sábado, 5 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (7c) - No começo

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

7.

continuando...

     No começo, quando de sua entrada na sala, lembrando-se de que Agláia o amedrontara a respeito do vaso da China, sentou o mais distante possível dele. Pareça, ou não, verdade, depois das palavras de Agláia, na véspera, o obsedou como convicção prodigiosa o pressentimento incrível de que, pela certa, quebraria o vaso no dia seguinte. Para evitar o desastre, cuidadosamente se afastara do vaso. Mas tinha de ser. No decorrer do serão outras e mais ardentes impressões se foram apoderando da sua alma, conforme ainda agora mesmo estivemos descrevendo. E ele esqueceu o seu pressentimento.
     Quando ouviu falar o nome de Pavlíchtchev e, depois, quando o General Epantchín o conduziu até Iván Petróvitch, para o apresentar, Míchkin se mudara para mais perto da mesa, acabando por se sentar justamente na poltrona mais próxima do enorme e lindo vaso da China que estava sobre um pedestal quase rente do seu cotovelo e um pouco atras.
     Ao proferir as últimas palavras, inadvertidamente escancarara os braços e dera um repelão com o ombro...
     Houve um grito geral de espanto.
     O vaso balançou primeiro, como a hesitar se deveria cair sobre uma das cabeças dos senhores idosos; mas subitamente se inclinou para o lado oposto, na direção do poeta alemão, que se desviou para um lado; e então se foi espatifar no assoalho. Um barulho, um só grito, e os preciosos cacos se espalharam pelo tapete. A perplexidade e o susto decorrentes e como a situação de Míchkin se tornou crítica, tudo isso é desnecessário descrever aqui.
     Mas não podemos omitir uma impressão exótica que logo o crispou e que não se desvaneceu nem mesmo durante o tempo em que toda aquela massa de sensações o confundiu. O que o impressionou não foi a vergonha nem o escândalo concomitante com o susto. Nem foi mesmo o inesperado do fato. Foi essa presciência de que isso se daria ao tomar de súbito uma conformação objetiva. Não saberia julgar porque o subjugara antes essa certeza agora confirmada. Ficou parado, sentindo um aperto no coração, invadido por um terror quase supersticioso.
     Bastou porém um minuto para sentir um desafogo quando tal terror foi substituído por uma espécie de luz, de alegria radiosa. Antes que o ar lhe faltasse, já o momento crítico tinha passado. Respirou fundo e olhou em volta. De início ficou impossibilitado de compreender o tumulto que o cercava; imediatamente depois lhe pareceu não ser causa nem motivo daquilo tudo e sim estar também ele presenciando. como se, em um conto de fadas, tivesse entrado pulando invisível lá para dentro, atraído pelo fato com o qual nada tinha de ver mas que o interessava. Via gente curvada, pegando aqui e acolá os cacos maiores; ouvia o vozerio; via Agláia, pálida, sem traço de ódio ou de aborrecimento, olhá-lo de modo muito estranho. Aqueles olhos o miravam com afeição, depois olhavam para as outras pessoas também com afeição, e isso deu ao coração de Míchkin uma doce pena.
     Para maior espanto seu, viu todos de repente se sentarem outra vez. E rindo, sim, todos estavam rindo, como se nada houvesse acontecido. No momento seguinte, olhando-lhe a estupefação muda, tornaram a rir. Era uma risada amável, alegre, bondosa. Muitos se dirigiam a ele, cordialmente. Lizavéta Prokófievna, mais do que todos risonha, lhe dizia qualquer coisa muito, muitíssimo inefável. Quando o príncipe reparou, o general estava a dar-lhe pancadinhas amistosas no ombro, Iván Petróvitch também se ria; mas o velho dignitário foi de todos o mais encantador. Tomou a mão do príncipe, apertou-a de modo jocoso e ao mesmo tempo íntimo, bateu-lhe com a outra mão livre umas pancadinhas nas costas, animou-o, deram alguns passos juntos. Falava- lhe como a um garoto que tivesse levado um susto. (O príncipe ficou radiante com isso.) E acabou por fazê-lo sentar ao seu lado. Agora Míchkin olhava, contentíssimo, para aquele semblante venerável, e não podia falar, com a respiração suspensa. Como gostou da fisionomia daquele velho!

 - Com que então - murmurou afinal - realmente todos me perdoam? A senhora também, Lizavéta Prokófievna?

     A risada foi maior do que antes. Lágrimas vieram aos olhos de Míchkin. Nem podia acreditar: estava encantado. Iván Petróvitch disse então:

- Não há dúvida de que era um vaso preciosíssimo. Lembro-me dele ali no mesmo lugar, deve haver uns quinze anos. Quinze, no mínimo! 
- Não foi nenhum desastre terrível. Se até a gente acaba um dia, quanto mais um objeto? Por que todo esse espanto, Liév Nikoláievitch, por causa de um vaso de cerâmica? - exclamou Lizavéta Prokófievna, com vivacidade redundante. - Veja Lá se vai agora ficar desapontado por causa disso! acrescentou com ar de já estar apreensiva. 
- Não se incomode, meu rapaz. não se incomode. Veja que eu estou à vontade! Não estou? 
- E perdoa-me por tudo? Por tudo, além do vaso?

     E ia levantar-se, mas o velho lhe puxou o braço, como para não o deixar prosseguir, murmurando por cima da mesa para Iván Petróvitch: - C’est três curieux ei c’est três sérieux! Mas o fez alto e instintivamente a ponto de o príncipe dar a entender que ouvira.

- Assim, pois, não ofendi a ninguém? Nem podem imaginar como esta verificação me põe feliz. Mas tinha de ser assim. Poderia eu ofender a alguém aqui? Persistindo em perguntar é que ofendo, não é mesmo? 
- Acalme-se, meu querido rapaz. Isso tudo é exagerado. Não há motivo para se mostrar tão grato assim! Trata-se de um sentimento excelente mas exagerado. 
- Não estou agradecendo e sim apenas eu... eu... os estou admirando! Palavra de honra que olhá-los dá felicidade... Decerto estou proferindo bobagens, mas devo falar, devo explicar, quando mais não seja por consideração a mim próprio...

     O que dizia, o que fazia era já sob espasmo, febricitação e névoa. Provavelmente as palavras que proferia não eram as que pretendera proferir. Mas os seus olhos perguntavam se ainda podia continuar a falar mais e mais. E nisto deram com os da Princesa Bielokónskaia. 

- Está muito bem, bátiuchka, prossiga, prossiga, mas não se precipite dessa forma. Já não viu o resultado da sua pressa no que deu ainda agora? Estas damas e estes cavalheiros já foram mais extravagantes do que o senhor, e portanto não se podem surpreender. E nem o senhor fez nada de extraordinário! Que fez o senhor? Quebrou um vaso e nos pregou um susto. 

     Míchkin ouvia, sorrindo. Pouco depois teve o velho dignitário que ficar todo vermelho, pedindo ao príncipe “calma, calma!” pois este se voltando para ele lhe perguntara de chofre: 

- Com que então foi o senhor quem, há três meses, salvou do degredo um estudante chamado Podkúmov e um tabelião chamado Chvábrin? Virou-se a seguir para Iván Petróvitch: - E penso que foi o senhor, se ouvi direito, que presenteou madeira suficiente para os seus mujiques reconstruírem suas isbás que um incêndio destruíra? E isso depois de lhes haver abolido a servidão e nem assim lhe terem dado provas sequer de agradecimento? 
- Oh! Exageraram-lhe! 
- Mas Iván Petróvitch sentiu um prazer dignificado. 

     Nesse caso, Iván Petróvitch tinha toda a razão, pois era apenas um boato absolutamente falso, que tinha chegado aos ouvidos do príncipe. Agora era com a Princesa Bielokónskaia: 

- E não me recebeu a senhora há seis meses, em Moscou. como a um filho, quando Lizavéta Prokófievna lhe escreveu me recomendando? E que mãe daria aos próprios filhos os conselhos que a senhora me deu?! Nunca me esquecerei. Lembra-se, Alteza? 
- Por que está o senhor nesse estado? - a Princesa Bielokónskaia vexada - É uma pessoa de coração esplêndido, mas.. absurda. Se alguém lhe dá uma pequena moeda se põe a agradecer como se esse alguém lhe tivesse salvo a vida. Sua gratidão é valiosa mas vexa... - Esteve a ponto de se zangar, mas acabou também ela rindo, e dessa vez a risada era de desvanecido contentamento. 

     O rosto de Lizavéta Prokófievna estava radiante, o do General Epantchín até refulgia, sendo que ele, repetindo as palavras da princesa que tanto o haviam tocado, disse ainda em êxtase: 

- Também acho que se Liév Nikoláievitch não fosse tão precipitado seria... como direi?... seria...

     Somente Agláia demonstrava mortificação. Havia um rubor talvez de ressentimento difuso em suas faces. 
     E o velho dignitário exclamou outra vez para Iván Petróvítch.

- Ele é deveras muito encantador!

     E eis que com emoção crescente, recomeçando a falar de modo cada vez mais extravagante e impetuoso sempre com uma estranha pressa, Míchkin declarou: 

- Dizer-se que entrei neste salão, hoje, com uma tremenda angústia interior! Temia-os a todos e temia a mim mesmo. A mim mais do que a todos. Quando cheguei do estrangeiro vim com o intento de procurar a melhor gente. Gente de antigas famílias de antigas linhagens, como é o meu caso entre as quais me encontro na primeira fila por direito de nascimento Agora, por exemplo, me vejo sentado perto de uma princesa como príncipe que sou, não é verdade? Ainda quero conhecê-los mais, e sei que é necessário, muito necessário! A mim me diziam que, em gente como as pessoas com quem aqui tenho a honra de estar, havia mais defeitos do que qualidades. Que era gente rabugenta, exclusivista voltada só para os seus interesses, estagnada de educação superficial e de hábitos ridículos! O que se falou e o que por aí há escrito a tal respeito! Entro aqui com a maior curiosidade. E com inquietação, dado esse conceito crítico. Vim Com o intento de formar pessoalmente uma opinião exata, ver se de fato a Camada superior do povo russo não Prestava para nada, se vivia fora do seu tempo, aderida à sua vida retrógrada! Vim para verificar se, assim sendo, não lhe valeria mais morrer de vez em lugar de se estiolar aos poucos, persistindo em intermináveis e inúteis rixas com os homens do futuro, em lugar de lhes entravar o caminho com seus corpos já quase cadáveres. Já anteriormente não cheguei nunca a acreditar nessa asserção, tanto mais que entre nós aqui na Rússia nunca houvera uma casta superior propriamente, salvo os cortesãos, por uniforme ou por acidente, e que desapareceram de todo, agora. Estou falando direito, ou não? 
- Não, não está certo - disse Iván Petróvitch sorrindo com ironia. 
- Pronto! Lá vem ele outra vez!- comentou a Princesa Bielokónskaia, perdendo a paciência. 
- Laissez-le dire!... Está morto por isso! - garantiu-lhe o velho dignitário, em voz baixa. 

     O príncipe perdera completamente o autodomínio:

- E que encontro eu? Sim, aqui neste salão, nesta sociedade? Gente elegante, de bom coração, inteligente! Deparo com um respeitável ancião que se prontifica a ouvir um rapaz como eu, que se torna afável comigo! Encontro gente apta a compreender e a perdoar! Eis a bondosa gente russa! Tão bondosa e caritativa como a que encontrei por lá. Talvez até melhor! Fácil é julgar que deliciosa surpresa não é a minha! Oh! Permitam-me que eu traslade isso para palavras! Tanto se ouve dizer e tanto se acredita que a alta sociedade não passa de maneirismos, de etiquetas antiquadas, na qual toda a realidade da vida está extinta! E agora, aqui estou e verifico por mim próprio que entre nós na Rússia não se dá isso. Lá fora talvez possa ser, mas aqui na Rússia, não! Pode gente assim ser contrafação? Pode disto nascer vocação para jesuítas? Ouvi o Príncipe N... contar agora há pouco uma história. Que espontaneidade, que singeleza de humor, que franqueza genuína. Poderiam tais palavras sair de um homem que estivesse morto já? Cujo talento e cujo coração houvessem secado já? Tratar-me- iam os mortos como aqui me trataram? Não é isto material e substância para o futuro? Para uma crença esperançosa? Pode gente assim ficar para trás, deixar de ter sensibilidade?
- Peço-lhe de novo, meu rapaz, que se acalme. Vamos deixar esse assunto para uma outra vez. Terei muito prazer - sorriu o velho dignitário.

     Iván Petróvitch resolveu limpar a garganta. E mexendo-se na sua poltrona, o General Epantchín fez um movimento qualquer. O chefe de seção resolveu conversar com a esposa do alto dignitário, deixando de prestar atenção em Míchkin. Mas a mulher do dignitário ainda assim o escutava e olhava de soslaio.

- Não, o melhor para mim é falar - tornou a investir o príncipe, febrilmente, dirigindo-se para o ancião com particular confiança, como se estivesse fazendo uma confidência. - Ontem Agláia Ivánovna me pediu que permanecesse aqui hoje muito calado. Ou melhor, chegou a me dizer quais os assuntos que eu não deveria falar em hipótese alguma. (Ela sabe em que espécie de assuntos digo incoerências.) Tenho vinte e seis anos, mas não ignoro que sou uma criança. Já muitas vezes me admoestei a mim próprio pois acho que não tenho o direito de exprimir uma opinião já que o faço sempre errado. Foi somente com um tal Rogójin que uma vez me abri francamente. Líamos Ptíchkin inteiro, juntos, do qual ele ignorava até o nome. Sempre temi que este meu modo absurdo pudesse desacreditar o pensamento, a ideia dominante. Não tenho elocução. Não tenho gesticulação adequada, causo risos nos outros, enfim... degrado as minhas ideias. Não tenho o senso de proporção, muito menos! E isso é que é pior. Sei que me é muito mais vantajoso ficar sentado, quieto. Mas quando persisto em ficar quieto me torno muito sensível e, o que é mais, me ponho a pensar em uma porção de coisas. E então Sinto que o melhor é falar. Falando me sinto logo magnificamente. Todos estão com expressão tão inefável! Prometi ontem a Agláia Ivánovna que ficaria calado hoje toda a noite!
- Vraiment? - sorriu o velho dignitário.
- Mas pensando bem vi que não tenho razão em pensar assim. A sinceridade não é declamação, mesmo que pareça ser só isso e nada mais. Não é verdade mesmo? 
- As vezes. 
- Quero explicar tudo, tudo, tudo! Sim, cuidam que sou utópico? Teórico? Pelo amor de Deus! Mas as minhas ideias são o que há de mais simples! Não acreditam? Riem? Digo-lhes, sou às vezes desprezível exatamente por não manter sempre acesa essa minha fé, por vacilar às vezes. Quando entrei aqui neste salão, ainda há pouco, perguntava a mim mesmo: Como me devo dirigir a eles? Com quais palavras devo começar a fim de que me compreendam ao menos um pouco?” Como entrei amedrontado! E mais amedrontado estava por todos aqui. Foi terrível, terrível! E, afinal, por que esse medo? Não é vergonhoso ter medo? Por que há de um espírito avançado recear diante de uma tal ou qual massa de retrógrados e maus? Devia entrar de fronte erguida! E eis o que me tornou assim tão feliz! É que minutos depois já eu me havia Convencido que não existe absolutamente essa tal ou qual massa retrógrada e má, mas que todos são, todos somos substância viva! Assim, por que continuar eu preocupado, arredio, temendo já agora apenas o meu feitio absurdo? Meu? Só meu? Estamos todos fartos de saber que somos absurdos, superficiais, que temos maus hábitos, que somos maçantes, que não sabemos encarar as coisas, que não compreendemos coisíssima nenhuma! Somos todos assim, nós, eu, eles, aqueles, estes, todos! E não ficam ofendidos por lhes estar eu dizendo no rosto, que são, que somos absurdos? Estão? Mas é que. também assevero que somos substância esplêndida! Querem que lhes diga uma coisa? A meu ver às vezes ser absurdo não deixa ser bom. Com efeito, é melhor até. Toma mais fácil nos perdoarmos uns aos outros, é mais fácil do que ser humilde. Não é possível a humanidade compreender tudo, imediatamente, não é possível começar logo com a perfeição! Para atingirmos a perfeição, devem começar por uma grande ignorância bem difusa! Tudo que é compreendido depressa carece de compreensão eficiente. Digo-lhes isto porque por mais que se haja entendido e compreendido muita coisa, muitíssima mais ainda há a ser compreendida com eficiência essencial! Mas agora caio em mim: não se teriam molestado por um criançola como eu lhes dizer tais coisas? Claro que não! Bem, sabem todos aqui de que forma relevar e perdoar os que os ofendem: e os que não os ofendem. Sim, sempre é muito mais difícil perdoar quem não nos ofende, pois tal perdão tem de ser duplo, para a inocência alheia e para a injustiça de nosso equívoco, já que erradamente supusemos nos ter advindo dano. Eis o que eu esperava de gente sã, eis o que eu ansiava por declarar quando comecei a me exprimir, não sabendo ser claro... O senhor está rindo, Iván Petróvitch? Cuida que ao entrar aqui eu estava com prevenção por causa deles, de quem passo por paladino, tido como sou por um democrata um advogado da igualdade? (Riu de forma crispada. Já vi entrecortando os períodos com acento de riso prazeroso.) Não, não era isso. Meu medo era por todos nós aqui juntos. Pois se eu próprio sou um príncipe, de antiga família! Se me vejo sentado entre príncipes! Falo, para salvar a todos nós, para que a nossa classe não pereça em vão nas trevas, sem realizar nada, tendo recebido tudo e tudo tendo perdido! Por que hei de eu desaparecer. dar passagem a outros, quando posso permanecer na vanguarda e ser dos principais? Já que estamos na frente, urge sejamos os chefes! Tornemo-nos servos para sermos condutores!  

     Fez menção de se levantar da poltrona mas o velho dignitário o conteve de novo embora o olhasse com uma inquietação crescente.

- Tenham paciência, ouçam! Sei que não está direito que eu esteja falando. Melhor dar um exemplo, fica mais claro!... Melhor começar... e já comecei... e... e... pode alguém ser deveras infeliz? posso eu, por exemplo, me considerar infeliz só porque sou doente, só por causa do meu caso tão triste? Mas se posso ser feliz! Palavra que não entendo como é que existe gente que ao passar por uma árvore não se sinta feliz em vê la! Como pode uma pessoa conversar com outra e não sentir felicidade em amar essa outra pessoa? Estão entendendo? O que digo é certo, exato, nítido! Só que não consigo me exprimir certo... E que de coisas inefáveis deparamos a todo instante, a cada passo, tantas e tais que mesmo o homem mais desesperançado tem de se sentir feliz, pelo menos ao dar com uma delas! Que nossos olhos batam no rosto de uma criança, que nossos olhos se deslumbrem diante do nascer do sol, que se abaixem para ver como a erva cresce! isso não chega para dar felicidade? E se nossos olhos dão de chofre com uns olhos que nos amam?!... 

