Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
22
POR volta de meio-dia trouxeram-nos caixões com marmitas e o almoço foi distribuído. Olhei de longe a comida feia, mas não foi o aspecto desagradável que me fez evitá-la. Reaparecera-me a inapetência, e só a vista do alimento me provocava náuseas. Voltei-me para o exterior, fui embeber-me na monotonia das ondas, até que a refeição terminasse. Espantava-me conseguir uma pessoa mastigar qualquer coisa diante das imundícies que se agitavam e decompunham na vaga de mijo. O fedor horrível, confusão de cheiros com predominância de amoníaco, já não me afligia: habituara-me a ele e envenenava-me sem perceber isto. Fumava sem descanso, e temia que me chegasse o momento de abandonar o vício.
No escotilhão estabelecera-se um pequeno comércio. Foi ali com
certeza que achei meio de renovar a minha provisão de fósforos e
cigarros. Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água.
Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do camarote do
padeiro, mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se
vinha de encanamento. Afasto a última suposição, estou quase certo de
que não existia nenhuma torneira. Esta lacuna me revela o desarranjo
interno, pois a sede era grande., estávamos sempre a beber. Findo o
rumor das colheres nas vasilhas de lata, arrastados os caixões, reingressei
na vida escura da furna, um espinho na consciência.
Inútil, ocioso, a vagar à toa, ouvindo a parolagem dos grupos,
tentando familiarizar-me – e o trabalho abandonado. Nunca me vira sem
ocupação: enxergava na preguiça uma espécie de furto. Necessário
escrever, narrar os acontecimentos em que me embaraçava. Certo não os
conseguiria desenvolver: faltava-me calma, tudo em redor me parecia
insensato. Evidentemente a insensatez era minha: absurdo pretender
relatar coisas indefinidas, o fumo e as sombras que me cercavam. Não
refleti nisso. Havia-me imposto uma tarefa e de qualquer modo era-me
preciso realizá-la. Ou não seria imposição minha esse dever: as
circunstâncias é que o disciplinar o pensamento rebelde, descrever o
balanço das redes, fardos humanos abatidos pelos cantos, a arquejar no
enjoo, a vomitar, as feições dos meus novos amigos a acentuar-se pouco
a pouco. Não nos encontramos todos os dias em tal situação; de alguma
forma devia considerar-me favorecido. Ao chegar, sentira-me atordoado,
mas nem uma vez me viera a ideia de estar sendo vítima de injustiça. Lá
fora comportava-me automaticamente. A repartição, o despacho, o
bonde, o horário, conversas bestas com indivíduos que se mexiam como
se fossem puxados a cordões. Ali me exibiam aspectos inéditos da
sociedade. Avizinhei-me dos meus troços, afastei a calça e o paletó,
dobrados cuidadosamente, abri a valise, retirei o bloco de papel e um
lápis, arrumei tudo de novo, sentei-me num caixão, pus-me a escrever à
luz que vinha da escotilha. Provavelmente fiquei horas a trabalhar,
desordenadamente. Queria atordoar-me, sem dúvida. As letras se
acavalavam, miúdas, para economizar espaço, e as entrelinhas eram tão
exíguas que as emendas se tornavam difíceis. Realmente nem me
lembrava de corrigir a prosa capenga. Faltava-me a certeza de poder um
dia aproveitá-la. Os guardas viam-me entregue a ela; quando mal me
precatasse, viriam examiná-la, destruí-la; ou talvez eu mesmo a
inutilizasse. A hora do jantar não me foi preciso levantar-me, vencer a
náusea a olhar as ondas: continuei sentado, jogando na folha os
desarranjos que me fervilhavam no espírito. Convidaram-me com
insistência, quiseram levar-me para junto dos caixões e das marmitas.
Algumas pessoas estranharam a recusa. Um dia inteiro em jejum.
Escrevi até à noite. Se houvesse guardado aquelas páginas, com
certeza acharia nelas incongruências, erros, hiatos, repetições. O meu
desejo era retratar os circunstantes, mas, além dos nomes, escassamente haverei gravado fragmentos deles: os olhos azuis de José Macedo, a
contração facial de Lauro Lago, a queimadura horrível de Gastão, as duas
cicatrizes de Epifânio Guilhermino, o peito cabeludo e o rosário do beato
José Inácio, a calva de Mário Paiva, os braços magros de Carlos Van der
Linden, o rosto negro de Maria Joana iluminado por um sorriso muito
branco.
Escureceu, acenderam-se as lâmpadas. Afizera-me ao ambiente e já
não me impressionavam o cheiro de amoníaco e o burburinho de feira.
Também a sombra leitosa em que boiavam luzes tinha desaparecido.
Agora se destacavam os focos elétricos pendentes do teto. No centro o
lago de urina estava bem iluminado; as margens se envolviam em
penumbra, e no ponto em que me achava as figuras desmaiaram, as letras
pouco a pouco se sumiram. Levantei-me, os beiços rachados, a língua
ardente, com sede. Fumava o dia todo e assaltavam-me às vezes ligeiras
vertigens. Encaminhei-me ao lugar onde bebíamos e não achei água, fiz
demoradas buscas inutilmente. A lembrança da noite, do pesadelo
extenso, do calor, do negro a coçar as pelancas nojentas, afligiu-me.
Naquele estado, o estômago vazio, a garganta seca, ia estirar-me
novamente na tábua suja, asfixiar-me, ouvir gemidos, roncos, pragas,
borborigmos, delirar, avizinhar-me outra vez da loucura. À medida que o
tempo se passava os meus receios cresciam. Tentava iludir-me:
ambientado, não experimentaria as ânsias da véspera; na verdade as
causas do tormento haviam sido o colarinho, a gravata, a roupa grossa de
lã; metido no pijama leve, ser-me-ia possível talvez dormir.
Adiava a hora de recolher-me. Muitos prisioneiros já se haviam
entrouxado pelos cantos, e não me decidia a aproximar-me da valise
posta em cima do estrado onde me deitara. De repente um mulato de cara
enferrujada apareceu, querendo vender-me uma rede por quinze mil-réis.
Aceitei-a sem regatear, mas surgiu uma dificuldade: não havia lugar para
armá-la, e assim ela não representava nenhum valor. O negociante,
engenhoso, cortou o embaraço: milagrosamente se guindou com
agilidade de macaco, e em dez minutos o objeto salvador se estendia,
amarrado firme a duas colunas, a grande altura, na boca da escotilha.
Admirei a perícia do homem e entreguei-lhe uma cédula de vinte mil
réis. Foi buscar o troco. Num momento estaria de volta. Fiquei a esperá-lo, conversando com João Anastácio e Miguel, os dois passageiros que se
haviam relacionado comigo. Os outros ainda estavam nebulosos e
distantes. Como se chamava aquele sujeito? Não souberam informar-me,
e, como o tipo não regressasse, desisti da espera, despedi-me aborrecido
por me haver deixado lograr, tentei alcançar o ninho que se agitava muito acima das nossas
cabeças. Era uma difícil escalada. Sem tirar os sapatos, utilizando como
degraus os punhos das outras redes, consegui chegar à minha, afastei as
varandas, operação complicada, e mergulhei no seio de pano com um
suspiro de consolo. Não havia travesseiro nem cobertas. Arranjar-me-ia
sem eles. O calor diminuíra bastante: findava o receio de congestionar
me, sufocar-me; o ar, porém, ainda era espesso, e voluntariamente me
privaria de cobertura. Conseguiria dormir, apesar da sede; esta ideia
afugentava as preocupações e dava-me paz. Ligeiras picadas no
estômago faziam-me pensar nos caixões e nas marmitas, enojado.
Nenhuma fome: com certeza não me seria possível engolir nada. As
goelas queimavam, os beiços rachados ardiam, e achava-me tranquilo.
Realmente não era tranquilidade perfeita. Inclinando-me um pouco, via
lá embaixo, numa ponta do estrado, a valise, a calça, o paletó, o chapéu;
de quando em quando me voltava para vigiar estes bens. Algumas
cédulas, níqueis e pratas estavam em segurança, no porta-moedas,
escondido no bolso do pijama, por baixo do lenço.Achava-me bem e adormeceria logo se uma insignificância não me
perturbasse: a recordação do mulato enfarruscado que me abafara cinco
mil réis. Eu lhe teria dado cinquenta sem hesitar. Aperreava-me a
safadeza estúpida. Porque não me havia o idiota pedido mais, em
negócio? Porque se contentava com um furto pequeno, descoberto em
minutos? Ladrão indecente. Enfim aquilo era juízo temerário:
possivelmente o homem andava a procurar-me para restituir a diferença
No dia seguinte regularizaríamos a transação. Zangava-me por estar
perdendo tempo com semelhante niquice, buscava livrar-me dela,
considerar friamente os absurdos que me rodeavam. Impossível: diluíam-se, atrapalhavam-se, figuravam retalhos de sonhos. Nesse estado, meio
inconsciente, de costas, as mãos cruzadas no peito, distingui a pouca
distância um polícia negro junto à amurada. Despertei num instante,
pensei na criatura bestial que me fizera descer a escada fixando-me uma
pistola às costelas. A suspeita e o calafrio de repugnância num momento
cessaram. O indivíduo ali próximo não se assemelhava ao bruto
corpulento: era um rapaz alto, magro, de feições humanas; debruçado,
parecia examinar o interior do porão. Encarei-o, pedi:
– Faz o obséquio de me dar um copo de água? - balançou a cabeça,
hesitou:
– Difícil. Será que o senhor pode subir até aqui?
Sem esperar resposta, saiu, voltou com um copo de água, curvou-se
para dentro; engatinhei, segurando-me ao punho da rede, à corda, ergui
me no suporte oscilante, cheguei aos varões da amurada, agarrei-me,
alcancei o braço estendido, bebi sôfrego. Mas aquilo não bastava:
repetimos a operação quatro ou cinco vezes. Não sei como agradeci:
murmurei com certeza algumas palavras convencionais e vazias. E
escorreguei no fundo da cova movediça, abriguei-me nela arquejante, de
barriga para o ar, os olhos presos no soldado.
Estranho, estranho demais. A fadiga alquebrava-me, impedia-me
esboçar um sorriso de reconhecimento. Precisamos viver no inferno,
mergulhar nos subterrâneos sociais, para avaliar ações que não
poderíamos entender aqui em cima. Dar de beber a quem tem sede. Bem.
Mas como exercer na vida comum essa obra de misericórdia?
Há carência de oportunidade, as boas intenções embotam-se, perdem-se.
Ali me havia surgido uma alma na verdade misericordiosa. Ato gratuito,
nenhuma esperança de paga; qualquer frase conveniente, resposta de
gente educada, morreria isenta de significação. Na véspera outro
desconhecido, negro também, me havia encostado um cano de arma à
espinha e à ilharga; e qualquer gesto de revolta ou defesa passaria
despercebido. Esquisito. Os acontecimentos me apareciam desprovidos
de razão, as coisas não se relacionavam. A violência fora determinada
apenas pela grosseria existente no primeiro negro;
o ato caridoso pela bondade que havia no coração do segundo. Ausência de motivo fora isso, eu não merecia nenhum dos dois tratamentos. Era
razoável observá-los com frieza, alheio e distante. Impossível.
Insensibilizava-me à brutalidade, encolhera os ombros indiferente, como
se não fosse comigo; tinha-me habituado a ela na existência anterior,
dirigida a mim e a outros. Não podia esquivar-me àquela piedade que ali
espreitava o fundo do porão, em busca de sofrimentos remediáveis.
Nunca percebera, em longos anos, casos semelhantes. As ideias desmaiaram, fugiram, e, aos embalos doces da rede, caí num sono de
pedra.
continua página 104....
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 21
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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