Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
3.4 - O caso Dreyfus
3.4.2 - A Terceira República e os Judeus da França
Entre 1880 e 1888 a Companhia do Panamá, sob a direção de Lesseps, que havia construído o
canal de Suez, conseguiu muito pouco progresso prático em sua tarefa. Não obstante, chegou a
levantar, na França, durante esse período, nada menos que 1.335.538.454 francos em
empréstimos particulares.[18] Trata-se de um êxito tão significativo quanto é sabido que a classe
média francesa era cautelosa em questões de dinheiro. O segredo do sucesso da companhia jaz
no fato de que seus vários empréstimos públicos eram invariavelmente apoiados pelo
Parlamento. A construção do canal era geralmente considerada como um serviço público e
nacional, e não uma iniciativa privada. Portanto, quando a Companhia foi à falência, foi a
política exterior da república que realmente sofreu o choque. Mas muito mais importante foi a
ruína de cerca de meio milhão de franceses da classe média. Tanto a imprensa como a Comissão
Parlamentar de Inquérito chegaram praticamente à mesma conclusão: a companhia já estava falida
havia muitos anos. Afirmaram que Lesseps vivia com esperanças de milagre, acalentando o
sonho de que novos fundos viriam de alguma forma permitir a continuação da obra. Para
conseguir a aprovação de novos empréstimos, foi levado a subornar a imprensa, metade do
Parlamento e todas as autoridades superiores. Isso, contudo, tinha exigido o emprego de
intermediários que, por sua vez, haviam pedido comissões exorbitantes. Assim, o que havia
inicialmente inspirado a confiança do público na empresa, ou seja, o apoio do Parlamento aos
empréstimos, tornou-se no fim o fator que converteu um negócio particular não muito seguro
em colossal falcatrua.
Não havia judeus entre os membros do Parlamento subornados, nem na diretoria da companhia.
Contudo, foram Jacques Reinach e Cornélius Herz, judeus, que disputaram a honra de distribuir
propinas entre os membros da Câmara, o primeiro atuando sobre a ala direita dos partidos
burgueses, e o segundo sobre os radicais, que compreendiam os partidos anticlericais da
pequena burguesia.[19] Reinach foi conselheiro financeiro do governo durante os anos 80 [20] e,
portanto, era encarregado de suas relações com a Companhia do Panamá, enquanto o papel de
Herz era duplo: por um lado, servia a Reinach como elemento de ligação com as alas radicais do
Parlamento, às quais o próprio Reinach não tinha acesso; por outro, esse ofício lhe dava um
conhecimento tão grande do alcance da corrupção que ele podia constantemente chantagear o
patrão e envolvê-lo cada vez mais.[21]
Naturalmente, havia um bom número de negociantes judeus menos importantes trabalhando
tanto para Herz como para Reinach. Seus nomes, contudo, podem continuar a repousar no
esquecimento em que merecidamente caíram. Quanto mais incerta era a situação da companhia,
mais altas, naturalmente, eram as comissões, até que, no fim, a própria companhia recebia
apenas uma pequena parte dos fundos que lhe eram destinados. Um pouco antes da falência,
Herz recebeu, por uma única transação intraparlamentar, um adiantamento de nada menos que
600 mil francos. Esse adiantamento, porém, foi prematuro. O empréstimo não foi realizado, e os
acionistas simplesmente haviam perdido 600 mil francos.[22] Toda a negociata terminou de modo
desastroso para Reinach. Atormentado pela chantagem de Herz, acabou por cometer suicídio.[23] Um pouco antes de morrer, contudo, havia tomado uma providência cujas consequências para a
população judia da França foram das mais infelizes: havia fornecido ao Libre Parole, diário antissemita de Edouard Drumont, uma lista de membros
do Parlamento subornados, os chamados "homens da remessa", impondo como única condição
que o jornal deveria protegê-lo pessoalmente quando publicasse a denúncia. O Libre Parole
transformou-se da noite para o dia, passando de pequena publicação politicamente insignificante
a um dos mais influentes jornais do país, com circulação de 300 mil exemplares. A
oportunidade proporcionada por Reinach foi usada com habilidade. A lista dos culpados foi
publicada em pequenas doses, de modo que centenas de políticos tinham de viver sob tensão,
dia após dia. O jornal de Drumont, e com ele toda a imprensa e movimentos antissemitas,
emergiu finalmente como força perigosa na Terceira República.