     Ergueu-se por um instante, enquanto falava. De repente o ancião o olhou estupefato, sendo que Lizavéta Prokófievna, erguendo os braços, aturdida, exclamou: “Deus do Céu!” pois fora a primeira a perceber a terrível surpresa. Nisto, Agláia se precipitou de onde estava para ele e ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços, ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia, aquele uivo selvagem do “espírito que dilacera e rasga um desgraçado”. O doente jazia agora sobre o tapete e alguém se apressou em lhe colocar uma almofada sob a cabeça.
     Quem poderia esperar por uma coisa destas? Um quarto de hora depois, o Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch e o velho dignitário se empenhavam em restabelecer a vivacidade da reunião. Foi impossível. E dentro de meia hora a recepção se desfez, sendo pronunciadas muitas palavras de simpatia e de mágoa, os comentários se restringindo ao mínimo. Iván Petróvitch observou que “o jovem era um eslavófilo mas que não havia nada de perigoso nisso”, O alto dignitário não expressou opinião de espécie alguma. Cumpre dizer, de passagem, que no dia seguinte e no imediato, todos os que tinham estado presentes pareciam um tanto ou quanto circunspectos ou mesmo frios com os Epantchín. Iván Petróvitch tomou ares de “desconsiderado”, isso logo passando. O chefe de seção do departamento onde trabalhava o General Epantchín o tratou um tanto secamente. O velho dignitário grunhiu qualquer reparo genérico, à guisa de advertência ao chefe da família, valendo-se da sua categoria de padrinho, ou melhor, patrono, coisa que logo abrandou, passando através de termos elogiosos a deixar entrever quanto se interessava pelo futuro de Agláia. Realmente era um homem de bom coração. E a prova complementar disto é que uma das razões por que naquela noite se interessara por Míchkin promanava do fato de já ter ouvido alusões ao papel que o príncipe desempenhara no escândalo referente a Nastássia Filíppovna. Viera a saber qualquer coisa sobre o caso, interessara-se bastante, gostaria até de fazer umas perguntas.
     A Princesa Bielokónskaia disse a Lizavéta Prokófievna ao se despedir aquela noite:

- Bem, há nele coisas boas e ruins. E se desejas que eu seja franca: as ruins são em maior quantidade do que as boas. Podes ver por ti mesma o que ele é: um homem doente!

     A generala compenetrou-se, de uma vez para sempre, que um tal noivado era “impossível” e naquela mesma noite ainda fez o voto de, enquanto vivesse, não consentir que ele viesse a ser marido de Agláia. Tal opinião perdurou até à manhã seguinte, quando se levantou. Com o decorrer das horas se sentiu enleada em contradições que chegaram ao auge por volta de meio-dia, ao se sentar para o almoço.
     Em resposta a uma pergunta que as irmãs lhe fizeram com muita cautela, Agláia declarou, friamente, mas com altivez, de forma peremptória:

- Nunca lhe dei margem a acariciar qualquer esperança, nem mesmo vagamente. Jamais o considerei sequer em pensamento como podendo vir a ser meu noivo. Para mim é um homem tão desinteressante como outro qualquer. 

     Lizavéta Prokófievna queimou-se logo:

- Nunca poderia esperar isso de ti! - disse com mágoa. - Bem sei que como pretendente ele se acha fora de questão, e agradeço a Deus estarmos todas e todos de pleno acordo. Mas não esperava estas palavras de ti. Esperava coisa muitíssimo diferente! Quanto a mim, estive para mandar embora toda aquela gente ontem à noite ficar apenas com ele! Eis a minha opinião em resposta à tua!

     E imediatamente se calou, apavorada com as próprias palavras. Mas se ao menos pudesse saber quanto estava sendo injusta com a filha nesse momento! Sim, pois esta já mentalmente havia decidido tudo. Também ela estava aguardando ansiosa a hora definitiva e qualquer alusão, qualquer referência, só lhe poderia produzir uma profunda ferida coração adentro.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (7c) - No começo
___________________ 


___________________


Nenhum comentário:

Postar um comentário