sábado, 5 de julho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.2)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

3.  Os Judeus e a Sociedade
     3.4 - O caso Dreyfus
          3.4.2 - A Terceira República e os Judeus da França
     Entre 1880 e 1888 a Companhia do Panamá, sob a direção de Lesseps, que havia construído o canal de Suez, conseguiu muito pouco progresso prático em sua tarefa. Não obstante, chegou a levantar, na França, durante esse período, nada menos que 1.335.538.454 francos em empréstimos particulares.[18] Trata-se de um êxito tão significativo quanto é sabido que a classe média francesa era cautelosa em questões de dinheiro. O segredo do sucesso da companhia jaz no fato de que seus vários empréstimos públicos eram invariavelmente apoiados pelo Parlamento. A construção do canal era geralmente considerada como um serviço público e nacional, e não uma iniciativa privada. Portanto, quando a Companhia foi à falência, foi a política exterior da república que realmente sofreu o choque. Mas muito mais importante foi a ruína de cerca de meio milhão de franceses da classe média. Tanto a imprensa como a Comissão Parlamentar de Inquérito chegaram praticamente à mesma conclusão: a companhia já estava falida havia muitos anos. Afirmaram que Lesseps vivia com esperanças de milagre, acalentando o sonho de que novos fundos viriam de alguma forma permitir a continuação da obra. Para conseguir a aprovação de novos empréstimos, foi levado a subornar a imprensa, metade do Parlamento e todas as autoridades superiores. Isso, contudo, tinha exigido o emprego de intermediários que, por sua vez, haviam pedido comissões exorbitantes. Assim, o que havia inicialmente inspirado a confiança do público na empresa, ou seja, o apoio do Parlamento aos empréstimos, tornou-se no fim o fator que converteu um negócio particular não muito seguro em colossal falcatrua.
     Não havia judeus entre os membros do Parlamento subornados, nem na diretoria da companhia. Contudo, foram Jacques Reinach e Cornélius Herz, judeus, que disputaram a honra de distribuir propinas entre os membros da Câmara, o primeiro atuando sobre a ala direita dos partidos burgueses, e o segundo sobre os radicais, que compreendiam os partidos anticlericais da pequena burguesia.[19] Reinach foi conselheiro financeiro do governo durante os anos 80 [20] e, portanto, era encarregado de suas relações com a Companhia do Panamá, enquanto o papel de Herz era duplo: por um lado, servia a Reinach como elemento de ligação com as alas radicais do Parlamento, às quais o próprio Reinach não tinha acesso; por outro, esse ofício lhe dava um conhecimento tão grande do alcance da corrupção que ele podia constantemente chantagear o patrão e envolvê-lo cada vez mais.[21]
     Naturalmente, havia um bom número de negociantes judeus menos importantes trabalhando tanto para Herz como para Reinach. Seus nomes, contudo, podem continuar a repousar no esquecimento em que merecidamente caíram. Quanto mais incerta era a situação da companhia, mais altas, naturalmente, eram as comissões, até que, no fim, a própria companhia recebia apenas uma pequena parte dos fundos que lhe eram destinados. Um pouco antes da falência, Herz recebeu, por uma única transação intraparlamentar, um adiantamento de nada menos que 600 mil francos. Esse adiantamento, porém, foi prematuro. O empréstimo não foi realizado, e os acionistas simplesmente haviam perdido 600 mil francos.[22] Toda a negociata terminou de modo desastroso para Reinach. Atormentado pela chantagem de Herz, acabou por cometer suicídio.[23]  Um pouco antes de morrer, contudo, havia tomado uma providência cujas consequências para a população judia da França foram das mais infelizes: havia fornecido ao Libre Parole, diário antissemita de Edouard Drumont, uma lista de membros do Parlamento subornados, os chamados "homens da remessa", impondo como única condição que o jornal deveria protegê-lo pessoalmente quando publicasse a denúncia. O Libre Parole transformou-se da noite para o dia, passando de pequena publicação politicamente insignificante a um dos mais influentes jornais do país, com circulação de 300 mil exemplares. A oportunidade proporcionada por Reinach foi usada com habilidade. A lista dos culpados foi publicada em pequenas doses, de modo que centenas de políticos tinham de viver sob tensão, dia após dia. O jornal de Drumont, e com ele toda a imprensa e movimentos antissemitas, emergiu finalmente como força perigosa na Terceira República.