O escândalo do Panamá, que, no dizer de Drumont, tornava visível o invisível, trouxe consigo
duas revelações. Primeiro, divulgou o fato de que membros do Parlamento e os funcionários
públicos haviam se tornado negociantes. Segundo, mostrou que os intermediários entre a
iniciativa privada (neste caso, a Companhia) e a máquina do Estado eram quase exclusivamente
judeus.[24] O mais surpreendente era que todos esses judeus que trabalhavam em contato tão
íntimo com a máquina do Estado eram recém-chegados à França. Até o estabelecimento da
Terceira República, o manuseio das finanças do Estado tinha sido quase um monopólio dos
Rothschild. A tentativa dos seus competidores, irmãos Pereire, de arrebatar de suas mãos parte
desse monopólio, estabelecendo o Cré-dit Mobilier, havia terminado num acordo. E em 1882 o
grupo Rothschild era ainda bastante poderoso para levar à falência a Union General, banco
católico, cujo alvo real era causar a ruína dos banqueiros judeus.[25] Imediatamente após a
conclusão do tratado de paz de 1871, cujas cláusulas financeiras haviam sido negociadas, no
lado francês, por Rothschild e, no lado alemão, por Bleichroe-der, um antigo agente da mesma
casa, os Rothschild adotaram uma política sem precedentes: declararam-se abertamente a favor
dos monarquistas e contra a república.[26] A novidade disso não era a tendência monarquista, mas
sim o fato de que, pela primeira vez, uma importante potência financeira judia se opunha ao
regime em vigor. Até então, os Rothschild se acomodavam a qualquer sistema político que
estivesse no poder. Parecia, portanto, que a república era a primeira forma de governo que não
precisava deles.
Tanto a influência política dos judeus como a sua condição social resultavam do fato de que
eles constituíam um grupo fechado, que trabalhava diretamente para o Estado, sendo protegidos
por ele em virtude de serviços especiais que prestavam. A ligação íntima e imediata com a máquina do governo só era possível enquanto
o Estado permanecesse distanciado do povo e enquanto as classes dirigentes continuassem
indiferentes a administrar o Estado. Em tais circunstâncias os judeus eram, do ponto de vista do
Estado, o elemento mais digno de confiança na sociedade, exatamente porque não pertenciam
realmente a ela. O sistema parlamentar permitiu à burguesia liberal ganhar o controle da
máquina estatal. Contudo, os judeus nunca haviam pertencido a essa burguesia e, portanto,
olhavam-na com suspeita não de todo injustificada. O regime já não precisava dos judeus tanto
quanto antes, pois agora era possível atingir, através do Parlamento, uma expansão financeira
além dos mais ousados sonhos dos antigos monarcas mais ou menos absolutos ou mesmo
constitucionais. Assim, as principais casas judias desapareceram do cenário da política
financeira, e transferiram-se para os salões antissemitas da aristocracia, onde julgaram poder
financiar movimentos reacionários, destinados a restaurar os velhos bons tempos.[27] Enquanto
isso, outros círculos judeus, recém-chegados, começavam a tomar parte crescente na vida
comercial da Terceira República. O que os Rothschild haviam quase esquecido, e isso quase
lhes havia custado o poder, era o simples fato de que, uma vez que cessavam, por um momento
sequer, de ter interesse ativo num determinado regime, imediatamente perdiam sua influência,
não apenas sobre os círculos governamentais, mas também sobre os judeus. Os imigrantes
judeus foram os primeiros a ver essa oportunidade.[28] Compreenderam demasiado bem que a
república, tal como se havia desenvolvido, não era a sequência lógica da rebelião de um povo
unido. Do assassínio de cerca de 20 mil membros da Comuna de Paris em 1870, da derrota
militar e do colapso econômico, o que de fato emergiu foi um regime cuja capacidade de
governar era duvidosa desde a sua implantação. E isso era tão verdadeiro que, três anos depois,
a França à beira da ruína clamava por um ditador. Quando julgou tê-lo encontrado na pessoa do
presidente, general MacMahon (cuja única pretensão ao destaque foi sua derrota em Sedan),
frustrou-se, pois esse indivíduo demonstrou ser um parlamentar da velha escola, renunciando
depois de alguns anos de fracassos contínuos (1879). Enquanto isso, porém, a sociedade
paulatinamente demonstrava que a única política que a interessava consistia na defesa dos
capitais investidos, mesmo que o método certo fosse a corrupção.[29] Depois de 1881, a trapaça
(para citar Léon Say) tornou-se a única lei.
Já se observou com justiça que, nesse período da história francesa, todo partido político tinha
"seu" judeu, do mesmo modo como antes cada casa real havia tido um judeu-da-corte.[30] No
entanto, a diferença era profunda. O investimento de capital judeu no Estado havia contribuído
para dar aos judeus um papel produtivo na economia da Europa. Sem sua ajuda, o
desenvolvimento do Estado-nação no século XVIII e de seu serviço civil independente teria sido
inconcebível. Era, afinal, a esses judeus-da-corte que a população judaica da Europa centro
ocidental devia sua emancipação. As duvidosas transações de Reinach e de seus cúmplices nem
chegaram a levar à riqueza permanente.[31] Tudo o que fizeram foi envolver em trevas mais
profundas as relações misteriosas e escandalosas existentes entre o negócio e a política. Esses
parasitas de um corpo corrupto serviam para proporcionar a uma sociedade completamente
decadente um álibi extremamente perigoso. Como eram judeus, tornava-se possível transformá-los em bodes expiatórios quando fosse mister aplacar a indignação do público. Depois, as coisas
podiam continuar como dantes. Os antissemitas podiam imediatamente apontar para os parasitas
judeus de uma sociedade corrupta para "provar" que todos os judeus de toda parte não passavam
de uma espécie de cupim que infestava o corpo do povo, o qual, de outro modo, seria sadio. A
eles não importava que a corrupção do corpo político houvesse começado sem o auxílio dos
judeus; que a política dos negociantes (numa sociedade burguesa à qual os judeus não haviam
pertencido) e seu ideal de concorrência ilimitada houvessem levado à desintegração do Estado na política partidária; que as classes governantes houvessem demonstrado não serem capazes de
proteger os seus próprios interesses e muito menos os do país como um todo. Os antissemitas,
que se diziam patriotas, introduziram essa nova espécie de sentimento nacional, que consiste
primordialmente no completo encobertamente dos defeitos de um povo e na ampla condenação
dos que a ele não pertencem.
Os judeus podiam permanecer como grupo separado fora da sociedade somente enquanto uma
máquina estatal mais ou menos homogênea estável pudesse utilizá-los e estivesse interessada
em protegê-los. A decadência da máquina estatal trouxe a dissolução das cerradas fileiras do
povo judeu, que havia tanto tempo estava ligado a ela. O primeiro sinal disso surgiu nos
negócios levados a efeito pelos judeus franceses recém-naturalizados, sobre os quais seus
irmãos nativos haviam perdido o controle, de modo semelhante ao que ocorreu na Alemanha no
período inflacionário. Os recém-chegados preencheram as lacunas entre o mundo comercial e o
Estado.
Muito mais desastroso foi outro processo que também começou nessa época, e que foi imposto
de cima. A dissolução do Estado em facções, embora destruísse a fechada sociedade dos judeus,
não os forçava para um vácuo onde pudessem continuar a vegetar, fora do Estado e da
sociedade. Para isso, os judeus eram demasiado ricos e, numa época em que o dinheiro era um
dos requisitos principais do poder, demasiado poderosos. Em vez disso, tendiam a ser
absorvidos pela variedade de "círculos" sociais, de acordo com suas inclinações políticas ou,
mais frequentemente, suas conexões sociais. Esse fato, porém, não levou ao seu
desaparecimento. Pelo contrário, mantiveram certas relações com a máquina do Estado e
continuaram, embora de modo totalmente diferente, a manipular os negócios do Estado. Assim,
a despeito de sua conhecida oposição à Terceira República, não foi outro senão Rothschild
quem levou a cabo a colocação do empréstimo russo, enquanto Arthur Meyer, embora batizado
e monarquista confesso, estava envolvido no escândalo do Panamá. Mas, se os judeus haviam
antes constituído um grupo forte e coeso, cuja utilidade para o Estado era óbvia, estavam agora
divididos em círculos mutuamente antagônicos, embora todos dedicados ao mesmo fim de
ajudar a sociedade a enriquecer às custas do Estado.
continua página 111...
