quarta-feira, 16 de julho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal 
.

continuando...


     Foi essa a sutil exposição de Naphta. Fez-se silêncio no pequeno grupo. Os jovens olhavam o Sr. Settembrini, como se fosse ele quem devesse reagir dessa ou daquela forma. 

– É pasmoso – disse o italiano. – Francamente, confesso que estou emocionado. Eu não teria esperado por essa. Roma locuta. E como falou! Diante dos nossos olhos executou um salto mortal hierático, e a contradição que porventura houvesse nesse adjetivo foi “ab-rogada temporariamente”. Sim, senhor! Repito: é pasmoso! O senhor admite a possibilidade de objeções, meu caro professor? Falo de objeções feitas exclusivamente sobre o fundamento da lógica. O senhor acaba de esforçar-se por nos fazer compreender um individualismo cristão, baseado na dualidade de Deus e do mundo e por demonstrar a sua primazia sobre toda mobilidade determinada pela política. Poucos minutos depois levou o socialismo até a ditadura e o terror. Como consegue o senhor reconciliar essas duas coisas? 
– As contradições – replicou Naphta – podem reconciliar-se. Somente o meio-termo, e a mediocridade são irreconciliáveis. Como já me permiti observar, o seu individualismo é deficiente, é apenas um compromisso. Corrige a sua ética paga por meio de um pouco de cristianismo, um pouco de direito do indivíduo e um pouco de pretensa liberdade. Isso é tudo. Um individualismo, porém, que parte da importância cósmica, da importância astrológica da alma individual, um individualismo não social, mas religioso, que concebe a humanidade não como o antagonismo entre o eu e a sociedade, mas como o conflito entre o eu e Deus, entre a carne e o espírito – tal individualismo genuíno se harmoniza muito bem com a comunidade mais intensamente coercitiva... 
– É anônimo e coletivo – disse Hans Castorp.

     Settembrini mirou-o com os olhos arregalados. 

– Cale-se, engenheiro! – ordenou com uma severidade que se devia atribuir ao seu nervosismo e à tensão do seu espírito. – Instrua-se, mas deixe de externar suas opiniões!... Recebi uma resposta – prosseguiu, voltando-se novamente para Naphta. – Ela pouco me consola, mas, ao menos, é uma resposta. Encaremos todas as consequências que provêm dela... Com a indústria, o comunismo cristão rejeita a técnica, a máquina, o progresso. Com aquilo que o senhor qualificou de camada de comerciantes, com o dinheiro e os negócios lucrativos, que a Antiguidade colocava muito acima da agricultura e do artesanato, reprova a liberdade. É evidente, salta aos olhos que dessa forma – tal como aconteceu na Idade Média – todas as relações particulares e públicas ficam presas ao solo. E o mesmo se dá – custa-me dizê-lo – com a personalidade. Se o solo é o único que alimenta, é também o único que pode outorgar a liberdade. Artífices e camponeses, por mais alto que seja o conceito de que gozam, se não possuem terras, são servos de quem as possuí. Com efeito, até uma fase muito adiantada da Idade Média, as grandes massas, inclusive nas cidades, compunham se de servos. No curso da nossa palestra, o senhor mencionou de vez em quando a dignidade humana. Não obstante, defende uma moral econômica à qual são inerentes a servidão e o aviltamento da personalidade do homem. 
– Sobre a dignidade e o aviltamento – disse Naphta – pode-se discutir. Por enquanto, eu ficaria muito satisfeito se essa associação o fizesse ver na liberdade menos um belo gesto do que um problema. O senhor observa que a moral econômica cristã, com toda a sua beleza e mentalidade humana, cria servos. Eu oponho a isso que a causa da liberdade ou das cidades, como se poderia dizer de uma forma mais concreta —, que essa causa, por elevada e ética que seja, acha-se historicamente ligada à mais desumana degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades do espírito moderno de comerciantes e especuladores, à dominação diabólica do dinheiro e dos negócios. 
– Faço questão de que o senhor não se esquive por meio de antinomias e de ambiguidades, mas professe clara e inequivocamente ser partidário da mais negra das reações. 
– O primeiro passo em direção à verdadeira liberdade e humanidade seria abandonar esse medo covarde da ideia de reação. 
– Agora basta! – disse o Sr. Settembrini numa voz levemente trêmula, enquanto afastava de si a xícara e o prato, que já estavam vazios. Levantou-se do sofá forrado de seda. – Por hoje chega, é suficiente para um só dia, segundo me parece. Professor, obrigado pelo saboroso lanche e pela conversa sumamente espirituosa. Os deveres do regime reclamam os meus amigos do Berghof, e eu gostaria, antes de irem, de mostrar-lhes o meu cubículo lá em cima. Vamos, cavalheiros! Addio, padre!

