A Montanha Mágica
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal
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No seu compartimento da sacada, Hans Castorp classificava uma planta, que se achava
vegetando em numerosos lugares desde que começara o verão astronômico e os dias se tornavam
mais curtos. Tratava-se da aquilégia, espécie de ranunculácea que cresce em forma de arbusto, de
longo caule, com flores azuis ou violetas, mas também castanho-avermelhadas, e com folhas
bastante amplas, de aspecto herbáceo. A planta encontrava-se aqui e ali, mas abundava
especialmente naquele sítio tranquilo onde Hans Castorp a vira pela primeira vez, fazia quase um
ano: o remoto desfiladeiro no meio do bosque atravessado pelo torrentoso e murmurante regato,
com a pequena ponte e o banquinho onde terminara o seu passeio prematuro, arriscado e
prejudicial, e ao qual voltava de vez em quando.
Não ficava longe para quem se encaminhasse ali com um espírito menos empreendedor
do que revelara Hans Castorp naquele dia. Partia-se da meta final das corridas de trenó, na
“aldeia”, e subia-se parte da encosta trilhando a vereda através do bosque, cujas pontes de
madeira transpunham a pista de trenó, que descia da Schatzalp. Sem perda de tempo devido a
desvios, cantigas e descansos, era possível alcançar o recanto pitoresco em aproximadamente
vinte minutos. Quando Joachim se via forçado a ficar em casa, em virtude de certas obrigações
do serviço – exames, radiografias, análises de sangue, injeções ou pesagens – Hans Castorp
aproveitava dias de bom tempo para caminhar até lá, depois do segundo café da manhã, e às
vezes já depois do primeiro; acontecia também que ele ocupasse as horas entre o chá da tarde e o
jantar numa visita ao seu lugar predileto, a fim de passar algum tempo sentado no banco onde
outrora o acometera a violenta hemorragia. Com a cabeça inclinada, escutava então o marulhar da
torrente e contemplava a paisagem a rodeá-lo, com a multidão de aquilégias azuis que novamente
floresciam no fundo do vale.
Era só para isso que ia lá? Não! Deixava-se ficar no banco, para estar sozinho, para
entregar-se às suas recordações, para recapitular as impressões e as aventuras e para refletir sobre
todas essas coisas. Eram numerosas, variadas e ao mesmo tempo difíceis de coordenar, pois
afiguravam-se-lhe multiplamente entrelaçadas e confundiam-se a tal ponto que mal se podia
distinguir a realidade dos meros pensamentos, devaneios e produtos da imaginação. Mas todas
eram de natureza aventurosa, tanto que a sua lembrança fazia parar ou martelar o coração do
jovem, que continuava emocionável como sempre, desde o primeiro dia que passara ali em cima.
Ou provinha, porventura, a estranha agitação do seu coração impulsivo do simples raciocínio de
que, nesse mesmo lugar onde, num instante de vitalidade reduzida, lhe aparecera Pribislav Hippe
em carne e osso, a aquilégia estava em flor, não “ainda”, mas “novamente” e que as projetadas
“três semanas” dentro em breve se transformariam num ano inteiro?
