quinta-feira, 17 de julho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - Os cemitérios aceitam o que lhes dão / VI - Entre quatro tábuas

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão

VI - Entre quatro tábuas
     
     Quem estava no caixão? Era Jean Valjean, que arranjara maneira de viver dentro daquilo e que mal respirava.
     É estranho até que ponto a segurança da consciência dá a segurança de tudo mais. Toda a combinação premeditada por Jean Valjean caminhava, e caminhava bem, desde o dia antecedente. Contava ele, como Fauchelevent, com o senhor Mestienne, e por isso não duvidava do fim. Jamais se vira situação mais crítica e mais completa tranquilidade.
      As quatro tábuas do caixão produzem uma espécie de paz terrível. Parecia que a tranquilidade de Jean Valjean como que participava do repouso dos mortos. Do fundo daquele esquife tinha ele podido seguir, e seguia todas as fases do temível drama que estava representando com a morte.
     Pouco depois que Fauchelevent acabara de pregar a tábua de cima, Jean Valjean sentiu levarem-no, depois rolar. Pela diminuição dos solavancos conheceu que passavam da calçada para caminho de terra, isto é, que acabaram as ruas e principiavam os boulevards. Por um ruído surdo que ouviu adivinhou que atravessavam a ponte de Austerlitz. Quando o carro parou a primeira vez conheceu que entrava no cemitério, e da segunda paragem disse consigo: «Aí está a escavação».
     Em seguida sentiu de chofre pegarem no caixão, e, logo depois, o roçar rouco de um objeto pelas tábuas, que conheceu ser uma corda que lhe atavam em roda do caixão para o descer à cova.
     Após isto, ficou como que atordoado.
     Provavelmente eram os gatos-pingados que tinham deixado balouçar o caixão, descendo-o primeiro da cabeça que dos pés. Apenas, porém, voltou à posição horizontal e se sentiu imóvel, tornou a si.
     Em seguida sentiu certa frialdade. Tinha chegado ao fundo da cova.
      Elevou-se então por cima dele uma voz glacial e solene, e ouviu pronunciar, tão lentamente que as percebia uma por uma, algumas palavras latinas, que não entendia.

Qui domiunt in terrae pulvere, evigilabunt; alii in vitam eeternam, et alii in opprobrium, ut videant semper.
De profundis — respondeu uma voz de criança.
Requiem alternam donna ei Domine — tornou a voz grave.
Et lux perpetua luceat ei.
 
     Após isto, ouviu soar sobre a tábua que o cobria como que as pancadas leves de algumas gotas de chuva.

 «É a água benta, provavelmente», disse ele consigo, e acrescentou: «Isto está a acabar. Mais um bocado de paciência, que o padre vai-se embora, e Fauchelevent leva o Mestienne para a taberna. Irão todos embora, mas depois vem Fauchelevent sem o outro e tira-me daqui. É negócio de uma hora abonada.»

Requiescat in pace — tornou a voz grave.
Ámen — disse a voz da criança.

      Jean Valjean apurou então o ouvido e como que sentiu um rumor de passos afastando-se.

— Eles lá vão — disse consigo. — Fico eu só.

     De repente ouviu um ruído por cima da cabeça que se lhe afigurou o ribombo de um trovão. 
     Era uma pazada de terra caindo sobre o caixão. 
     Em seguida caiu outra e tapou um dos buracos por onde ele respirava. 
     Depois terceira e quarta. 
     Há coisas mais fortes do que o homem mais forte. 
     Jean Valjean desmaiou.

continua na página 421...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - VI - Entre quatro tábuas
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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