     Desta vez até chamou Naphta de “padre”. Hans Castorp, com as sobrancelhas franzidas, tomou nota do apelido. Os primos deixaram que Settembrini organizasse a partida, dispondo deles e nem sequer perguntando se Naphta queria ou não unir-se a eles. Os jovens despediram-se também, agradecendo, e foram convidados a voltar em breve. Acompanharam o italiano, Hans Castorp levando emprestada a obra De misria humanae conditionis, um volume cartonado, em precário estado de conservação. Lukacek, com a sua barba, melancólica, continuava sentado à mesa, trabalhando no vestido com mangas, destinado àquela velha, quando passaram pela sua porta, para ganhar a íngreme escada que conduzia à água-furtada. No fundo não se tratava de mais um andar, senão simplesmente do vão do sótão, com o madeiramento despido abaixo das telhas e com a atmosfera estival de um depósito, cheirando a madeira quente. Mas o sótão abrigava dois compartimentos que o capitalista republicano habitava. Serviam de gabinete de estudo e de dormitório ao colaborador beletrista da Sociologia dos males. Mostrou-se alegremente aos jovens amigos. Qualificou a habitação de isolada e íntima, a fim de lhes sugerir os epítetos adequados de que poderiam servir-se para elogiá-la, o que de fato fizeram unanimemente. Era encantadora – acharam ambos —, tão isolada e tão íntima, exatamente como dissera o Sr. Settembrini. Lançaram um olhar ao pequeno dormitório, onde, à frente do estreito leito, se estendia um pequeno tapete de retalhos, e depois voltaram ao gabinete de trabalho, mobiliado de modo não menos despojado, mas que mostrava, ao mesmo tempo, uma ordem um tanto espalhafatosa e até fria. Cadeiras toscas e antiquadas em número de quatro, com assentos de palha, achavam-se colocadas simetricamente dos lados das portas, e também o sofá estava encostado à parede, de modo que o centro da peça pertencia somente a uma solitária mesa redonda, coberta com uma toalha verde, na qual se via, para fins de adorno ou de refresco, uma sóbria garrafa de água com um copo enfiado sobre o gargalo. Livros encadernados e brochuras encontravam-se apoiados obliquamente uns nos outros sobre uma pequena estante, e junto à janelinha erguia-se sobre pernas altas uma papeleira leve, diante da qual havia um pedacinho de feltro espesso, de tamanho apenas suficiente para que se pudesse ficar de pé em cima dele. Durante um momento, Hans Castorp, a título de experiência, pôs-se no lugar onde o Sr. Settembrini costumava trabalhar, estudando, para fins enciclopédicos, as belas-letras sob o ponto de vista do sofrimento humano. Fincando os cotovelos na tábua inclinada, o jovem declarou que ali se podia viver de um modo isolado e íntimo. Nessa mesma posição – opinou – devia o pai de Lodovico, com seu nariz fino e comprido, ter ficado diante da sua escrivaninha, em Pádua. E Hans Castorp inteirou-se de que realmente essa era a papeleira do saudoso sábio; também as cadeiras de palhinha, a mesa e a própria garrafa de água haviam pertencido a ele. E mais ainda: as cadeiras provinham do avô, o carbonário; haviam feito parte da mobília do seu escritório em Milão. Isso era impressionante. A fisionomia das cadeiras tomava aos olhos dos jovens ares de insubmissão política. Joachim levantou-se daquela em que se instalara inocentemente, com as pernas cruzadas, e olhou-a desconfiado, sem voltar a sentar-se. Hans Castorp, porém, de pé diante da papeleira de Settembrini-pai, pensava no filho que agora trabalhava nela, associando a política do avô e o humanismo do genitor, com o fim de criar obras beletrísticas. Pouco depois saíram todos os três. O escritor ofereceu-se a acompanhar os primos pelo caminho de regresso.
     Caminharam um bom pedaço sem falar, mas o seu silêncio estava relacionado com Naphta, e Hans Castorp não tinha pressa. Estava certo de que o Sr. Settembrini não deixaria de mencionar o vizinho, e que só os acompanhara na intenção de fazê-lo. Não se enganou. Depois de um suspiro dado para tomar impulso, o italiano começou dizendo:

– Senhores, eu desejaria adverti-los.

     Como Settembrini fizesse uma pausa, Hans Castorp indagou com fingida surpresa: – Contra o quê? – Poderia ter perguntado: “Contra quem?” Mas preferiu a forma impessoal, para documentar a extensão da sua inocência, ainda que o próprio Joachim soubesse muito bem de que se tratava. 

– Contra a personalidade que acabamos de visitar – respondeu Settembrini – e que eu tive de apresentar-lhes contra a minha vontade. Os senhores sabem que isso aconteceu por mero acaso e não houve jeito de evitá-lo. Mas a responsabilidade me cabe e pesa sobre mim penosamente. É minha obrigação expor à juventude, da qual os senhores fazem parte, os perigos espirituais que acarreta o contato com esse homem. Devo pedir-lhes que mantenham em limites seguros as relações com ele. Sua forma é lógica, mas sua natureza é confusão.

     Hans Castorp replicou que, realmente, não se sentia à vontade com Naphta. Suas palavras deixavam-no às vezes com uma sensação esquisita. Podia-se pensar em alguns momentos que ele pretendia afirmar seriamente que o Sol girava em torno da Terra. Mas, como poderiam eles, os primos, ter imaginado que fosse inconveniente travar relações sociais com um amigo do Sr. Settembrini? Não acabava ele próprio de dizer que haviam conhecido Naphta por seu intermédio? Tinham-no encontrado em sua companhia; o homem passeava com ele, que tomava o chá na sua casa, assim sem cerimônia, e tudo isso demonstrava, afinal... 

– Sem dúvida, meu caro engenheiro, sem dúvida! – a voz do Sr. Settembrini soava suave, resignada, e contudo levemente trêmula. – São objeções que se impõem, e por isso o senhor tem razão de fazê-las. Muito bem, estou disposto a defender-me. Vivo sob o mesmo teto com esse senhor. Frequentes encontros são inevitáveis. Uma palavra traz a outra. A gente trava conhecimento. O Sr. Naphta é homem inteligente, o que é coisa rara. Tem um temperamento discursivo, assim como eu. Que me condene quem quiser, mas aproveito a oportunidade de cruzar as lanças da ideia com um adversário de qualidade até certo ponto igual. Não tenho mais ninguém, nem perto nem longe... Numa palavra, não nego que o visito e que ele me visita. Também passeamos juntos. E discutimos. Discutimos encarniçadamente, quase todos os dias. Mas confesso que a oposição e a hostilidade da sua maneira de pensar representa para mim precisamente um atrativo a mais para me encontrar com ele. Tenho necessidade do atrito. As convicções não vivem, a não ser que tenham ocasião de lutar, e eu, por minha parte, tenho sólidas convicções. Mas como poderiam os senhores afirmar o mesmo das suas próprias pessoas? O senhor, tenente, ou o senhor, engenheiro? Não estão armados para se defender contra miragens intelectuais. Correm o perigo de que essas sutilezas meio fanáticas, meio maliciosas, lhes prejudiquem o espírito e a alma.