Por outro lado, já não lhe sangrava o nariz ao sentar-se no banco, ao lado do regato
torrentoso; essa fase já passara. Sua aclimatação, cujas dificuldades Joachim lhe predissera logo no
começo, e que realmente se mostrara um tanto penosa, realizara progressos; depois de onze
meses podia ser considerada completa, e nada mais se devia esperar nessa direção. As reações
químicas do seu estômago tinham-se regularizado e adaptado. O Maria Mancini recuperara o
antigo sabor, e os nervos das ressequidas mucosas de Hans Castorp havia muito se regozijavam
novamente com o aroma dessa marca pouco dispendiosa, que o jovem, por uma espécie de
lealdade, ainda mandava vir de Bremen, cada vez que as suas provisões se iam esgotando, embora
produtos tentadores se oferecessem nas vitrines de Davos. Não formava o Maria um certo elo
entre ele, o arrebatado, e a sua velha pátria, na planície? O charuto não estabelecia e conservava
essas relações de um modo mais eficaz do que faziam, por exemplo, os cartões-postais que Hans
Castorp de vez em quando dirigia aos tios lá de baixo, a intervalos que se tornavam cada vez
maiores, na mesma proporção em que ele próprio, acomodando-se aos conceitos ali vigentes,
assumia em face do tempo uma atitude mais generosa? Eram de preferência cartões com vistas
bonitas do vale, ora coberto de neve, ora no seu aspecto estival; só ofereciam ao remetente o
espaço justo para relatar o último boletim médico, o resultado de um exame mensal ou geral, na
forma adequada aos conhecimentos dos parentes; isto é, para participar-lhes, por exemplo, que as
observações óticas e acústicas acabavam de registrar uma incontestável melhora, mas que ele
ainda não estava desintoxicado, e que a temperatura levemente elevada que o termômetro
continuava mostrando tinha a sua origem em alguns pequenos lugares que persistiam, mas
seguramente desapareceriam de todo, contanto que se tivesse paciência; dessa forma evitava-se o
desgosto de ter de voltar a Davos algum tempo depois. Hans Castorp podia ter certeza de que
ninguém esperava dele trabalhos epistolares mais extensos; suas missivas não se endereçavam a
nenhuma esfera humanista e eloquente. As respostas que recebia tampouco eram muito
expansivas. Costumavam acompanhar as ordens de pagamento que vinham de casa, os juros da
sua herança paterna, tão imponentes, na moeda suíça, que nunca conseguia gastá-los por
completo, antes da chegada de uma nova remessa. As respostas consistiam em algumas linhas
escritas à máquina, assinadas por James Tienappel, com lembranças e votos de restabelecimento
da parte do tio-avô e às vezes também do navegante Peter.
Segundo Hans Castorp comunicou aos seus, o conselheiro deixara, havia pouco, de
ministrar-lhe aquelas injeções. O enfermo não se dera bem com elas, que lhe causavam dores de
cabeça, falta de apetite, perda de peso e grande cansaço; tinham começado por fazer subir-lhe a
temperatura, e mais tarde não haviam conseguido acabar com ela. A febre continuava ardendo
lhe sob a face rosada, e o calor seco que ele sentia subjetivamente recordava-lhe que a
aclimatação para um filho da planície, com o seu clima úmido, consistia antes de tudo na
aquisição do hábito de não se habituar; nem o próprio Radamanto chegava a consegui-la, como
evidenciava a sua tez azulada. “Há muitos que nunca se acostumam”, dissera Joachim, e parecia
que era esse o caso de Hans Castorp. Pois os tremores da nuca, que haviam começado a molestá-lo pouco depois da sua chegada, não davam mostras de cessar, senão que se reproduziam
inevitavelmente durante os passeios tanto como no meio das conversas, e mesmo naquele refúgio
inundado de flores azuis, aonde o jovem se retirava para refletir sobre o complexo das suas
aventuras. Assim, aquele jeito com que Hans Lorenz Castorp gravemente apoiara o queixo no nó
da gravata, quase se tornara um vezo do neto, que, ao imitar o avô, não deixava de lembrar-se do
colarinho alto do velho, essa forma interina de golilha de gala, bem como do fundo de ouro
pálido da pia batismal, dos sons obscuros de “bis, tris, tetra” e de outras coisas afins, que o
levavam a novas reflexões acerca do curso da sua vida.
