Victor Hugo - Os Miseráveis
Segunda Parte - Cosette
Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão
VI - Entre quatro tábuas
Quem estava no caixão? Era Jean Valjean, que arranjara maneira de viver dentro
daquilo e que mal respirava.
É estranho até que ponto a segurança da consciência dá a segurança de tudo mais.
Toda a combinação premeditada por Jean Valjean caminhava, e caminhava bem, desde o
dia antecedente. Contava ele, como Fauchelevent, com o senhor Mestienne, e por isso
não duvidava do fim. Jamais se vira situação mais crítica e mais completa tranquilidade.
As quatro tábuas do caixão produzem uma espécie de paz terrível. Parecia que a
tranquilidade de Jean Valjean como que participava do repouso dos mortos. Do fundo
daquele esquife tinha ele podido seguir, e seguia todas as fases do temível drama que
estava representando com a morte.
Pouco depois que Fauchelevent acabara de pregar a tábua de cima, Jean Valjean
sentiu levarem-no, depois rolar. Pela diminuição dos solavancos conheceu que passavam
da calçada para caminho de terra, isto é, que acabaram as ruas e principiavam os
boulevards. Por um ruído surdo que ouviu adivinhou que atravessavam a ponte de
Austerlitz. Quando o carro parou a primeira vez conheceu que entrava no cemitério, e da
segunda paragem disse consigo: «Aí está a escavação».
Em seguida sentiu de chofre pegarem no caixão, e, logo depois, o roçar rouco de um
objeto pelas tábuas, que conheceu ser uma corda que lhe atavam em roda do caixão
para o descer à cova.
Após isto, ficou como que atordoado.
Provavelmente eram os gatos-pingados que tinham deixado balouçar o caixão,
descendo-o primeiro da cabeça que dos pés. Apenas, porém, voltou à posição horizontal
e se sentiu imóvel, tornou a si.
Em seguida sentiu certa frialdade. Tinha chegado ao fundo da cova.
Elevou-se então por cima dele uma voz glacial e solene, e ouviu pronunciar, tão
lentamente que as percebia uma por uma, algumas palavras latinas, que não entendia.
— Qui domiunt in terrae pulvere, evigilabunt; alii in vitam eeternam, et alii in
opprobrium, ut videant semper.
— De profundis — respondeu uma voz de criança.
— Requiem alternam donna ei Domine — tornou a voz grave.
— Et lux perpetua luceat ei.
Após isto, ouviu soar sobre a tábua que o cobria como que as pancadas leves de
algumas gotas de chuva.
«É a água benta, provavelmente», disse ele consigo, e acrescentou: «Isto está a
acabar. Mais um bocado de paciência, que o padre vai-se embora, e Fauchelevent leva o
Mestienne para a taberna. Irão todos embora, mas depois vem Fauchelevent sem o
outro e tira-me daqui. É negócio de uma hora abonada.»
— Requiescat in pace — tornou a voz grave.
— Ámen — disse a voz da criança.
Jean Valjean apurou então o ouvido e como que sentiu um rumor de passos
afastando-se.
— Eles lá vão — disse consigo. — Fico eu só.
De repente ouviu um ruído por cima da cabeça que se lhe afigurou o ribombo de um
trovão.
Era uma pazada de terra caindo sobre o caixão.
Em seguida caiu outra e tapou um dos buracos por onde ele respirava.
Depois terceira e quarta.
Há coisas mais fortes do que o homem mais forte.
Jean Valjean desmaiou.
continua na página 421...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - VI - Entre quatro tábuas
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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