domingo, 13 de julho de 2025

Memórias do Cárcere - Viagens 22

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

22

     POR volta de meio-dia trouxeram-nos caixões com marmitas e o almoço foi distribuído. Olhei de longe a comida feia, mas não foi o aspecto desagradável que me fez evitá-la. Reaparecera-me a inapetência, e só a vista do alimento me provocava náuseas. Voltei-me para o exterior, fui embeber-me na monotonia das ondas, até que a refeição terminasse. Espantava-me conseguir uma pessoa mastigar qualquer coisa diante das imundícies que se agitavam e decompunham na vaga de mijo. O fedor horrível, confusão de cheiros com predominância de amoníaco, já não me afligia: habituara-me a ele e envenenava-me sem perceber isto. Fumava sem descanso, e temia que me chegasse o momento de abandonar o vício.
     No escotilhão estabelecera-se um pequeno comércio. Foi ali com certeza que achei meio de renovar a minha provisão de fósforos e cigarros. Não me recordo. Também não sei como nos forneciam água. Lembro-me de que ela se achava à entrada, perto do camarote do padeiro, mas esqueci completamente se estava em balde ou ancoreta, se vinha de encanamento. Afasto a última suposição, estou quase certo de que não existia nenhuma torneira. Esta lacuna me revela o desarranjo interno, pois a sede era grande., estávamos sempre a beber. Findo o rumor das colheres nas vasilhas de lata, arrastados os caixões, reingressei na vida escura da furna, um espinho na consciência.
     Inútil, ocioso, a vagar à toa, ouvindo a parolagem dos grupos, tentando familiarizar-me – e o trabalho abandonado. Nunca me vira sem ocupação: enxergava na preguiça uma espécie de furto. Necessário escrever, narrar os acontecimentos em que me embaraçava. Certo não os conseguiria desenvolver: faltava-me calma, tudo em redor me parecia insensato. Evidentemente a insensatez era minha: absurdo pretender relatar coisas indefinidas, o fumo e as sombras que me cercavam. Não refleti nisso. Havia-me imposto uma tarefa e de qualquer modo era-me preciso realizá-la. Ou não seria imposição minha esse dever: as circunstâncias é que o disciplinar o pensamento rebelde, descrever o balanço das redes, fardos humanos abatidos pelos cantos, a arquejar no enjoo, a vomitar, as feições dos meus novos amigos a acentuar-se pouco a pouco. Não nos encontramos todos os dias em tal situação; de alguma forma devia considerar-me favorecido. Ao chegar, sentira-me atordoado, mas nem uma vez me viera a ideia de estar sendo vítima de injustiça. Lá fora comportava-me automaticamente. A repartição, o despacho, o bonde, o horário, conversas bestas com indivíduos que se mexiam como se fossem puxados a cordões. Ali me exibiam aspectos inéditos da sociedade. Avizinhei-me dos meus troços, afastei a calça e o paletó, dobrados cuidadosamente, abri a valise, retirei o bloco de papel e um lápis, arrumei tudo de novo, sentei-me num caixão, pus-me a escrever à luz que vinha da escotilha. Provavelmente fiquei horas a trabalhar, desordenadamente. Queria atordoar-me, sem dúvida. As letras se acavalavam, miúdas, para economizar espaço, e as entrelinhas eram tão exíguas que as emendas se tornavam difíceis. Realmente nem me lembrava de corrigir a prosa capenga. Faltava-me a certeza de poder um dia aproveitá-la. Os guardas viam-me entregue a ela; quando mal me precatasse, viriam examiná-la, destruí-la; ou talvez eu mesmo a inutilizasse. A hora do jantar não me foi preciso levantar-me, vencer a náusea a olhar as ondas: continuei sentado, jogando na folha os desarranjos que me fervilhavam no espírito. Convidaram-me com insistência, quiseram levar-me para junto dos caixões e das marmitas. Algumas pessoas estranharam a recusa. Um dia inteiro em jejum.
     Escrevi até à noite. Se houvesse guardado aquelas páginas, com certeza acharia nelas incongruências, erros, hiatos, repetições. O meu desejo era retratar os circunstantes, mas, além dos nomes, escassamente haverei gravado fragmentos deles: os olhos azuis de José Macedo, a contração facial de Lauro Lago, a queimadura horrível de Gastão, as duas cicatrizes de Epifânio Guilhermino, o peito cabeludo e o rosário do beato José Inácio, a calva de Mário Paiva, os braços magros de Carlos Van der Linden, o rosto negro de Maria Joana iluminado por um sorriso muito branco.
     Escureceu, acenderam-se as lâmpadas. Afizera-me ao ambiente e já não me impressionavam o cheiro de amoníaco e o burburinho de feira. Também a sombra leitosa em que boiavam luzes tinha desaparecido. Agora se destacavam os focos elétricos pendentes do teto. No centro o lago de urina estava bem iluminado; as margens se envolviam em penumbra, e no ponto em que me achava as figuras desmaiaram, as letras pouco a pouco se sumiram. Levantei-me, os beiços rachados, a língua ardente, com sede. Fumava o dia todo e assaltavam-me às vezes ligeiras vertigens. Encaminhei-me ao lugar onde bebíamos e não achei água, fiz demoradas buscas inutilmente. A lembrança da noite, do pesadelo extenso, do calor, do negro a coçar as pelancas nojentas, afligiu-me. Naquele estado, o estômago vazio, a garganta seca, ia estirar-me novamente na tábua suja, asfixiar-me, ouvir gemidos, roncos, pragas, borborigmos, delirar, avizinhar-me outra vez da loucura. À medida que o tempo se passava os meus receios cresciam. Tentava iludir-me: ambientado, não experimentaria as ânsias da véspera; na verdade as causas do tormento haviam sido o colarinho, a gravata, a roupa grossa de lã; metido no pijama leve, ser-me-ia possível talvez dormir.
     Adiava a hora de recolher-me. Muitos prisioneiros já se haviam entrouxado pelos cantos, e não me decidia a aproximar-me da valise posta em cima do estrado onde me deitara. De repente um mulato de cara enferrujada apareceu, querendo vender-me uma rede por quinze mil-réis. Aceitei-a sem regatear, mas surgiu uma dificuldade: não havia lugar para armá-la, e assim ela não representava nenhum valor. O negociante, engenhoso, cortou o embaraço: milagrosamente se guindou com agilidade de macaco, e em dez minutos o objeto salvador se estendia, amarrado firme a duas colunas, a grande altura, na boca da escotilha. Admirei a perícia do homem e entreguei-lhe uma cédula de vinte mil réis. Foi buscar o troco. Num momento estaria de volta. Fiquei a esperá-lo, conversando com João Anastácio e Miguel, os dois passageiros que se haviam relacionado comigo. Os outros ainda estavam nebulosos e distantes. Como se chamava aquele sujeito? Não souberam informar-me, e, como o tipo não regressasse, desisti da espera, despedi-me aborrecido por me haver deixado lograr, tentei alcançar o ninho que se agitava muito acima das nossas cabeças. Era uma difícil escalada. Sem tirar os sapatos, utilizando como degraus os punhos das outras redes, consegui chegar à minha, afastei as varandas, operação complicada, e mergulhei no seio de pano com um suspiro de consolo. Não havia travesseiro nem cobertas. Arranjar-me-ia sem eles. O calor diminuíra bastante: findava o receio de congestionar me, sufocar-me; o ar, porém, ainda era espesso, e voluntariamente me privaria de cobertura. Conseguiria dormir, apesar da sede; esta ideia afugentava as preocupações e dava-me paz. Ligeiras picadas no estômago faziam-me pensar nos caixões e nas marmitas, enojado. Nenhuma fome: com certeza não me seria possível engolir nada. As goelas queimavam, os beiços rachados ardiam, e achava-me tranquilo. Realmente não era tranquilidade perfeita. Inclinando-me um pouco, via lá embaixo, numa ponta do estrado, a valise, a calça, o paletó, o chapéu; de quando em quando me voltava para vigiar estes bens. Algumas cédulas, níqueis e pratas estavam em segurança, no porta-moedas, escondido no bolso do pijama, por baixo do lenço.
Achava-me bem e adormeceria logo se uma insignificância não me perturbasse: a recordação do mulato enfarruscado que me abafara cinco mil réis. Eu lhe teria dado cinquenta sem hesitar. Aperreava-me a safadeza estúpida. Porque não me havia o idiota pedido mais, em negócio? Porque se contentava com um furto pequeno, descoberto em minutos? Ladrão indecente. Enfim aquilo era juízo temerário: possivelmente o homem andava a procurar-me para restituir a diferença No dia seguinte regularizaríamos a transação. Zangava-me por estar perdendo tempo com semelhante niquice, buscava livrar-me dela, considerar friamente os absurdos que me rodeavam. Impossível: diluíam-se, atrapalhavam-se, figuravam retalhos de sonhos. Nesse estado, meio inconsciente, de costas, as mãos cruzadas no peito, distingui a pouca distância um polícia negro junto à amurada. Despertei num instante, pensei na criatura bestial que me fizera descer a escada fixando-me uma pistola às costelas. A suspeita e o calafrio de repugnância num momento cessaram. O indivíduo ali próximo não se assemelhava ao bruto corpulento: era um rapaz alto, magro, de feições humanas; debruçado, parecia examinar o interior do porão. Encarei-o, pedi:

– Faz o obséquio de me dar um copo de água? - balançou a cabeça, hesitou:  
– Difícil. Será que o senhor pode subir até aqui?

     Sem esperar resposta, saiu, voltou com um copo de água, curvou-se para dentro; engatinhei, segurando-me ao punho da rede, à corda, ergui me no suporte oscilante, cheguei aos varões da amurada, agarrei-me, alcancei o braço estendido, bebi sôfrego. Mas aquilo não bastava: repetimos a operação quatro ou cinco vezes. Não sei como agradeci: murmurei com certeza algumas palavras convencionais e vazias. E escorreguei no fundo da cova movediça, abriguei-me nela arquejante, de barriga para o ar, os olhos presos no soldado.
     Estranho, estranho demais. A fadiga alquebrava-me, impedia-me esboçar um sorriso de reconhecimento. Precisamos viver no inferno, mergulhar nos subterrâneos sociais, para avaliar ações que não poderíamos entender aqui em cima. Dar de beber a quem tem sede. Bem. Mas como exercer na vida comum essa obra de misericórdia?
Há carência de oportunidade, as boas intenções embotam-se, perdem-se. Ali me havia surgido uma alma na verdade misericordiosa. Ato gratuito, nenhuma esperança de paga; qualquer frase conveniente, resposta de gente educada, morreria isenta de significação. Na véspera outro desconhecido, negro também, me havia encostado um cano de arma à espinha e à ilharga; e qualquer gesto de revolta ou defesa passaria despercebido. Esquisito. Os acontecimentos me apareciam desprovidos de razão, as coisas não se relacionavam. A violência fora determinada apenas pela grosseria existente no primeiro negro; o ato caridoso pela bondade que havia no coração do segundo. Ausência de motivo fora isso, eu não merecia nenhum dos dois tratamentos. Era razoável observá-los com frieza, alheio e distante. Impossível. Insensibilizava-me à brutalidade, encolhera os ombros indiferente, como se não fosse comigo; tinha-me habituado a ela na existência anterior, dirigida a mim e a outros. Não podia esquivar-me àquela piedade que ali espreitava o fundo do porão, em busca de sofrimentos remediáveis. Nunca percebera, em longos anos, casos semelhantes. As ideias desmaiaram, fugiram, e, aos embalos doces da rede, caí num sono de pedra. 
  
continua página 104....
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Leia também:

Memórias do Cárcere - Viagens 21
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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