Pribislav Hippe não mais lhe aparecia em carne e osso, como fizera onze meses atrás. A
aclimatação de Hans Castorp estava terminada; as visões tinham cessado; o jovem já não jazia
estendido no banco, com o corpo posto fora de ação, enquanto o seu eu se detinha num presente
longínquo. Tais incidentes haviam deixado de ocorrer. A nitidez e a viveza dessa reminiscência,
quando a evocava, mantinham-se nos limites normais e saudáveis. Pode ser que Hans Castorp se
sentisse inspirado por ela, ao tirar do bolso a lembrança de vidro que ali guardava num envelope
forrado, dentro da sua carteira. Era uma pequena chapa que, mantida horizontalmente, paralela
ao chão, parecia preta, espelhante e opaca, mas, elevada contra a luz, aclarava-se e exibia coisas
humanísticas: a imagem transparente do corpo humano, o arcabouço das costelas, os contornos
do coração, o arco do diafragma e as bolsas do pulmão, bem como os ossos da clavícula e do
braço, e tudo isso rodeado por um invólucro pálido e vaporoso, a carne que Hans Castorp
insensatamente desfrutara na semana do carnaval. Não era de admirar que o seu coração
emocionável parasse ou se precipitasse cada vez que o jovem contemplava esse presente e depois
prosseguia fazendo o balanço ou refletindo acerca de “tudo”, encostado no espaldar tosco do
banco, com os braços cruzados, a cabeça inclinada para o ombro, ao som dos murmúrios da
torrente e à vista das flores azuis de aquilégia.
A forma sublime da vida orgânica, a figura humana, pairava diante dele, como em certa
noite gélida e estrelada, no decorrer de estudos eruditos. Seu aspecto íntimo relacionava-se, para
o jovem Hans Castorp, com numerosos problemas e discrimes, dos quais o bom Joachim talvez
não tivesse nenhuma obrigação de ocupar-se, mas que nele, como civil, despertavam uma
sensação de responsabilidade; verdade é que na planície nunca reparara neles, e provavelmente
jamais teria chegado a descobri-los, mas aqui o fazia, nesse isolamento contemplativo, onde as
pessoas olhavam de cinco mil pés de altura sobre o mundo e as criaturas e tinham as suas
próprias ideias a respeito de todas as coisas, quiçá devido a uma super excitação do corpo,
originada por venenos solúveis, e cujo calor seco lhes abrasava o rosto. Esse pensamento o fazia
lembrar-se de Settembrini, o pedagogo-tocador de realejo, cujo pai nascera na Hélade, e que
explanava o amor àquela forma sublime sob os aspectos da política, da rebelião e da eloquência,
consagrando a lança do cidadão sobre o altar da humanidade. Também pensava no camarada
Krokowski e nas práticas a que, fazia algum tempo, se entregava em companhia do assistente, no
gabinete tenebroso; cismava com respeito à natureza dupla da análise, procurando descobrir até
que ponto ela era favorável à ação e ao progresso, e onde começava a ser afim do túmulo e da sua
anatomia mal afamada. Evocava as imagens dos dois avôs, o rebelde e o conservador, que se
vestiam de preto por motivos diferentes; ponderava o valor de um e de outro. Refletia acerca de
complexos tão vastos como são a forma e a liberdade, o espírito e o corpo, a honra e a vergonha,
o tempo e a eternidade. E certa vez experimentou uma breve mas violenta vertigem ao recordar
se de que a aquilégia estava novamente em flor e o ano se fechava sobre si mesmo.
Hans Castorp usava um termo estranho para designar essa ocupação séria do seu
intelecto, à qual se dedicava no pitoresco retiro. Chamava-a “reinar”; servia-se dessa
denominação de uma brincadeira pueril, palavra da sua infância, para aplicá-la a uma distração
que lhe era cara, ainda que viesse acompanhada de terror, de vertigens, de toda espécie de
tumultos do seu coração e aumentasse o calor que lhe abrasava o rosto. Mas não lhe parecia
inconveniente que o esforço exigido por essa atividade o obrigasse a apoiar o queixo no nó da
gravata; pois essa atitude estava em harmonia com a dignidade que lhe conferia o ato de “reinar”,
em face da forma sublime que lhe pairava ante os olhos.
