A Montanha Mágica
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal
.
continuando...
A conversa continuou a ocupar-se da Pietà, porque Hans Castorp, com olhares e palavras,
se agarrava ao assunto, dirigindo-se ao Sr. Settembrini e procurando, por assim dizer, pô-lo em
contato crítico com aquela obra de arte. Entretanto, a fisionomia do humanista denotava com
toda a clareza o horror que lhe causava esse adorno do quarto, quando se voltou para olhá-lo;
pois ao sentar-se dera as costas ao canto onde se achava a escultura. Por demais cortês para dizer
tudo o que pensava, limitou-se a criticar os erros nas proporções e na anatomia do grupo,
infidelidades à verdade natural, que estavam longe de comovê-lo, por não terem a sua origem na
incapacidade de um artista primitivo, senão que documentavam a má vontade, um princípio
fundamentalmente hostil. Nesse ponto, Naphta concordou com ele maliciosamente. Sem dúvida
não se podia falar de inabilidade técnica. Tratava-se, sim, de um consciente ato do espírito que se
emancipava da natureza, cuja desprezibilidade era proclamada, no sentido religioso, pela enérgica
negação do menor respeito a ela. Mas Settembrini declarou que o menosprezo da natureza e de
seu estudo era incompatível com a humanidade e, em oposição à absurda falta de forma,
cultivada pela Idade Média e pelas épocas que a imitavam, pôs-se a encomiar em palavras
eloquentes a herança greco-romana, o Classicismo, a forma, a beleza, a razão e a alegria
piedosamente fundada na natureza, que eram os únicos chamados a melhorar a causa do homem.
Nisso interveio Hans Castorp, perguntando o que se devia pensar, nesse caso, de Plotino, o qual
expressara a vergonha que sentia de seu corpo, e de Voltaire, que em nome da razão se revoltara
contra o escandaloso terremoto de Lisboa. Absurdo? Aquilo também era absurdo, mas refletindo
bem podia-se chegar à opinião de que no absurdo se revelava a honestidade do espírito, e a
absurda hostilidade da arte gótica contra a natureza era, em última análise, tão honesta quanto a
atitude de Plotino e de Voltaire, já que nela se expressava igual emancipação do fado e do fato, e
o mesmo orgulho indócil que se recusava a abdicar diante do poder estúpido que representava a
natureza...
Naphta soltou uma risada, que lembrou muito o mencionado prato rachado e terminou
num acesso de tosse. Settembrini disse com distinção:
– O senhor prejudica o nosso anfitrião mostrando tanto espírito, e dessa forma
demonstra a sua falta de gratidão pelos excelentes doces. Será que o senhor tem queda para a
gratidão? Refiro-me àquele tipo de gratidão que consiste em fazermos um bom uso dos presentes
que recebemos...
Ao ver que Hans Castorp ficou envergonhado, o italiano acrescentou com a maior
amabilidade:
– O senhor é conhecido como maganão, meu caro engenheiro. Seu jeito de zombar
amistosamente da verdade em absoluto não me faz desesperar do amor que tem a ela. O senhor
sabe muito bem que somente pode ser qualificada de honesta aquela sublevação do espírito
contra a natureza, que visa à dignidade e à beleza do homem, e não a outra que tem, senão por
finalidade, pelo menos por consequência, o seu aviltamento e a sua humilhação. O senhor
tampouco ignora quantas atrocidades desumanas, quanta intolerância sanguinária produziu a
época à qual aquele artefato que se acha atrás de mim deve a sua existência. Basta que eu lhe
chame à memória esse tipo horroroso do juiz de hereges, por exemplo a sinistra figura de um
Conrado de Marburgo, e o infame furor dos sacerdotes contra tudo quanto se opusesse à tirania
do sobrenatural. O senhor está longe de reconhecer a espada e a fogueira como instrumentos do
amor aos homens...
