sábado, 19 de julho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante 
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     Dessa forma veio o mês de agosto e, logo no seu princípio, o primeiro aniversário da chegada do nosso herói. Felizmente, a data passou despercebida. Ainda bem que foi assim. Hans Castorp pressentira-a com certo mal-estar. E isso era a regra ali em cima. Ninguém gostava do dia da chegada. Os veteranos e mesmo os pensionistas com apenas um ano de permanência não costumavam comemorá-lo. Se bem que normalmente se aproveitasse qualquer pretexto para festividades e bebedeiras alegres, se bem que o número dos acentos gerais e importantes que marcavam o ritmo e a pulsação do ano fosse aumentado por muitíssimos outros de natureza privada e irregular, se bem que aniversários natalícios, exames médicos, iminências de partidas, quer autorizadas, quer “em falso”, dessem motivos para comezainas no restaurante e para festins regados a champanha, essa data habitualmente era relegada ao silêncio. Os pensionistas passavam por cima dela ou esqueciam-na realmente. Em todo caso, podiam-se fiar em que os outros tampouco a recordariam com muita precisão. Sem dúvida, era costume prestar atenção às subdivisões do tempo; observava-se o calendário, a sucessão, a volta de determinado dia. Mas medir e contar aquele tempo que para uma certa pessoa se associava ao espaço ali de cima – isto é, o tempo particular e individual – cabia a principiantes e a pacientes de curto prazo; os mais traquejados preferiam a imensidão, a eternidade despercebida, o dia que era sempre o mesmo, e cada um tinha suficiente delicadeza para supor nos demais o desejo que ele próprio alimentava. Dizer a um enfermo: “Hoje faz três anos que o senhor está aqui”, seria julgado inábil e brutal. Era coisa que não acontecia. A própria Srª. Stöhr, por maiores que fossem os seus defeitos, demonstrava nesse ponto bastante tato e polidez, de maneira que nunca cometeria tamanha gafe. Sua enfermidade, o estado febril de seu corpo, estavam ligados, inegavelmente, a uma crassa ignorância. Havia só poucos dias, ela falara à mesa da “afetação” dos ápices dos seus pulmões, e durante uma conversa sobre assuntos históricos, declarara que as datas dos grandes feitos da história eram para ela uma espécie de “anel de Polícrates”, deixando estupefatos os comensais. Era, porém, inimaginável que fosse recordar, em fevereiro, ao jovem Ziemssen a data do seu jubileu, ainda que talvez se lembrasse dela; pois a sua infortunada cabeça estava naturalmente cheia de datas e coisas inúteis, e a Srª. Stöhr gostava de fazer as contas dos outros. Mas a tradição impedia-a de falar.
     E o mesmo se deu no aniversário da chegada de Hans Castorp. No curso da refeição, a desgraçada procurara uma vez piscar-lhe o olho de modo significativo; mas como a fisionomia do jovem não desse nenhum sinal de compreensão, apressara-se a bater em retirada. Também Joachim deixará de manifestar-se, e todavia não esquecera a data em que fora à estação de Davos Dorf para receber o primo visitante. Mas Joachim, por natureza pouco inclinado a conversar – muito menos do que Hans Castorp se mostrava ali em cima, sem falar de certos humanistas e disputadores da sua roda —, Joachim exibia nos últimos tempos uma taciturnidade singular e surpreendente. Só se expressava em monossílabos, embora o seu semblante revelasse um violento trabalho interior. Era evidente que a estação de Davos-Dorf despertava nele outras ideias que não as de chegada e de recepção... Mantinha intensa correspondência com a planície. Dentro dele, decisões iam amadurecendo. Os preparativos que fazia aproximavam-se do fim.
     O mês de julho fora quente e cheio de sol. Mas com o princípio do novo mês irrompeu uma onda de mau tempo, com uma umidade brumosa e com chuvas mescladas de neve, seguidas de uma nevada incontestável. Esse tempo estendeu-se, interrompido por alguns esplêndidos dias de verão, além dos fins de agosto, até pleno setembro. No começo, os quartos continuavam conservando o calor do período estival precedente; registravam-se dez graus no seu interior, o que passava por temperatura agradável. Mas aos poucos aumentava o frio, e o aspecto da neve que caía sobre o vale causou viva satisfação, porque só ele – a queda de temperatura não teria bastado – decidiu a “administração” a acender o aquecimento central, em primeiro lugar na sala de refeições e depois também nos quartos; e quem, após ter cumprido o dever do repouso, se desembaraçasse dos seus dois cobertores e, abandonando a sacada, entrasse no aposento, podia tocar com as mãos úmidas e enregeladas os radiadores reanimados, cuja emanação seca intensificava o ardor das faces.
     Era isso o inverno? Os sentidos dificilmente se esquivavam a essa impressão, e todos lamentavam “terem sido roubados do verão”, posto que eles mesmos, ajudados por circunstâncias artificiais e naturais, por um pródigo consumo de tempo, o tivessem escamoteado a si próprios. A razão argumentava que ainda viriam uns belos dias de outono, talvez até toda uma série deles, e de tamanho esplendor cálido que não seria excessiva honra atribuir-lhes o nome de verão – uma vez que se fizesse abstração da órbita do sol já menos oblíqua e do fato de anoitecer mais cedo. Mas o efeito que a paisagem hibernal exercia sobre a alma era mais forte do que esse tipo de consolo.. Os enfermos colocavam-se junto à porta cerrada da loggia e contemplavam com repugnância o torvelinho que se abatia lá fora. Pelo menos era essa a atitude de Joachim, que disse numa voz oprimida: 