     O escândalo do Panamá, que, no dizer de Drumont, tornava visível o invisível, trouxe consigo duas revelações. Primeiro, divulgou o fato de que membros do Parlamento e os funcionários públicos haviam se tornado negociantes. Segundo, mostrou que os intermediários entre a iniciativa privada (neste caso, a Companhia) e a máquina do Estado eram quase exclusivamente judeus.[24] O mais surpreendente era que todos esses judeus que trabalhavam em contato tão íntimo com a máquina do Estado eram recém-chegados à França. Até o estabelecimento da Terceira República, o manuseio das finanças do Estado tinha sido quase um monopólio dos Rothschild. A tentativa dos seus competidores, irmãos Pereire, de arrebatar de suas mãos parte desse monopólio, estabelecendo o Cré-dit Mobilier, havia terminado num acordo. E em 1882 o grupo Rothschild era ainda bastante poderoso para levar à falência a Union General, banco católico, cujo alvo real era causar a ruína dos banqueiros judeus.[25] Imediatamente após a conclusão do tratado de paz de 1871, cujas cláusulas financeiras haviam sido negociadas, no lado francês, por Rothschild e, no lado alemão, por Bleichroe-der, um antigo agente da mesma casa, os Rothschild adotaram uma política sem precedentes: declararam-se abertamente a favor dos monarquistas e contra a república.[26] A novidade disso não era a tendência monarquista, mas sim o fato de que, pela primeira vez, uma importante potência financeira judia se opunha ao regime em vigor. Até então, os Rothschild se acomodavam a qualquer sistema político que estivesse no poder. Parecia, portanto, que a república era a primeira forma de governo que não precisava deles.
     Tanto a influência política dos judeus como a sua condição social resultavam do fato de que eles constituíam um grupo fechado, que trabalhava diretamente para o Estado, sendo protegidos por ele em virtude de serviços especiais que prestavam. A ligação íntima e imediata com a máquina do governo só era possível enquanto o Estado permanecesse distanciado do povo e enquanto as classes dirigentes continuassem indiferentes a administrar o Estado. Em tais circunstâncias os judeus eram, do ponto de vista do Estado, o elemento mais digno de confiança na sociedade, exatamente porque não pertenciam realmente a ela. O sistema parlamentar permitiu à burguesia liberal ganhar o controle da máquina estatal. Contudo, os judeus nunca haviam pertencido a essa burguesia e, portanto, olhavam-na com suspeita não de todo injustificada. O regime já não precisava dos judeus tanto quanto antes, pois agora era possível atingir, através do Parlamento, uma expansão financeira além dos mais ousados sonhos dos antigos monarcas mais ou menos absolutos ou mesmo constitucionais. Assim, as principais casas judias desapareceram do cenário da política financeira, e transferiram-se para os salões antissemitas da aristocracia, onde julgaram poder financiar movimentos reacionários, destinados a restaurar os velhos bons tempos.[27] Enquanto isso, outros círculos judeus, recém-chegados, começavam a tomar parte crescente na vida comercial da Terceira República. O que os Rothschild haviam quase esquecido, e isso quase lhes havia custado o poder, era o simples fato de que, uma vez que cessavam, por um momento sequer, de ter interesse ativo num determinado regime, imediatamente perdiam sua influência, não apenas sobre os círculos governamentais, mas também sobre os judeus. Os imigrantes judeus foram os primeiros a ver essa oportunidade.[28] Compreenderam demasiado bem que a república, tal como se havia desenvolvido, não era a sequência lógica da rebelião de um povo unido. Do assassínio de cerca de 20 mil membros da Comuna de Paris em 1870, da derrota militar e do colapso econômico, o que de fato emergiu foi um regime cuja capacidade de governar era duvidosa desde a sua implantação. E isso era tão verdadeiro que, três anos depois, a França à beira da ruína clamava por um ditador. Quando julgou tê-lo encontrado na pessoa do presidente, general MacMahon (cuja única pretensão ao destaque foi sua derrota em Sedan), frustrou-se, pois esse indivíduo demonstrou ser um parlamentar da velha escola, renunciando depois de alguns anos de fracassos contínuos (1879). Enquanto isso, porém, a sociedade paulatinamente demonstrava que a única política que a interessava consistia na defesa dos capitais investidos, mesmo que o método certo fosse a corrupção.[29] Depois de 1881, a trapaça (para citar Léon Say) tornou-se a única lei.
