quinta-feira, 31 de julho de 2025

Massa e Poder - Malta e Religião: A Transformação das Maltas

Elias Canetti

MALTA E RELIGIÃO

      A Transformação das Maltas

     Todas as formas da malta, conforme descritas aqui, tendem a transformar-se umas nas outras. Constante como é em sua repetição, e por mais idêntica que seja a cada reaparecimento, a malta tem sempre algo de fluido em seu transcurso isolado e único.
      Já o atingimento da meta que almeja tem por consequência uma modificação inevitável em sua constituição. A caçada conjunta que obteve algum resultado conduz a uma partilha. À exceção dos casos “puros”, nos quais se trata unicamente de massacrar o inimigo, as vitórias degeneram em saque. — A lamentação termina com a remoção do morto; tão logo tenha sido colocado onde se quer, tão logo as pessoas sintam-se mais ou menos seguras em relação a ele, a excitação da malta arrefece, e seus integrantes se dispersam. Contudo, isso não esgota verdadeiramente o relacionamento com o morto. Supõe-se que ele siga vivendo em alguma parte, e, para obter auxílio ou conselho, é possível que voltem a mencioná-lo entre os vivos. Evocando seu morto, a malta de lamentação reconstitui-se, por assim dizer, mas o objetivo de sua conduta é agora oposto ao original. De alguma forma, o morto, antes removido, é trazido de volta para junto dos seus. — A dança dos búfalos dos mandans culmina com a chegada dos búfalos. Uma vez bem-sucedida, a malta de multiplicação transforma-se numa festa de partilha.
     Toda forma de malta tem, como se vê, um negativo no qual ela se transforma. Mas, paralelamente a essa passagem para o negativo, que parece natural, há ainda um movimento de natureza bastante diversa: a transformação umas nas outras de maltas distintas.
      Lembremos um tal caso, recordando aquela lenda dos arandas versando sobre seus antepassados. Um vigoroso canguru é pisoteado por muitos homens até a morte. Nesse ato, vitimado por seus companheiros, morre o próprio caçador, que é por eles enterrado solenemente: a malta de caça transforma-se aí em malta de lamentação. — Já se falou aqui em detalhes sobre o sentido da comunhão, onde a malta de caça transforma-se em malta de multiplicação. — Uma outra transformação pode ser encontrada no início das guerras: um homem é morto, e os membros de sua tribo lamentam sua morte; em seguida, porém, reúnem-se num grupo e partem para vingar tal morte no inimigo. A malta de lamentação converte-se aí em malta de guerra.
     A transformação das maltas é um processo notável. Ela ocorre por toda parte e deixa-se investigar nas mais diferentes esferas da atividade humana. Sem o seu conhecimento preciso, tornam-se absolutamente incompreensíveis os acontecimentos sociais, sejam de que natureza forem.
     Algumas dessas transformações foram retiradas de contextos mais amplos e estabelecidas. Adquiriram seu sentido particular e tornaram-se um ritual. Tais transformações realizam-se continuamente, e sempre de maneira idêntica. Elas constituem o verdadeiro conteúdo, o cerne de toda crença significativa. A dinâmica das maltas, e a maneira particular pela qual elas se interpenetram, explica a ascensão das religiões universais.
     A seguir, contemplar-se-ão algumas poucas formações sociais ou religiosas segundo as maltas que nelas predominam. Verificar-se-á, então, que existem religiões de caça e de guerra, de multiplicação e de lamentação. A despeito de seus parcos resultados, a caça encontra-se no centro da vida social dos leles, no Congo Belga. Os jivaros do Equador vivem exclusivamente para a guerra. Os índios pueblos, no Sul dos Estados Unidos, distinguem-se pela atrofia entre eles das atividades de caça e de guerra, e por uma espantosa repressão da lamentação: sua vida volta-se inteiramente para a multiplicação pacífica.
     Para a compreensão das religiões de lamentação, que em tempos históricos recobriram e reuniram a terra, voltar-nos-emos para o cristianismo e para uma variação do islamismo. Uma descrição do muharram dos xiitas deverá confirmar a posição central que a lamentação ocupa nesse tipo de crença. O derradeiro capítulo deste segmento será dedicado à descida do fogo sagrado da Páscoa na igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Trata-se da festa da ressurreição, na qual desemboca a lamentação cristã, sua justificativa e seu significado.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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