– Será que aquilo vai recomeçar agora?

     Hans Castorp respondeu do fundo do quarto: 

– Seria um pouco prematuro. Só pode ser passageiro, apesar da aparência terrivelmente definitiva. Se o inverno consiste na escuridão, na neve, no frio e nos radiadores quentes, temos outra vez inverno; não há como negar. E quando considero que o inverno apenas acaba de terminar e mal passou o degelo – em todo caso nos parece que recém-saídos da primavera; não acha também? –, bem, então tomo um susto, francamente! Essas ideias são perigosas para o nosso otimismo. Vou lhe explicar por quê. Quero dizer que o mundo normalmente está organizado de maneira a corresponder às necessidades do homem e a estimular-lhe a alegria de viver; isso se deve admitir. Não vou ao ponto de dizer que a ordem natural das coisas, por exemplo, o tamanho da Terra, o tempo que ela precisa para dar uma volta em torno de si mesma e em torno do Sol, o ciclo das estações, o ritmo cósmico, se o quer chamar assim – que tudo isso obedeça às nossas necessidades; tal afirmação seria muito pretensiosa e simplista; seria pura ideologia, como dizem os filósofos. Mas o caso é que as nossas necessidades e os fatos básicos e gerais da natureza estão, graças a Deus, de acordo uns com os outros. Digo: “Graças a Deus!” porque aí temos realmente um motivo para dar graças a Ele. Na planície, quando vem o verão ou o inverno, já passou tanto tempo desde o verão ou o inverno anterior, que a estação que chega nos é outra vez nova e bem-vinda, e disso deriva a alegria de viver. Mas aqui em cima essa ordem e esse acordo têm sido perturbados, primeiro porque no fundo não há verdadeiras estações, como você mesmo me disse certa vez, mas somente dias de inverno e dias de verão pêle-mêle, numa completa mixórdia, e segundo porque aquilo que decorre para nós aqui não é tempo, de maneira que o inverno, quando chega, não é novo, mas sim o mesmo que o passado. Daí se explica o mau humor com que você está olhando pela janela. 
– Muito obrigado – disse Joachim. – E agora que você me explicou o fato, parece-me tão satisfeito que até se conforma com a coisa em si, apesar de que ela... Não senhor! – exclamou Joachim. – Basta! Isso é uma porcaria! Tudo é uma enorme e nojenta porcaria! E se você, pela sua conta... Eu... – A passo apressado saiu do quarto, fechando furiosamente a porta atrás de si e, se não enganavam todos os sinais, havia lágrimas nos seus belos e brandos olhos.

     O outro ficou atrás, consternado. Não tomara muito a sério certas decisões do primo, enquanto este se limitara a ameaças feitas em altos brados. Agora, porém, que alguma força operava silenciosamente no interior de Joachim e o primo se comportava como acabava de fazer, Hans Castorp aterrorizou-se, porque compreendia que esse militar era bastante homem para passar a agir. E o jovem ficou pálido de medo, medo que sentia por ambos, pelo outro e por si próprio. “Fort possible qu'il aille mourir”, pensou, e como isso indubitavelmente fosse uma sabedoria de terceira mão, mesclou-se com ela ainda a tortura de uma velha e jamais tranquilizadora suspeita, enquanto continuava a cismar: “Será possível que ele me vá deixar sozinho aqui em cima, a mim que somente subi para visitá-lo?” E daí chegou a acrescentar: “Mas isso seria maluco e horroroso, a tal ponto que sinto como meu rosto se gela e meu coração lateja desordenadamente. Pois se eu ficar sozinho nestas alturas – e é isso o que farei, se ele partir; que o acompanhe absolutamente não entra em questão! —, nesse caso (agora o meu coração parou por completo!), nesse caso é para sempre, é para todos os tempos, porque eu sozinho nunca na vida reencontrarei o caminho que conduz à planície...”
     Tais foram as temerosas reflexões de Hans Castorp. Aquela mesma tarde devia trazer-lhe certeza sobre o curso do porvir. Joachim declarou as suas intenções. Foram lançados os dados. Caiu o golpe decisivo.
     Depois do chá desceram ao bem-iluminado subterrâneo para apresentar-se ao exame mensal. Era em princípios de setembro. Ao entrarem na atmosfera seca do consultório encontraram o Dr. Krokowski sentado no seu lugar diante da escrivaninha, ao passo que o conselheiro, com as faces muito azuladas, e com os braços cruzados, encostava-se à parede. Com o estetoscópio, que segurava numa das mãos, ia dando leves golpes no seu ombro. Bocejou em direção ao teto. – Bom dia, meus filhos – disse em voz fatigada. No decorrer da cena que se seguiu, continuou manifestando uma disposição bastante lânguida, cheia de melancolia e de renúncia geral. Provavelmente acabava de fumar. Mas tivera também alguns desgostos autênticos, dos quais os primos já tinham ouvido falar, incidentes de sanatório, de um gênero suficientemente conhecido. Tratava-se de uma jovem, de nome Ammy Nölting, que se internara no Berghof pela primeira vez no outono do ano retrasado e recebera alta nove meses depois, em agosto; mas já em setembro reaparecera, porque não “se sentira bem” em casa; em fevereiro, fora novamente mandada para a planície, com pulmões onde já não se percebia o menor ruído estranho; mas em meados de julho voltara a ocupar o seu lugar à mesa da Srª. Iltis. Haviam surpreendido a dita Ammy, à uma hora da madrugada, em companhia de um enfermo chamado Polypraxios, o mesmo grego que na noite do carnaval causara sensação pela elegância das suas pernas, um jovem químico, cujo pai possuía uma fábrica de tintas no Pireu. Polypraxios fora apanhado no quarto de Ammy, por uma amiga loucamente enciumada, que ali chegara pelo mesmo caminho que ele, isto é, pelas sacadas, e, dilacerada de mágoa e de raiva diante do quadro que se lhe oferecera, fizera uma gritaria medonha, alarmando todo mundo e dando origem a um escândalo extraordinário. Behrens vira-se obrigado a despedir os três, o ateniense, a Nölting e a amiga, que, de tanta paixão, não se importara com a própria honra. Acabava de discutir o chocante assunto com o assistente a cuja clientela particular haviam pertencido tanto Ammy como a amiga. Ainda durante o exame dos primos prosseguiu preocupando-se com o caso, num tom sombrio e resignado; era um perito tão consumado na arte da auscultação que sabia explorar o interior de um enfermo enquanto falava de outra coisa, e ainda ditava ao assistente os fenômenos verificados. 