     Já se observou com justiça que, nesse período da história francesa, todo partido político tinha "seu" judeu, do mesmo modo como antes cada casa real havia tido um judeu-da-corte.[30] No entanto, a diferença era profunda. O investimento de capital judeu no Estado havia contribuído para dar aos judeus um papel produtivo na economia da Europa. Sem sua ajuda, o desenvolvimento do Estado-nação no século XVIII e de seu serviço civil independente teria sido inconcebível. Era, afinal, a esses judeus-da-corte que a população judaica da Europa centro ocidental devia sua emancipação. As duvidosas transações de Reinach e de seus cúmplices nem chegaram a levar à riqueza permanente.[31] Tudo o que fizeram foi envolver em trevas mais profundas as relações misteriosas e escandalosas existentes entre o negócio e a política. Esses parasitas de um corpo corrupto serviam para proporcionar a uma sociedade completamente decadente um álibi extremamente perigoso. Como eram judeus, tornava-se possível transformá-los em bodes expiatórios quando fosse mister aplacar a indignação do público. Depois, as coisas podiam continuar como dantes. Os antissemitas podiam imediatamente apontar para os parasitas judeus de uma sociedade corrupta para "provar" que todos os judeus de toda parte não passavam de uma espécie de cupim que infestava o corpo do povo, o qual, de outro modo, seria sadio. A eles não importava que a corrupção do corpo político houvesse começado sem o auxílio dos judeus; que a política dos negociantes (numa sociedade burguesa à qual os judeus não haviam pertencido) e seu ideal de concorrência ilimitada houvessem levado à desintegração do Estado na política partidária; que as classes governantes houvessem demonstrado não serem capazes de proteger os seus próprios interesses e muito menos os do país como um todo. Os antissemitas, que se diziam patriotas, introduziram essa nova espécie de sentimento nacional, que consiste primordialmente no completo encobertamente dos defeitos de um povo e na ampla condenação dos que a ele não pertencem.
     Os judeus podiam permanecer como grupo separado fora da sociedade somente enquanto uma máquina estatal mais ou menos homogênea estável pudesse utilizá-los e estivesse interessada em protegê-los. A decadência da máquina estatal trouxe a dissolução das cerradas fileiras do povo judeu, que havia tanto tempo estava ligado a ela. O primeiro sinal disso surgiu nos negócios levados a efeito pelos judeus franceses recém-naturalizados, sobre os quais seus irmãos nativos haviam perdido o controle, de modo semelhante ao que ocorreu na Alemanha no período inflacionário. Os recém-chegados preencheram as lacunas entre o mundo comercial e o Estado.
     Muito mais desastroso foi outro processo que também começou nessa época, e que foi imposto de cima. A dissolução do Estado em facções, embora destruísse a fechada sociedade dos judeus, não os forçava para um vácuo onde pudessem continuar a vegetar, fora do Estado e da sociedade. Para isso, os judeus eram demasiado ricos e, numa época em que o dinheiro era um dos requisitos principais do poder, demasiado poderosos. Em vez disso, tendiam a ser absorvidos pela variedade de "círculos" sociais, de acordo com suas inclinações políticas ou, mais frequentemente, suas conexões sociais. Esse fato, porém, não levou ao seu desaparecimento. Pelo contrário, mantiveram certas relações com a máquina do Estado e continuaram, embora de modo totalmente diferente, a manipular os negócios do Estado. Assim, a despeito de sua conhecida oposição à Terceira República, não foi outro senão Rothschild quem levou a cabo a colocação do empréstimo russo, enquanto Arthur Meyer, embora batizado e monarquista confesso, estava envolvido no escândalo do Panamá. Mas, se os judeus haviam antes constituído um grupo forte e coeso, cuja utilidade para o Estado era óbvia, estavam agora divididos em círculos mutuamente antagônicos, embora todos dedicados ao mesmo fim de ajudar a sociedade a enriquecer às custas do Estado.

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[18] Walter Frank, Demokratie und Nationalismus in Frankreich [Democracia e nacionalismo na França], Hamburgo, 1933, p. 273.
[19] Georges Suarez, La vie orgueilleuse de Clémenceau, Paris, 1930, p. 156.
[20] Tal, por exemplo, foi o testemunho do ex-ministro, Rouvier, perante a Comissão de Inquérito.
[21]  Barres (citado por Bernanos, op. cit., p. 271) é sucinto a respeito do assunto: "Sempre que Reinach engolia alguma coisa, era Cornélius Herz quem sabia como fazê-lo vomitar".
[22] Cf. Frank, op. cit., no capítulo intitulado "Panamá"; cf. Suarez, op. cit., p. 155.
[23] A briga entre Reinach e Herz dá ao escândalo do Panamá um ar de gangsterismo incomum no século XIX. Resistindo à chantagem de Herz, Reinach chegou a recrutar o auxílio de ex-inspetores de polícia para pôr um preço de 10 mil francos sobre a cabeça do rival; cf. Suarez, op. cit., p. 157.
[24]  Cf. Levaillant, "La genèse de l'antisémitisme sous Ia Troisième Republique", na Révue des ÉtudesJuives, vol. LIII (1907), p. 97.
[25] Ver Bernard Lazare, Contre lantisémitisme: histoire d une polemique, Paris, 18%, e Jeanine Verdés-Leroux, Scandalefinancier et antisémitisme catholique, 1969.
[26] Quanto à cumplicidade dos bancos no movimento orleanista, ver G. Charensol, op. cit. Um dos porta-vozes desse poderoso grupo era Arthur Meyer, editor do Gaulois. Judeu batizado, Meyer pertencia à mais virulenta facção dos adversários de Dreyfus. Ver Clémenceau, "Le spectacle du jour", em L Iniquité, 1899; ver, ainda os registros no diário de Hohenlohe, em Herzog, op. cit., com data de 11 de junho de 1898.
[27]  Quanto às inclinações bonapartistas da época, ver Frank, op. cit., baseado em documentos inéditos tirados dos arquivos do Ministério do Exterior alemão.
[28]  Jacques Reinach nasceu na Alemanha, recebeu um baronato italiano e naturalizou-se francês. Cornélius Herz nasceu na França, filho de pais bávaros. Emigrou para os Estados Unidos, onde adquiriu a cidadania norte-americana e fez fortuna. Para maiores detalhes, Brogan, op. cit., p. 268ss. Característico do modo como os judeus nativos desapareceram do serviço público é o fato de que, assim que começaram a ir mal os negócios da Companhia do Panamá, Lévy-Crémieux, seu primeiro consultor financeiro, foi substituído por Reinach; ver Brogan, op. cit., livro VI, capítulo 2.
[29] Georges Lachapelle, Les finances de Ia Troisième Republique, Paris, 1937, pp. 54ss, descreve em detalhe como a burocracia assumiu o controle dos fundos públicos e como a Comissão de Orçamento era inteiramente governada por interesses privados. Com relação à posição econômica dos membros do Parlamento, ver Bernanos. op. cit., p. 192: "Muitos deles, como Gambetta, não tinham nem roupa de baixo para trocar".
[30]  Como observa Frank (op. cit., pp. 321ss), a direita tinha seu Arthur Meyer; o boulan-gerismo, seu Alfred Naquet; os oportunistas, seu Reinach; e os radicais, seu dr. Cornélio Herz.
[31] A esses recém-chegados aplica-se a acusação de Drumont (Les trétaux du succès, 1900, p. 237): "Esses grandes judeus que começam do nada e conseguem tudo (...) vêm sabe Deus de onde, vivem na miséria, morrem não se sabe como. (...) Eles não chegam: simplesmente acontecem. Não morrem, evanescem-se".

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