“Homo Dei” – assim chamara o feioso Naphta aquela forma sublime, enquanto a defendia
contra a sociologia inglesa. Seria então de admirar que Hans Castorp, devido à sua
responsabilidade civil e no interesse do seu “reino”, se julgasse na obrigação de fazer, em
companhia de Joachim, uma visita ao homenzinho? Settembrini não gostava disso; Hans Castorp
tinha bastante inteligência e sensibilidade para percebê-lo com toda a clareza. Já aquele primeiro
encontro não agradara ao humanista, que abertamente procurara evitá-lo e por razões
pedagógicas quisera proteger os jovens, particularmente Hans Castorp, contra o contato com
Naphta, embora o próprio Settembrini se desse e discutisse com ele. Assim são os educadores. A
si mesmos concedem as coisas mais interessantes, alegando já “ter idade” para elas; à juventude,
porém, proíbem-nas, pretendendo fazê-la sentir que ainda não “tem idade”. Ainda bem que ao
tocador de realejo não cabia de forma alguma proibir a Hans Castorp o que quer que fosse; nem
sequer fizera uma tentativa nesse sentido. Era suficiente que o “discípulo enfermiço” escondesse
a sua sensibilidade e fingisse alguma ingenuidade para que nada mais o impedisse de
corresponder amavelmente ao convite do pequeno Naphta. Foi o que fez, junto com Joachim,
que o acompanhou malgrado seu. Encaminharam-se à habitação de Naphta, poucos dias depois
do primeiro encontro, numa tarde de domingo, logo após o repouso principal.
Do Berghof até a casinha do portão rodeado com a parreira eram apenas poucos minutos
de descida. Os primos entraram, deixando à direita a porta do armarinho, e galgaram a estreita
escada parda que os conduzia à porta do primeiro andar. Ao lado da campainha via-se uma placa
com o nome do alfaiate Lukacek. Abriu-lhes a porta um garoto vestido com uma espécie de libré – jaqueta listrada, e polainas –, um criadinho de cabelos aparados rente e de faces coradas.
Perguntaram pelo Sr. Prof. Naphta, e como não tivessem levado cartões de visita, deram os seus
nomes, que ele prometeu repetir ao Sr. Naphta (não mencionou o título). A porta do quarto
oposta à entrada achava-se aberta e permitia um olhar à oficina, onde Lukacek, apesar do
domingo, estava costurando, sentado sobre a mesa, à moda turca. Era um homem pálido e calvo.
Sob o nariz adunco, desmedidamente grande, pendia o bigode negro com uma expressão azeda,
cobrindo as comissuras da boca.
– Bom dia! – disse Hans Castorp.
– Grütsi! – respondeu o alfaiate no dialeto suíço, se bem que este não combinasse nem
com seu nome nem com o seu aspecto, e tivesse um som artificial e esquisito.
– Trabalhando firme? – prosseguiu Hans Castorp, sacudindo a cabeça. – Mas é domingo.
– Trabalho urgente – explicou Lukacek, lacônico, e continuou cosendo.
– É coisa fina, então? – opinou Hans Castorp. – Será para uma festa ou coisa que o
valha?
O alfaiate deixou a pergunta por algum tempo sem resposta. Cortou o fio com os dentes
e voltou a enfiar a agulha. Depois fez que sim.
– Vai ficar bonito? – indagou Hans Castorp novamente. – É com mangas?
– Sim, com mangas, é para uma velha – replicou Lukacek com nítido sotaque tcheco. A
volta do criadinho interrompeu essa conversa entabulada no umbral da porta. O Sr. Naphta
convidava os senhores a entrar, anunciou o rapaz, abrindo aos jovens uma porta situada a dois ou
três passos para a direita e levantando um reposteiro. Os visitantes foram recebidos por Naphta,
que os esperava de pé sobre um tapete verde-musgo, calçando chinelos enfeitados de galões.