–... a cujo serviço – interrompeu-o Naphta – trabalhou a máquina por meio da qual a
Convenção expurgou o mundo de maus cidadãos. Todos os castigos da Igreja, inclusive a
fogueira, inclusive também a excomunhão, foram impostos para salvar as almas da pena eterna, o
que não se pode dizer do entusiasmo exterminador dos jacobinos. Permito-me observar que toda
justiça penal e capital que não brote da fé no além é uma sandice bestial. E quanto ao aviltamento
do homem, sua história coincide exatamente com a do espírito burguês. O Renascimento, a
Época das Luzes, as ciências naturais e a economia política do século XIX não se esqueceram de
ensinar nada, absolutamente nada, que fosse próprio para favorecer esse aviltamento, começando
pela nova astronomia, em virtude da qual o centro do universo, o magnífico cenário onde Deus e
o Diabo disputavam a posse da criatura por ambos almejada, foi transformado num insignificante
planetazinho, e que pôs um fim provisório à grandiosa posição do homem no cosmo, sobre a
qual se fundava a astrologia.
– Provisório?
Quando Settembrini fez essa pergunta, ameaçadoramente, havia na sua expressão
qualquer coisa de um inquisidor ou juiz de hereges que espera que a pessoa interrogada se
comprometa com palavras abertamente criminosas.
– Com efeito. Para algumas centenas de anos – confirmou Naphta friamente. – Se não
nos enganam todos os sinais, estamos na iminência de uma reabilitação da escolástica, também
nesse ponto. O processo já se acha em pleno andamento. Copérnico será derrotado por
Ptolomeu. A teoria heliocêntrica encontra cada vez maior oposição espiritual, e as empresas
inspiradas por essa resistência provavelmente surtirão êxito. A ciência sentirá a necessidade
filosófica de restituir à Terra todas as honras que o dogma eclesiástico lhe queria reservar.
– Mas como? Oposição espiritual? Necessidade filosófica? Surtir êxito? Que sorte de
voluntarismo manifesta-se em tudo isso? E onde fica a pesquisa incondicional? E o
conhecimento puro? Onde fica a verdade, senhor, que anda intimamente ligada à liberdade, e
cujos mártires, longe de insultarem a Terra; como acha o senhor, permanecerão o eterno adorno
deste astro?
O Sr. Settembrini tinha uma maneira vigorosa de interrogar. Estava sentado, muito ereto,
e deixava cair sobre o pequeno Naphta as suas palavras honestas. Pelo fim levantou a voz
poderosamente, manifestando assim a mais absoluta certeza de que a resposta do seu adversário
só poderia consistir num silêncio consternado. Enquanto falava, segurava entre os dedos um
pedacinho de bolo. Depois, porém, depositou-o no prato, pois ao cabo de todas essas perguntas
não tinha vontade de trincá-lo.
Naphta retrucou com uma calma desagradável:
– Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção
eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que
possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência
incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma ideia,
numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la. Em todos os casos, chega-se
ao “Quod erat demonstrandum”. A simples ideia da prova contém, psicologicamente considerada, um
elemento muito voluntarista. Os grandes escolásticos dos séculos XII e XIII eram unânimes na
convicção de que na filosofia não podia ser verdade o que era falso perante a teologia. Deixemos
de lado a teologia, se o senhor assim o quiser; mas uma humanidade que não reconhecesse que
nas ciências naturais não pode ser verdade o que é falso perante a filosofia não seria humanidade.
A argumentação do Santo Ofício ante Galileu rezava que sua tese era filosoficamente absurda.
Não pode haver argumentação mais incisiva.
– Ora, ora! Os argumentos do nosso pobre e grande Galileu mostraram-se mais sólidos.
Não, professore, falemos seriamente! Diante destes dois jovens atentos responda-me à seguinte
pergunta: acredita o senhor em uma verdade, na verdade objetiva, científica, que a lei suprema de
toda moralidade nos manda procurar, e cujos triunfos sobre a autoridade formam a gloriosa
história do espírito humano?
Hans Castorp e Joachim voltaram os seus rostos de Settembrini para Naphta, o primeiro
mais rapidamente do que o segundo.
– Tal triunfo – replicou Naphta – não é possível, porque a autoridade é o próprio
homem, seu interesse, sua dignidade, sua salvação, e entre ela e a verdade não pode existir
nenhum antagonismo. Elas coincidem.
– A verdade seria, por conseguinte...
– Verdadeiro é o que convém ao homem. Nele se acha resumida toda a natureza; em toda
a natureza, apenas ele foi criado, e toda a natureza foi feita só para ele. Ele representa a medida
das coisas, e sua salvação é o critério da verdade. Um conhecimento teórico que carecesse da
relação prática com a ideia da salvação do homem seria de tal maneira desprovido de interesse
que deveríamos negar-lhe todo valor como verdade e não poderíamos admiti-lo. Os séculos
cristãos achavam-se completamente de acordo a respeito da irrelevância das ciências naturais para
o homem. Lactâncio, a quem Constantino, o Grande, escolheu como preceptor de seus filhos,
perguntou com toda a franqueza que classe de bem-aventurança obteria por conhecer o lugar
onde nasce o Nilo, ou por saber os disparates que os físicos dizem com referência ao céu. Será
que o senhor pode refutá-lo? Se a filosofia platônica foi preferida a qualquer outra, é porque não
se preocupava com o conhecimento da natureza e sim com o conhecimento de Deus. Posso lhes
garantir que a humanidade está a ponto de reencontrar o caminho que leva a esse ponto de vista,
e de perceber que a tarefa da ciência verdadeira não é correr atrás de conhecimentos ímpios, mas
eliminar, por princípio, o que é nocivo ou apenas irrelevante sob o prisma da ideia; numa palavra:
cabe-lhe dar provas de instinto, comedimento e capacidade de escolher. É pueril pensar que a
Igreja tenha defendido as trevas contra a luz. Ela teve três vezes razão ao proscrever a busca
incondicional do conhecimento das coisas, isto é, uma busca que despreze tomar em
consideração o elemento espiritual, o objetivo da conquista da salvação. E o que mergulhou o
homem nas trevas e o enterrará cada vez mais são precisamente as ciências naturais,
incondicionais e afilosóficas.
– O senhor acaba de ensinar um pragmatismo – retrucou Settembrini – que basta
transportar para o plano político para lhe pôr em evidência o caráter pernicioso. É bom, é
verdadeiro, é justo o que convém ao Estado. Sua salvação, sua dignidade, seu poder representam
o critério ético. Muito bem! Isso abre as portas a qualquer crime, e a verdade humana, a justiça
individual, a democracia que se arranjem...
– Sugiro o emprego de um pouquinho de lógica – tornou Naphta. – Ou Ptolomeu e a
escolástica têm razão, e o mundo é finito quanto ao tempo e ao espaço. Nesse caso, a divindade é
transcendental; a oposição entre Deus e o mundo existe, e também o homem é um ser dualista: o
problema de sua alma consiste no antagonismo entre o físico e o metafísico, e tudo quanto é
social fica à distância, desempenhando papel secundário. Essa é a única forma de individualismo
que julgo consequente. Ou então os seus astrônomos renascentistas encontraram a verdade, e o
cosmo é infinito. Então não há mundo transcendental, não há dualismo. O além acha-se
absorvido pelo aquém; desaparece a oposição entre Deus e a natureza; e como nesse caso a
personalidade do homem, em vez de ser o campo de batalha de dois princípios inimigos, é
harmoniosa e una, o conflito que se trava no interior do homem baseia-se exclusivamente
naquele dos interesses individuais e coletivos. A finalidade do Estado torna-se, à boa maneira
pagã, a lei moral. Ou um ou outro.
– Protesto! – gritou Settembrini, enquanto o seu braço teso estendia ao anfitrião a xícara
de chá. – Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica
do indivíduo! Protesto pela terceira vez contra aquela alternativa vexatória entre o prussianismo e
a reação gótica diante da qual o senhor nos quer colocar! A democracia não tem outro sentido a
não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. A verdade e a
justiça são as jóias da coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os interesses
estatais talvez até assumam a aparência de potências inimigas do Estado, posto que, em realidade,
visem ao seu bem superior, ao bem supra terreno. O Renascimento como origem da idolatria do
Estado! Que lógica mais bastarda! As conquistas – emprego essa palavra no sentido literal! –, as
conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade,
direitos do homem, liberdade!
Os ouvintes soltaram a respiração que haviam contido durante a grande réplica do Sr.
Settembrini. Hans Castorp não pôde deixar de bater, embora discretamente, na borda da mesa
com a palma da mão. – Magnífico! – murmurou entre dentes, e também Joachim mostrou-se
altamente impressionado, conquanto o prussianismo houvesse sido mencionado em sentido
desfavorável. A seguir, porém, ambos se voltaram para o interlocutor que acabava de ser
rechaçado. Hans Castorp o fez com tamanha impaciência, que fincou o cotovelo na mesa e o
queixo no punho mais ou menos na posição de quem desenha um porquinho, e fitou o Sr.
Naphta de muito perto e com imensa atenção.
Este se achava sentado calmamente, como que afiado, apoiando as mãos magras sobre os
joelhos.
– Tentei introduzir um pouco de lógica na nossa discussão – disse ele – e sua resposta
baseia-se em sentimentos elevados. Que o Renascimento tenha dado à luz tudo aquilo que se
chama liberalismo, individualismo, humanismo burguês é um fato que eu conhecia mais ou
menos bem. Mas o seu “sentido literal” deixa-me inteiramente frio. A idade “conquistadora”,
heroica, dos seus ideais há muito que passou; esses ideais estão mortos ou agonizantes, e aqueles
que lhes darão o golpe de misericórdia já se acham próximos. Se não me engano, o senhor se
arvora em revolucionário. Mas, se acredita que o resultado das revoluções vindouras será a
liberdade, iludiu-se redondamente. O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser
antiquado nos últimos quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do
racionalismo e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na
destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto – tal pedagogia pode obter
ainda hoje passageiros triunfos retóricos, porém o seu caráter atrasado é óbvio para os espíritos
avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras souberam sempre o que em
realidade deve ser o último objetivo da pedagogia: a autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a
disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da personalidade. Em última análise,
desconhece e não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que
ela aprecia mais é a obediência.
Joachim empertigou-se. Hans Castorp corou. O Sr. Settembrini torcia nervosamente o
belo bigode.
– Não, senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era não são a
libertação e o desenvolvimento do eu. Do que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o
terror.
Abafara a voz ao pronunciar esta última palavra. Não se movera. Apenas as lentes dos
seus óculos haviam relampejado rapidamente. Os ouvintes tinham estremecido, todos os três,
também Settembrini, que imediatamente se dominou e tornou a sorrir.
– E posso informar-me – indagou – quem ou o que (como vê, limito-me a interrogar e
nem sei como formular a pergunta), quem ou o que o senhor imagina como portador desse –
custa-me repetir a palavra – desse terror?
Naphta continuou imóvel, afiado e relampejante.
– Estou às ordens – disse. – Penso não me enganar quando pressuponho que estamos de
acordo com respeito ao estado primitivo ideal do homem, à sua liberdade de governo e de poder,
à sua relação filial e imediata com Deus, na qual não havia nada de domínio e de serviço, nada de
lei e de castigo, nada de injustiça, de união carnal, de diferenças de classe, de trabalho e de
propriedade, mas exclusivamente igualdade, fraternidade, perfeição moral.
– Muito bem. Concordo com isso – declarou Settembrini. – Concordo, exceção feita do
ponto da união carnal, que evidentemente deve ter existido sempre, uma vez que o homem é um
vertebrado muitíssimo desenvolvido, em nada diferente de outros seres...
– Como quiser. Verifico que em princípio somos da mesma opinião, no que se refere ao
estado primordial, paradisíaco, isento de lei e ligado imediatamente a Deus, esse estado que se
perdeu em virtude do pecado original. Creio que poderemos trilhar lado a lado mais um pedaço
do caminho; reduziremos então o Estado a um contrato social que, levando em conta o pecado,
foi estabelecido como proteção contra a injustiça, e veremos nisso a origem do poder soberano...
– Benissimo! – exclamou Settembrini. – O contrato social! Aí temos o Século das Luzes, ali
temos Rousseau. Eu nunca teria pensado...
– Permita-me. Neste ponto separam-se os nossos caminhos. Do fato de que toda
potência e todo governo pertenciam primitivamente ao povo, e que este transmitiu o seu direito
de legislação e a totalidade de seu poder ao Estado, ao príncipe, deduz a sua escola, antes de mais
nada, que o povo tem o direito de se rebelar contra a realeza. Nós, porém...
“Nós?”, pensou Hans Castorp, cheio de curiosidade “Quem é nós? Não devo esquecer de
perguntar a Settembrini a quem se refere este ‘nós’.”
– Nós, porém – continuou Naphta —, talvez não sejamos menos revolucionários do que
o senhor. Nós sempre concluímos desse fato, em primeiro lugar, a supremacia da Igreja sobre o
Estado secular. Pois, se a origem não-divina do Estado não estivesse escrita na sua testa, bastaria
recordar precisamente o fato histórico de ele derivar da vontade do povo e não, como a Igreja, de
uma fundação de Deus, para demonstrar que ele é, se não uma obra do mal, pela menos um
produto da emergência e da imperfeição pecaminosa.
– O Estado, senhor...
– Já sei o que o senhor pensa do Estado nacional. “Acima de tudo o amor à pátria e o
infinito desejo de glória!” Esta frase é de Virgílio. Corrija-a o senhor pelo acréscimo de um pouco
de individualismo liberal e surge a democracia. Mas isso não modifica em princípio a sua relação
para com o Estado. O senhor não parece chocar-se com a circunstância de que a alma do Estado
é o dinheiro. Ou tenciona, acaso, desmenti-la? A Antiguidade era capitalista, devido ao seu culto
do Estado. A Idade Média cristã percebeu com toda clareza o iminente capitalismo do Estado
secular. “O dinheiro será o imperador” é uma profecia do século XI. Nega o senhor que ela já se
cumpriu integralmente e que dessa forma se realizou a diabolização total da nossa vida?
– Meu amigo! O senhor continua com a palavra. Estou impaciente por saber quem é o
Grande Desconhecido, o portador do terror.
– Curiosidade muito ousada na boca do representante de uma classe social que é
portadora daquela liberdade que arruinou o mundo! Posso a rigor dispensar a sua réplica, porque
não ignoro a ideologia política da burguesia. O seu objetivo é o império democrático, a apoteose
com que o princípio do Estado nacional eleva-se a si próprio a Estado universal. O imperador
desse império? Conhecemo-lo. A sua utopia é horrorosa, e todavia neste ponto voltamos, de
certo modo, a estar de acordo. Pois a sua república universal capitalista tem qualquer coisa de
transcendental. Com efeito, o Estado universal é a transcendência do Estado secular, e
acreditamos ambos em que à perfeição da fase primitiva da humanidade corresponde uma fase
final perfeita, situada à distância no horizonte. Desde os dias de Gregório Magno, fundador da
Cidade de Deus, a Igreja considerou-se incumbida de reconduzir os homens ao governo de Deus.
O papa pretende a soberania não para si próprio; sua ditadura delegada era um meio e um
caminho para alcançar a meta da salvação, uma forma de transição do Estado pagão ao reino
celeste. O senhor falou, diante destes seus discípulos, dos atos sanguinários da Igreja e da sua
intolerância vingadora, e mostrou-se sumamente tolo ao fazê-lo. Pois o zelo religioso
naturalmente não pode ser pacifista, e o próprio Gregório disse: “Maldito seja o homem que
impede a sua espada de derramar sangue!” Já sabemos que o poder é mau. Mas o dualismo do
bem e do mal, do aquém e do além, do espírito e da potência, deve ser – para que chegue o reino – passageiramente substituído por um princípio que reúna o ascetismo e o domínio. É isso o que
chamo a necessidade do terror.