     Hans Castorp admitiu tudo isso. Seu primo e ele próprio eram, provavelmente, naturezas um tanto expostas. A velha história dos filhos enfermiços da vida; claro! Mas a ela podia-se opor Petrarca com a sua divisa, que o Sr. Settembrini conhecia. Em todo caso era digno de ser ouvido o que Naphta explanava. Que não fossem injustos: aquilo que ele dissera sobre o tempo comunista, por cujo transcurso ninguém deveria receber um prêmio, era mesmo notável. E também eram muito interessantes as suas ideias sobre a pedagogia, coisas que ele, Hans Castorp, nunca teria chegado a saber sem Naphta...
     Settembrini cerrou os lábios, e Hans Castorp apressou-se a acrescentar que, naturalmente, ele se abstinha de tomar partido e de formar uma opinião. Simplesmente achara dignos de serem ouvidos os argumentos de Naphta sobre os desejos da juventude. – Explique-me o senhor uma coisa – continuou. – Esse Sr. Naphta (digo “esse senhor” para indicar que não simpatizo com ele irrestritamente; pelo contrário, observo com relação a ele uma rigorosa reserva mental...)

– E o senhor faz muito bem! – exclamou Settembrini, cheio de gratidão. 
– ...ele acaba de dizer horrores contra o dinheiro, a alma do Estado, segundo se expressava, e contra a propriedade particular, que tachava de roubo; numa palavra, atacou a riqueza capitalista, da qual, se não me engano, afirmou que era o combustível das chamas do inferno. Parece-me que se serviu dessa expressão. Em altos brados elogiou a condenação medieval do anatocismo. E apesar de tudo isso ele próprio faz... O senhor me desculpe, mas ele deve... É uma verdadeira surpresa quando se entra na casa dele. Toda aquela seda... 
– Pois é – sorriu Settembrini. – A tendência dos seus gostos é característica. 
– ...e os belos móveis antigos – prosseguiu Hans Castorp nas suas reminiscências —, a Pietà do século XIV... o lustre veneziano... o criadinho de libré... e bolo de chocolate em abundância... É preciso que ele pessoalmente... 
– O Sr. Naphta, pela sua pessoa – explicou Settembrini —, é tão pouco capitalista quanto eu. 
– Mas... – perguntou Hans Castorp. – As suas palavras escondem um “mas”, Sr. Settembrini. 
– Bem, essa gente não deixa nenhum dos seus na miséria. 
– Quem é “essa gente”? 
– Aqueles padres. 
– Padres? Que padres? 
– Ora, engenheiro, eu falo dos jesuítas. 

     Fez-se um momento de silêncio. Os primos mostraram sinais da mais viva consternação. Hans Castorp exclamou: 

– Não é possível!... Cruzes! O homem é um jesuíta? 
– O senhor adivinhou – respondeu o Sr. Settembrini cerimoniosamente. 
– Não, nunca na vida teria eu... Como poderia pensar? É por isso que o senhor o chamou de “padre”. 
– Foi um pequeno excesso de cortesia – tornou Settembrini. – O Sr. Naphta não é padre. Se por enquanto ainda não atingiu esse grau, a culpa é da enfermidade. Mas ele passou pelo noviciado e fez os primeiros votos. A doença forçou-o a interromper os estudos teológicos. Depois, teve ainda alguns anos de serviço como prefeito num instituto da ordem, isto é, como preceptor ou mentor de jovens alunos. Isso vinha ao encontro das suas inclinações pedagógicas. E aqui pode continuar a satisfazê-las, ensinando latim no Fredericianum. Vive em Davos faz cinco anos. Não se pode dizer ao certo quando será capaz de partir, se é que um dia o será. Mas Naphta pertence à ordem, e mesmo que os laços que o ligam a ela fossem mais frouxos, nunca lhe faltaria nada. Eu já expliquei aos senhores que ele, pessoalmente, é pobre, quer dizer, não possui bens. Claro, é a regra! A ordem, por sua vez, dispõe de imensas riquezas e cuida dos seus, como os senhores podem ver. 
– Barba...ridade! – murmurou Hans Castorp. – E eu nem sabia ou pensava que uma coisa dessas pudesse existir realmente! Um jesuíta! Sim, senhor!... Mas diga-me mais uma coisa: se ele está bem provido e amparado por aquela gente, por que cargas d'água vive então... Absolutamente não quero criticar a sua habitação, Sr. Settembrini O senhor está muito bem instalado na casa de Lukacek, de um modo agradavelmente isolado e sobretudo tão íntimo... Mas sou de opinião que esse Naphta, uma vez que anda tão cheio da nota, para usar esse termo vulgar... Por que não aluga uma moradia mais vistosa, com uma entrada elegante e peças grandes, numa casa distinta? Há mesmo qualquer coisa de misterioso e aventureiro nesse jeito de morar num quartinho desses, com todas aquelas sedas...

