quarta-feira, 16 de julho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.6)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

3.  Os Judeus e a Sociedade
     3.4 - O caso Dreyfus
          3.4.6 - O Indulto e Seu Significado
     Só no ato final tornou-se claro que, na verdade, o drama de Dreyfus era uma comédia. O deus ex-machina que uniu o país conturbado, que fez o Parlamento pronunciar-se a favor de novo julgamento e finalmente reconciliou os elementos díspares do povo, da extrema direita aos socialistas, foi a Exposição de Paris de 1900. O que os editoriais diários de Clemenceau, o patético de Zola, os discursos de Jaurès e o ódio popular do clero e da aristocracia não conseguiram fazer, isto é, mudar a atitude parlamentar em favor de Dreyfus, foi finalmente alterado por medo a um boicote. O mesmo Parlamento que, um ano antes, havia por unanimidade rejeitado uma revisão do julgamento, agora, com a maioria de dois terços, aprovava o voto de censura a um governo anti-Dreyfus. Em julho de 1899, o gabinete Waldeck-Rousseau subiu ao poder. O presidente Loubet indultou Dreyfus e acabou com o processo. A Exposição pôde ser inaugurada sob o mais radioso dos céus comerciais, seguindo-se-lhe uma confraternização geral: até os socialistas eram agora elegíveis para postos no governo; Millerand, o primeiro socialista a se tornar ministro da Europa, recebeu a pasta do Comércio.
     O Parlamento virou defensor de Dreyfus! Era o cúmulo. Para Clemenceau, naturalmente, era uma derrota. Até o fim, ele denunciou como ambíguo o indulto. A anistia foi mais ambígua ainda. "Tudo o que se conseguiu", escreveu Zola, "foi agrupar num mesmo perdão malcheiroso homens honrados e bandidos. Todos foram jogados na mesma panela."[97] No começo, Clemenceau permaneceu inteiramente só. Os socialistas, principalmente Jaurès, receberam de bom grado tanto o perdão como a anistia. Não encontraram por fim um lugar no governo e maior representação de seus interesses? Alguns meses depois, em maio de 1900, quando o sucesso da Exposição estava assegurado, a verdade verdadeira veio finalmente à tona. Todas essas táticas de apaziguamento iriam custar caro aos partidários de Dreyfus. A moção em favor de nova revisão do julgamento foi derrotada por 425 votos contra sessenta, e nem mesmo o próprio governo de Clemenceau em 1906 pôde mudar a situação; não ousou confiar um novo julgamento a um tribunal normal. A absolvição (ilegal) no Tribunal de Apelação foi uma solução de meio-termo. Mas a derrota de Clemenceau não significou vitória para a Igreja e para o Exército. A separação entre a Igreja e o Estado e a proibição da educação confessional acabaram com a influência política do catolicismo na França. Da mesma forma, a subordinação do serviço de espionagem ao ministro da Guerra, isto é, à autoridade que na França é civil, privou o Exército de sua influência chantagista sobre o gabinete e sobre a Câmara, e tirou-lhe qualquer justificativa para conduzir inquéritos policiais por conta própria.
     católicos e aclamado pelo povo. Agora, porém, o "maior historiador desde Fustel", segundo Jules Lemaitre, cedia lugar a Mareei Prévost, autor do algo pornográfico Demi-vierges, e o novo "imortal" recebeu os parabéns do padre jesuíta Du Lac.[98] Até mesmo a Companhia de Jesus havia acertado suas diferenças com a Terceira República. O encerramento do processo Dreyfus marcou o fim do antissemitismo clerical. A solução adotada pela Terceira República inocentava o acusado sem lhe conceder julgamento normal, enquanto restringia as atividades das organizações católicas. Enquanto Bernard Lazare havia pedido direitos iguais para ambos os lados, o Estado havia permitido uma exceção para os judeus e outra — que ameaçava a liberdade de consciência — para os católicos.[99] As partes em conflito foram colocadas praticamente fora da lei, e tanto a questão judaica quanto o catolicismo político foram banidos daí por diante da arena política.
     Assim termina o único episódio no qual as forças subterrâneas do século XIX vêm à plena luz nos registros da história. O único resultado visível foi o nascimento do movimento sionista — a única resposta política que os judeus encontraram para o antissemitismo, e a única ideologia na qual chegaram a levar a sério o comportamento hostil, o qual os impeliria para o centro dos acontecimentos mundiais.

Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.6)
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[97] Cf. carta de Zola de 13 de setembro de 1899, em Correspondance: lettres à Maitre Labori. Em Oeuvres completes, Paris, 1966.
[98] Cf. Herzog, op. cit., p. 97.
[99] A posição de Lazare no Caso Dreyfus é melhor descrita por Charles Péguy, "Notre jeunesse", em Cahiers de Ia Quinzaine, Paris, 1910. Encarando-o como o verdadeiro representante dos interesses judeus, Péguy assim formula as exigências de Lazare: "Ele era partidário da imparcialidade da lei. Imparcialidade da lei no processo Dreyfus, lei imparcial no caso das ordens religiosas. Isso parece pouco, mas pode ir longe. Levou-o ao isolamento na hora da morte". Lazare foi um dos primeiros dreyfusards a protestar contra a submissão das congregações ao Estado.

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