– Pois é, gentlemen, sempre essa maldita libido! – disse. – Claro que os senhores se divertem com a história. Pouco se lhes dá... Vesicular... Mas um diretor de sanatório fica com nojo dessas coisas; podem... Maciez... podem me acreditar. Que culpa tenho eu de que a tísica ande frequentemente acompanhada de extrema concupiscência? Respiração levemente rude... Não fui eu quem arranjou o mundo dessa maneira. Mas antes que a gente se dê conta disso, acha-se no papel de um dono de rendez-vous. Diminuição do murmúrio, abaixo da axila esquerda... Temos a análise, proporcionamos oportunidades para desabafarem. Que adianta? Quanto mais se abrem esses piratas, mais assanhados se tornam. Eu recomendo as matemáticas... Aqui melhorou; desapareceram os roncos... A ocupação com as matemáticas, digo eu, é o melhor remédio que existe contra a lascívia. O Promotor Paravant, que muito sofria da tentação, meteu-se a estudá-las. Anda às voltas com a quadratura do círculo e sente-se bastante aliviado. Mas a maioria é por demais estúpida e preguiçosa para isso; quê Deus lhes perdoe!... Vesicular... Olhe, eu sei perfeitamente que a mocidade aqui em cima facilmente toma um mau caminho e se deprava por completo. Antigamente fiz algumas tentativas de intervir nesses casos de devassidão. Mas aconteceu que qualquer irmão ou noivo me perguntava à queima-roupa o que eu tinha com isso. Desde então limito-me a ser um simples médico e nada mais. Ligeiro estertor à direita, na parte superior...

     Estava terminado o exame de Joachim. O Dr. Behrens enfiou o estetoscópio no bolso do avental e esfregou os olhos com a manzorra esquerda, como costumava fazer, quando “se ausentava” ou se sentia melancólico. Quase maquinalmente, entre bocejos mal-humorados, recitou a sua lição: 

– Pois então, Ziemssen, ânimo! É verdade que nem tudo corre exatamente como o exige o manual de fisiologia. Aqui e ali anda ainda encrencado, e o senhor, por enquanto não liquidou a sua conta com Gaffky. Pelo contrário, comparado com a última vez, até subiu um grau na escala. Desta vez são seis. Mas não chore por causa disso! Quando chegou aqui, estava mais doente do que hoje; isso lhe dou por escrito. E se o senhor ficar conosco ainda uns cinco ou seis menses... Não acha que menses soa melhor do que meses? Eu tenciono só dizer menses, daqui em diante... 
– Senhor conselheiro... – começou Joachim. Estava de pé, com o torso desnudo, numa atitude tesa. Tinha o peito saliente, os calcanhares unidos e as mesmas manchas terrosas no rosto que tivera em certa ocasião, quando Hans Castorp pela primeira vez notara que esse era o modo como empalidecia a tez bronzeada. 
– Se o senhor – prosseguiu Behrens, sem se importar com a interrupção – continuar aqui cumprindo religiosamente os deveres do regime, durante meio ano, pouco mais ou menos, será um homem curado e poderá tomar Constantinopla de assalto. Terá bastante fortaleza para conquistar todas as fortalezas que quiser...

continua pág 272...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Irascibilidade e mais uma coisa sumamente chocante (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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