo com todos para o lar.
     Além de tudo isso, ainda se adiantou, sem que o pudéssemos autenticar, que Gavríl Ardaliónovitch também não fora muito feliz nessa conjuntura, por causa do seguinte: resolvera aproveitar a oportunidade de Varvára ter ido a correr à casa de Lizavéta Prokófievna, deixando-o sozinho com Agláia, para inoportunamente lhe falar ainda na sua paixão; mas, ouvindo isso, apesar de estar zonza e em lágrimas, ela desandou a rir, repentinamente. E até lhe perguntou se ele, para lhe provar esse amor, queimaria o dedo em uma vela. E Gavríl Ardaliónovitch - prossegue a história - ficara petrificado diante da pergunta. Tão petrificado, a sua cara traindo tamanho espanto que, tomada de uma espécie de ataque histérico, Agláia riu dele, acabando por fugir, escadas acima, para os cômodos de Nina Aleksándrovna, onde a família a fora encontrar.
      Esse episódio foi contado ao príncipe, no dia seguinte, por Ippolít, que, não podendo mais levantar da cama, mandou-o chamar de propósito para lhe narrar o caso. Como Ippolít soubera do fato, ignoramos; mas quando Míchkin ouviu falar em vela e em dedo, riu tanto que Ippolít ficou admirado. E, inesperadamente depois, o príncipe se pusera a tremer e a chorar... Devia juntar-se a isso que durante aqueles dias estivera em um estado de grande confusão, e que uma extraordinária perturbação, embora vaga, o atormentava, agora. Ippolít rudemente afirmou que o príncipe estava fora do seu espírito; mas era impossível garantir-se isso com segurança.
     Apresentando todos estes fatos e não tentando explicá-los, não temos o intuito de justificar o herói aos olhos do leitor. E, o que é mais, estamos inclinados a comparticipar da indignação que ele provocara mesmo nos amigos. Vera Liébedieva ficara zangada, por uns dias. Kólia, idem. Keller só deixou de ficar indignado depois que foi escolhido para padrinho; sem que seja preciso nos referirmos a Liébediev que logo começara a intrigar, ora a favor, ora contra o príncipe, movido por uma indignação verídica. (Sobre isso, aliás, falaremos mais tarde.)
     Mas, em compensação, simpatizamos logo com algumas palavras proferidas por Evguénii Pávlovitch, vigorosas e profundamente psicológicas, ditas em cheio, e sem cerimônia alguma, em conversa com o príncipe, seis ou sete dias depois do que se passara em casa de Nastássia Filíppovna. Temos de intercalar aqui que não só os Epantchín, mas todos aqueles que lhes estavam direta ou indiretamente ligados, julgaram melhor romper com o príncipe.
     O Príncipe Chtch... para citar um exemplo, ao encontrar Míchkin, virava a cabeça para o lado e não respondia à sua saudação. Mas Evguénii Pávlovitch não receou comprometer-se, visitando o príncipe, embora visitasse também, e assiduamente, os Epantchín, que o recebiam com evidente cordialidade. Uma dessas visitas suas ao príncipe foi justamente na noite do dia em que os Epantchín deixaram Pávlovsk. Estava perfeitamente a par dos rumores em circulação, e, muito possivelmente, ajudava até a espalhá-los.
     O príncipe alegrou-se de o ver e começou logo a falar nos Epantchín. Uma tal franqueza fez que Evguénii Pávlovitch também sentisse a língua solta, indo diretamente ao ponto, sem se vexar. O príncipe ignorava que os Epantchín tivessem ido embora. De tão surpreendido, ficou lívido. Um minuto depois, meneava, porém, a cabeça, confuso e meditativo, concordando que “só podia ser assim”. E avidamente perguntou “para onde tinham ido”.
     Enquanto isso, Evguénii Pávlovitch o examinava cuidadosamente, pasmado, e não à toa, ante a rapidez das perguntas, a ingenuidade e a inquietação, o sossego e o nervosismo, e simultaneamente, com isso tudo, ante essa franqueza inefável. Contou tudo, mas procurando ser delicado.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (9a) - Tinham-se passado quinze dias
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