– O portador? Quem será o portador?
– O senhor me pergunta ainda? Será que à sua mentalidade manchesteriana escapou a
existência de uma doutrina sociológica que representa a vitória do homem sobre o economismo,
e cujos princípios e objetivos coincidem inteiramente com os do Estado cristão de Deus? Os
padres da Igreja qualificavam o “meu” e o “teu” de palavras funestas e chamavam à propriedade
privada usurpação e roubo. Condenavam a posse de bens por ser a terra, segundo o direito
natural e divino, comum a todos os homens, produzindo os seus frutos para o uso geral.
Ensinavam que somente a cobiça, uma consequência do pecado original, defendia os direitos de
posse e criara a propriedade particular. Eram bastante humanos, bastante hostis ao comércio para
considerar a atividade econômica em geral um perigo para a salvação da alma, isto é, para a
humanidade. Odiavam o dinheiro e os negócios, e a riqueza capitalista era para eles o combustível
das chamas do inferno. A lei econômica fundamental, a saber, que o preço resulta da relação
entre a oferta e a procura, foi desprezada de todo o coração por eles, que reprovavam o
aproveitamento de circunstâncias favoráveis como exploração cínica da miséria do próximo.
Existia contudo, aos seus olhos, uma exploração mais nefanda ainda: a do tempo, a
monstruosidade de se fazer pagar um prêmio pelo simples transcurso do tempo, esse prêmio que
são os juros, e de se abusar dessa forma, para vantagem de uns e para prejuízo de outros, de uma
instituição divina e geral, o tempo.
– Benissimo! – exclamou Hans Castorp, deixando-se levar, pelo seu entusiasmo, a empregar
a fórmula de aprovação do Sr. Settembrini. – O tempo... Uma instituição divina e geral... Isto é
sumamente importante!
– Sim, senhor – prosseguiu Naphta. – Esses espíritos realmente humanos julgavam
asquerosa a ideia de um aumento automático do dinheiro. Incluíam no conceito da usura
qualquer especulação ou anatocismo e declaravam que todos os ricos ora eram ladrões ora
herdeiros de ladrões. Iam ainda mais longe. Partilhavam a opinião de São Tomás de Aquino,
segundo a qual o comércio em si, o mero negócio comercial, a compra e venda no intuito de
obter um lucro, mas sem transformação nem melhoramento da mercadoria, representava uma
profissão ignominiosa. Não eram propensos a apreciar muito o próprio trabalho, pois ele é
apenas um assunto ético e não religioso, e se realiza a serviço da vida e não de Deus. E desde que
não se tratava de outra coisa senão da vida e da economia, exigiam que uma atividade produtiva
formasse a condição de toda vantagem econômica e a medida da respeitabilidade. Honrosos
pareciam-lhes o agricultor e o artífice, mas não o mercador e o industrial. Queriam eles que a
produção se acomodasse às necessidades e abominavam a produção em massa. Bem, depois de
séculos de soterramento ressurgem todos esses princípios e padrões econômicos no movimento
moderno do comunismo. A semelhança é completa, até no significado da reivindicação da
soberania, que pleiteia, contra a camada internacional de comerciantes e especuladores, o trabalho
internacional, o proletariado do mundo, que hoje em dia opõe a humanidade e os critérios da
Cidade de Deus à depravação burguês-capitalista. A ditadura do proletariado, essa exigência de
salvação política e econômica dos nossos tempos, não tem o sentido de um domínio pelo
domínio e por toda a eternidade, mas sim o de uma ab-rogação temporária do conflito entre o
espírito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominando-o, o
sentido da transição e da transcendência, o sentido do Reino. O proletariado retomou a obra de
Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco
poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror
para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com
Deus, sem a interferência do Estado e das classes.
continua pág 263...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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