Ambos os primos ficaram surpreendidos diante do luxo do gabinete de trabalho, arejado
por duas janelas; chegaram a sentir-se deslumbrados, pois a pobreza da casinha, de sua escada e
do mísero corredor não deixava nem de longe prever aquilo, e o contraste dava à elegância do
aposento de Naphta um cunho de conto de fadas, que ele em realidade não tinha e tampouco
teria aos olhos de Hans Castorp e de Joachim Ziemssen. Inegavelmente, a mobília era distinta e até
suntuosa, a tal ponto que, apesar da escrivaninha e das estantes de livros, não estava de acordo
com o caráter de um gabinete de trabalho. Havia demasiada seda – seda cor de vinho, seda
purpúrea: os reposteiros que escondiam as toscas portas constavam desse material, bem como as
sanefas das janelas e os forros de um terno de móveis agrupados num dos lados mais estreitos da
peça, em frente à segunda porta e diante de um gobelino que cobria a parede na quase totalidade
da sua extensão. Eram poltronas de estilo barroco, com um leve estofamento nos braços,
dispostas em torno de uma mesa redonda, incrustada de metal, atrás da qual se achava um sofá
do mesmo estilo, guarnecido de almofadas de veludo de seda. As estantes de livros ocupavam as
partes das paredes situadas entre as duas portas. Elas, tanto como a escrivaninha, ou melhor, a
secretária provida de uma tampa de correr, e que tinha o seu lugar entre as janelas, eram de acaju
lavrado, com portas envidraçadas e revestidas de seda verde. Mas, no canto à esquerda do sofá,
via-se uma obra de arte, uma grande escultura de madeira pintada, posta sobre um pedestal
recoberto de pano vermelho; uma Pietà cujo aspecto ingênuo e expressivo até as raias do grotesco
causava profundo espanto. A Virgem era representada com uma touca, de cenho carregado,
retorcendo de tanta mágoa a boca semiaberta; tinha sobre os joelhos, o Salvador, uma figura de
erros primários nas proporções, e cuja anatomia crassamente exagerada documentava a
ignorância do artista; a cabeça caída estava crivada de espinhos; o rosto e os membros,
manchados e mesmo inundados de sangue; grossas gotas de sangue coagulado brotavam da ferida
lateral e dos sinais que os pregos haviam deixado nas mãos e nos pés. Inegavelmente, essa obra
assombrosa dava um acento particular ao aposento abundante de seda. Também o papel de
parede, que aparecia acima das estantes e ao lado das janelas, fora evidentemente escolhido pelo
sublocador: o verde das listras verticais era o mesmo do tapete macio estendido por cima de um
revestimento vermelho. Somente para o teto baixo não houvera remédio; continuava frio e cheio
de fendas. No entanto, pendia dele um pequeno lustre veneziano. As janelas achavam-se veladas
por cortinas de cor creme que chegavam até o chão.
– Viemos ter um colóquio com o senhor – disse Hans Castorp, enquanto os seus olhares
se fixavam na piedosa e horripilante escultura, lá no canto, antes do que no dono do excêntrico
gabinete. Este notava com satisfação que os primos haviam cumprido a sua palavra. Com um
gesto convidativo da mãozinha direita, Naphta quis conduzi-los até as poltronas forradas de seda.
Mas Hans Castorp, como que magnetizado, foi diretamente à Pietà de madeira e plantou-se diante
dela, com os braços fincados nos quadris e a cabeça inclinada para o lado.
– Que é isso que o senhor tem aqui? – perguntou em voz baixa. – É formidável. Onde já
se viu tamanho sofrimento? É coisa antiga, naturalmente?
– Século XIV – respondeu Naphta. – Com toda a probabilidade de origem renana.
Impressiona o senhor?
– Enormemente – disse Hans Castorp. – Quem olha isso simplesmente não pode deixar
de ficar impressionado. Eu nunca teria pensado que uma coisa pudesse ao mesmo tempo ser tão
feia – perdão! – e tão bela.
– Produtos de um mundo da alma e da expressão – replicou Naphta – são sempre feios
de tanta beleza e belos de tanta fealdade. Essa é a regra. Trata-se da beleza espiritual, não da
beleza da carne, que é absolutamente estúpida. E não só isso, ela é também abstrata –
acrescentou. – A beleza do corpo é abstrata. Unicamente a beleza interior, a da expressão
religiosa, tem realidade.
– Fico-lhe grato pela precisão com que o senhor discerniu e classificou isso – disse Hans
Castorp. – Século XIV? – repetiu, para certificar-se. – Mil trezentos e tantos? Sim, isto é a
encarnação da Idade Média. Reconheço, por assim dizer, a ideia que fiz dela nos últimos tempos.
No fundo não sabia nada a seu respeito. Sou um homem do progresso técnico, se é que me cabe
mencionar a minha pessoa. Mas aqui em cima tive diversas ocasiões para entrar em contato com
os conceitos da Idade Média. A sociologia econômica ainda não existia naqueles tempos, é
escusado dizer. Qual é o nome do artista?