     Settembrini deu de ombros.     

– Devem ser razões de tato e de gosto que determinaram a escolha – disse então. – Acho que sua consciência anticapitalista se sente melhor quando ele habita o quarto de homem pobre e compensa isso pela maneira como o habita. Talvez haja também questões de discrição metidas nisso. Não se deve ostentar a todo mundo que se é abastecido pelo Diabo. Adota-se uma fachada pouco impressionante, atrás da qual se dá livre curso ao gosto sacerdotal pela seda... 
– É esquisito! – disse Hans Castorp. – É completamente novo e emocionante para mim, como confesso com toda a franqueza. Não, de fato estamos muito gratos, Sr. Settembrini, porque nos apresentou esse homem. Creia-me que frequentemente voltaremos a visitá-lo. Isso ficou combinado. Relações assim ampliam o horizonte de maneira inesperada e permitem olhar para um mundo cuja existência a gente absolutamente ignorava. Um autêntico jesuíta! Quando digo “autêntico” estou dando margem àquilo que me preocupa, e que não posso deixar de observar. Eu pergunto: é ele realmente um jesuíta como os outros? Sei muito bem que o senhor pensa que não pode haver norma, quando se trata de pessoas que o Diabo abastece. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa, que se pode resumir na pergunta: “É ele autêntico como jesuíta?” É isso que me interessa. Naphta acaba de dizer uma porção de coisas – o senhor sabe a que me refiro – sobre o comunismo moderno e o zelo piedoso do proletariado, que não deve impedir as suas mãos de derramarem sangue. Numa palavra, ele disse coisas que não quero comentar; comparado com esse homem, o seu avô, com sua lança do cidadão, era um cordeirinho inocente; não me leve a mal essa expressão! E ele pode fazer isso? Tem a aprovação dos seus superiores? É compatível com a doutrina romana, uma vez que dizem que a ordem intriga o mundo inteiro em prol dela? Não é tudo isso – como se diz? – herético, anormal, incorreto? Essas ideias me ocorrem a respeito de Naphta, e eu gostaria muito de saber o que o senhor pensa.

     Settembrini sorriu. 

– É muito simples. O Sr. Naphta é, realmente e antes de mais nada, um jesuíta genuíno e completo. Mas em segundo lugar é um homem de espírito – do contrário eu não procuraria a companhia dele – e como tal empenha-se em encontrar novas combinações, adaptações e associações, ainda em busca de variações modernas. Os senhores me viram surpreendido diante das suas teorias. Comigo, ele nunca se revelara até esse ponto. Servi-me do estímulo que a presença dos senhores evidentemente exercia sobre ele para provocá-lo, a fim de que dissesse, em certo sentido, a última palavra. E essa palavra foi bastante excêntrica e bastante monstruosa...
– Sim... E por que não chegou a ser padre? Acho que ele tem a idade necessária. 
– Eu já lhe disse que a doença o impediu, temporariamente... 
– Hum... Mas, se Naphta é em primeiro lugar um jesuíta, e em segundo, um homem de espírito que anda em busca de combinações, não acredita o senhor que esse outro elemento, o acessório, provém da enfermidade? 
– Que quer dizer com isso? 
– Olhe, Sr. Settembrini, parece-me o seguinte: ele tem uma mancha úmida que o impede de ser padre. Mas aquelas suas combinações também o teriam impedido, e sob esse aspecto pode se dizer que as combinações e a mancha úmida pertencem à mesma categoria. Ele é, à sua maneira, uma espécie de filho enfermiço da vida, um joli jésuite com uma petite tache humide

     Haviam chegado ao sanatório. No terraço em frente ao edifício detiveram-se ainda um instante, antes de se separarem. Formaram um pequeno grupo, enquanto outros pensionistas, que andavam ociosos nas proximidades do portão, observavam a sua palestra. O Sr. Settembrini disse:

– Mais uma vez, meus jovens amigos, advirto-os. Não posso proibir-lhes a continuação das relações uma vez estabelecidas, desde que se sintam impelidos pela curiosidade. Mas criem em torno do coração e do cérebro uma couraça de desconfiança. Nunca deixem de opor uma resistência crítica. Eu definirei esse homem numa única palavra: é um voluptuoso.