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Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.2)
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[18] Walter Frank, Demokratie und Nationalismus in Frankreich [Democracia e nacionalismo na França], Hamburgo, 1933, p. 273.
[19] Georges Suarez, La vie orgueilleuse de Clémenceau, Paris, 1930, p. 156.
[20] Tal, por exemplo, foi o testemunho do ex-ministro, Rouvier, perante a Comissão de Inquérito.
[21] Barres (citado por Bernanos, op. cit., p. 271) é sucinto a respeito do assunto: "Sempre que Reinach engolia alguma
coisa, era Cornélius Herz quem sabia como fazê-lo vomitar".
[22] Cf. Frank, op. cit., no capítulo intitulado "Panamá"; cf. Suarez, op. cit., p. 155.
[23] A briga entre Reinach e Herz dá ao escândalo do Panamá um ar de gangsterismo incomum no século XIX. Resistindo à
chantagem de Herz, Reinach chegou a recrutar o auxílio de ex-inspetores de polícia para pôr um preço de 10 mil francos
sobre a cabeça do rival; cf. Suarez, op. cit., p. 157.
[24] Cf. Levaillant, "La genèse de l'antisémitisme sous Ia Troisième Republique", na Révue des ÉtudesJuives, vol. LIII
(1907), p. 97.
[25] Ver Bernard Lazare, Contre lantisémitisme: histoire d une polemique, Paris, 18%, e Jeanine Verdés-Leroux,
Scandalefinancier et antisémitisme catholique, 1969.
[26] Quanto à cumplicidade dos bancos no movimento orleanista, ver G. Charensol, op. cit. Um dos porta-vozes desse
poderoso grupo era Arthur Meyer, editor do Gaulois. Judeu batizado, Meyer pertencia à mais virulenta facção dos
adversários de Dreyfus. Ver Clémenceau, "Le spectacle du jour", em L Iniquité, 1899; ver, ainda os registros no diário de
Hohenlohe, em Herzog, op. cit., com data de 11 de junho de 1898.
[27] Quanto às inclinações bonapartistas da época, ver Frank, op. cit., baseado em documentos inéditos tirados dos arquivos do
Ministério do Exterior alemão.
[28] Jacques Reinach nasceu na Alemanha, recebeu um baronato italiano e naturalizou-se francês. Cornélius Herz nasceu na
França, filho de pais bávaros. Emigrou para os Estados Unidos, onde adquiriu a cidadania norte-americana e fez fortuna. Para
maiores detalhes, Brogan, op. cit., p. 268ss. Característico do modo como os judeus nativos desapareceram do serviço público é o
fato de que, assim que começaram a ir mal os negócios da Companhia do Panamá, Lévy-Crémieux, seu primeiro consultor
financeiro, foi substituído por Reinach; ver Brogan, op. cit., livro VI, capítulo 2.
[29] Georges Lachapelle, Les finances de Ia Troisième Republique, Paris, 1937, pp. 54ss, descreve em detalhe como a burocracia
assumiu o controle dos fundos públicos e como a Comissão de Orçamento era inteiramente governada por interesses privados. Com relação à posição econômica dos membros do Parlamento, ver Bernanos. op. cit., p. 192: "Muitos deles, como Gambetta, não
tinham nem roupa de baixo para trocar".
[30] Como observa Frank (op. cit., pp. 321ss), a direita tinha seu Arthur Meyer; o boulan-gerismo, seu Alfred Naquet; os
oportunistas, seu Reinach; e os radicais, seu dr. Cornélio Herz.
[31] A esses recém-chegados aplica-se a acusação de Drumont (Les trétaux du succès, 1900, p. 237): "Esses grandes judeus que
começam do nada e conseguem tudo (...) vêm sabe Deus de onde, vivem na miséria, morrem não se sabe como. (...) Eles não
chegam: simplesmente acontecem. Não morrem, evanescem-se".
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