Naphta deu de ombros.
– Que importa? – replicou. – Nós não deveríamos fazer essa pergunta, desde que na
época em que a obra nasceu ninguém se preocupou com ela. Isso aí não é da autoria de um
cavalheiro de marcada individualidade; é anônimo e coletivo. Provém, aliás, de uma Idade Média
muito avançada, do gótico, signum mortificationis. Nessa escultura, o senhor nada mais encontrará
daquela tendência de suavizar e de embelezar que ainda a época românica julgava indispensável
para a representação do Crucificado. Nada de coroa real, nada de majestoso triunfo sobre o
mundo e o martírio da morte. Tudo aqui revela da forma mais radical o sofrimento e a debilidade
da carne. É com a estética gótica que na realidade começam o ascetismo e o pessimismo. O
senhor talvez não conheça o tratado de Inocêncio III: De miseria humanae conditionis, uma pecinha
literária sumamente engraçada, que data de fins do século XII. Mas somente esta arte pode servir
para ilustrá-la.
– Sr. Naphta – disse Hans Castorp, depois de ter dado um profundo suspiro –, tudo o
que o senhor acaba de explanar interessa-me muito. Signum mortificationis, foi o que disse? Gravarei
isso na memória. E antes o senhor usou os termos “anônimo” e “coletivo”; parece-me que vale a
pena refletir sobre eles. Infelizmente o senhor supõe com razão que eu não conheço o livro
daquele papa – acho que Inocêncio III foi um papa. Se bem compreendi o senhor, é uma obra
ascética e engraçada, não é? Devo confessar que nunca teria imaginado que essas duas coisas
pudessem andar juntas. Mas, pensando bem, compreendo. Claro, um tratado sobre a miséria
humana oferece muitas oportunidades para gracejos à custa da carne. Pode-se obter essa obra?
Recorrendo aos restos do meu latim, talvez seja capaz de entendê-la.
– Tenho este livro – respondeu Naphta, indicando com a cabeça uma das estantes. – Fica
à sua disposição. Mas, por que não nos sentamos? O senhor pode ver a Pietà também do sofá.
Está justamente chegando um pequeno lanche...
Era o criadinho que trazia o chá acompanhado de uma bonita cesta guarnecida de prata
na qual havia um bolo cortado em fatias. Atrás dele, porém, pela porta aberta – quem é que
entrava a passo alado, com um sorriso fino, e dizendo “Sapristi” e “Accidenti”? Era o Sr.
Settembrini, domiciliado no andar superior e que descera na intenção de fazer companhia aos
visitantes. Contou que pela sua pequena janela vira os primos chegar. Terminara depressa uma
página da enciclopédia, que estava redigindo naquele momento, para, então, convidar-se a si
mesmo. Era absolutamente natural que ele descesse. Sua familiaridade antiga com os habitantes
do Berghof autorizava-o a isso, e havia ainda as suas relações e o seu intercâmbio intelectual com
Naphta, que, apesar das profundas divergências de opinião, eram muito intensas. Assim, o
anfitrião cumprimentou-o com um simples aceno, sem mostrar a mínima surpresa. Isso não
impediu que a sua entrada deixasse em Hans Castorp, e bem nitidamente, uma dupla impressão.
De um lado sentiu que o Sr. Settembrini acabava de comparecer para evitar que eles – Joachim e
sobretudo ele, Hans Castorp – ficassem a sós com o pequeno e feioso Naphta, e para criar, pela
sua presença, um contrapeso pedagógico; do outro, era manifesto que o italiano absolutamente
não desprezava, senão aproveitava com muito gosto a oportunidade para abandonar por algum
tempo a sua água-furtada e deixar-se estar no distinto aposento, forrado de seda, de Naphta,
tomando um chá elegantemente oferecido. Antes de se servir, esfregou as mãos amareladas, por
cujas costas se estendiam pelos negros, a partir dos dedos mindinhos; a seguir, saboreou com
evidente e não dissimulado prazer as fatias do bolo entremeado de veias de chocolate.
continua pág 257...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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