     Os primos fizeram uma careta. A seguir perguntou Hans Castorp: 

– Um quê? Ora veja! Mas ele pertence a uma ordem. Pelo que sei, existem ali alguns votos que devem ser feitos, e além disso Naphta é tão minguado e tão débil... 
– O senhor fala muito ingenuamente, engenheiro – retrucou o Sr. Settembrini. – Aquilo nada tem que ver com a debilidade, e quanto aos votos há certas reservas. Porém, eu falei num sentido mais lato e mais espiritual, na esperança de encontrar alguma compreensão da sua parte. Lembra-se ainda do dia em que o visitei no seu quarto – já faz muito, muitíssimo tempo –, o senhor passava pelo período de acamamento obrigatório, logo depois da sua admissão como paciente... 
– Como não! O senhor entrou na hora do crepúsculo e acendeu a luz. Recordo-me como se fosse hoje... 
– Bem, naquele dia o curso da palestra, como graças a Deus acontece frequentemente, levou-nos a certos assuntos elevados. Creio que falamos até da vida e da morte, da natureza digna da morte, contanto que seja uma condição e um complemento da vida, e do caráter de bicho papão que ela assume quando o espírito comete o pavoroso erro de isolá-la como princípio. Senhores – prosseguiu o Sr. Settembrini, aproximando-se muito dos dois jovens e estendendo lhes o polegar e o dedo médio da mão esquerda à maneira de uma forquilha, como para apanhar lhes a atenção, enquanto erguia o indicador da direita em sinal de admoestação... –, gravem na sua memória que o espírito é soberano, que sua vontade é livre, que determina o mundo moral. Porém, se dualisticamente isola a morte, esta se converte, real e virtualmente, graças à vontade do espírito, numa potência própria, oposta à vida, num princípio antagônico, na grande sedução; e seu império é o da voluptuosidade. Os senhores perguntam: “Por que da voluptuosidade?” E eu respondo: porque a morte dissolve e redime, porque traz a redenção, mas não a redenção do mal, e sim a redenção pelo mal. Dissolve a ética e a moralidade, redime da disciplina e da moderação, liberta para a volúpia. Se os advirto contra o homem que os senhores, malgrado meu, conheceram por meu intermédio, se os exorto a que blindem os corações com a tríplice couraça da crítica, no contato e nas discussões com ele, é porque todos os seus pensamentos têm caráter voluptuoso, pois estão colocados sob a proteção da morte, que é uma potência sumamente licenciosa, como eu já lhe disse, engenheiro, naquela ocasião – lembro-me bem da expressão que usei; sempre guardo na memória as expressões precisas e incisivas que tive oportunidade de formular –, é uma potência dirigida contra a civilização, o progresso, o trabalho e a vida. E o mais nobre dever do educador é pôr as almas dos jovens ao abrigo das suas emanações mefíticas.  

     Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer. Hans Castorp e Joachim Ziemssen agradeceram-lhe todos os conselhos, despediram-se e subiram até o portal do Berghof, ao passo que o Sr. Settembrini regressava à sua papeleira de humanista, um andar acima da cela forrada de seda do Sr. Naphta.
     A visita dos primos à casa de Naphta, que acabamos de descrever, foi a primeira que lhe fizeram. Seguiram-se a ela duas ou três outras, uma até na ausência do Sr. Settembrini, e todas elas forneciam ao jovem Hans Castorp material para as suas reflexões, quando se deixava estar no seu retiro florido de azul e “reinava”, enquanto pairava ante seus olhos interiores aquela forma sublime que se chama Homo Dei.

continua pág 268...
___________________

Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (c)
___________________

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário