Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
7.
continuando...
No começo, quando de sua entrada na sala, lembrando-se de que Agláia o
amedrontara a respeito do vaso da China, sentou o mais distante possível dele.
Pareça, ou não, verdade, depois das palavras de Agláia, na véspera, o obsedou
como convicção prodigiosa o pressentimento incrível de que, pela certa,
quebraria o vaso no dia seguinte. Para evitar o desastre, cuidadosamente se
afastara do vaso. Mas tinha de ser. No decorrer do serão outras e mais ardentes
impressões se foram apoderando da sua alma, conforme ainda agora mesmo
estivemos descrevendo. E ele esqueceu o seu pressentimento.
Quando ouviu falar
o nome de Pavlíchtchev e, depois, quando o General Epantchín o conduziu até
Iván Petróvitch, para o apresentar, Míchkin se mudara para mais perto da mesa,
acabando por se sentar justamente na poltrona mais próxima do enorme e lindo
vaso da China que estava sobre um pedestal quase rente do seu cotovelo e um
pouco atras.
Ao proferir as últimas palavras, inadvertidamente escancarara os braços e dera
um repelão com o ombro...
Houve um grito geral de espanto.
O vaso balançou primeiro, como a hesitar se
deveria cair sobre uma das cabeças dos senhores idosos; mas subitamente se
inclinou para o lado oposto, na direção do poeta alemão, que se desviou para um
lado; e então se foi espatifar no assoalho. Um barulho, um só grito, e os preciosos
cacos se espalharam pelo tapete. A perplexidade e o susto decorrentes e como a
situação de Míchkin se tornou crítica, tudo isso é desnecessário descrever aqui.
Mas não podemos omitir uma impressão exótica que logo o crispou e que não se
desvaneceu nem mesmo durante o tempo em que toda aquela massa de
sensações o confundiu. O que o impressionou não foi a vergonha nem o
escândalo concomitante com o susto. Nem foi mesmo o inesperado do fato. Foi
essa presciência de que isso se daria ao tomar de súbito uma conformação
objetiva. Não saberia julgar porque o subjugara antes essa certeza agora
confirmada. Ficou parado, sentindo um aperto no coração, invadido por um
terror quase supersticioso.
Bastou porém um minuto para sentir um desafogo quando tal terror foi
substituído por uma espécie de luz, de alegria radiosa. Antes que o ar lhe faltasse,
já o momento crítico tinha passado. Respirou fundo e olhou em volta. De início
ficou impossibilitado de compreender o tumulto que o cercava; imediatamente
depois lhe pareceu não ser causa nem motivo daquilo tudo e sim estar também
ele presenciando. como se, em um conto de fadas, tivesse entrado pulando
invisível lá para dentro, atraído pelo fato com o qual nada tinha de ver mas que o
interessava. Via gente curvada, pegando aqui e acolá os cacos maiores; ouvia o
vozerio; via Agláia, pálida, sem traço de ódio ou de aborrecimento, olhá-lo de
modo muito estranho. Aqueles olhos o miravam com afeição, depois olhavam
para as outras pessoas também com afeição, e isso deu ao coração de Míchkin
uma doce pena.
Para maior espanto seu, viu todos de repente se sentarem outra vez. E rindo, sim,
todos estavam rindo, como se nada houvesse acontecido. No momento seguinte,
olhando-lhe a estupefação muda, tornaram a rir. Era uma risada amável, alegre,
bondosa. Muitos se dirigiam a ele, cordialmente. Lizavéta Prokófievna, mais do
que todos risonha, lhe dizia qualquer coisa muito, muitíssimo inefável. Quando o
príncipe reparou, o general estava a dar-lhe pancadinhas amistosas no ombro,
Iván Petróvitch também se ria; mas o velho dignitário foi de todos o mais
encantador. Tomou a mão do príncipe, apertou-a de modo jocoso e ao mesmo
tempo íntimo, bateu-lhe com a outra mão livre umas pancadinhas nas costas,
animou-o, deram alguns passos juntos. Falava- lhe como a um garoto que tivesse
levado um susto. (O príncipe ficou radiante com isso.) E acabou por fazê-lo
sentar ao seu lado. Agora Míchkin olhava, contentíssimo, para aquele semblante
venerável, e não podia falar, com a respiração suspensa. Como gostou da
fisionomia daquele velho!
- Com que então - murmurou afinal - realmente todos
me perdoam? A senhora também, Lizavéta Prokófievna?
A risada foi maior do que antes. Lágrimas vieram aos olhos de Míchkin. Nem
podia acreditar: estava encantado.
Iván Petróvitch disse então:
- Não há dúvida de que era um vaso preciosíssimo. Lembro-me dele ali no
mesmo lugar, deve haver uns quinze anos. Quinze, no mínimo!
- Não foi nenhum
desastre terrível. Se até a gente acaba um dia, quanto mais um objeto? Por que
todo esse espanto, Liév Nikoláievitch, por causa de um vaso de cerâmica? - exclamou Lizavéta Prokófievna, com vivacidade redundante. - Veja Lá se vai
agora ficar desapontado por causa disso!
acrescentou com ar de já estar apreensiva.
- Não se incomode, meu rapaz. não
se incomode. Veja que eu estou à vontade! Não estou?
- E perdoa-me por tudo?
Por tudo, além do vaso?
E ia levantar-se, mas o velho lhe puxou o braço, como
para não o deixar prosseguir, murmurando por cima da mesa para Iván
Petróvitch: - C’est três curieux ei c’est três sérieux!
Mas o fez alto e instintivamente a ponto de o príncipe dar a entender que ouvira.
- Assim, pois, não ofendi a ninguém? Nem podem imaginar como esta
verificação me põe feliz. Mas tinha de ser assim. Poderia eu ofender a alguém
aqui? Persistindo em perguntar é que ofendo, não é mesmo?
- Acalme-se, meu
querido rapaz. Isso tudo é exagerado. Não há motivo para se mostrar tão grato
assim! Trata-se de um sentimento excelente mas exagerado.
- Não estou agradecendo e sim apenas eu... eu... os estou admirando! Palavra de
honra que olhá-los dá felicidade... Decerto estou proferindo bobagens, mas devo
falar, devo explicar, quando mais não seja por consideração a mim próprio...
O que dizia, o que fazia era já sob espasmo, febricitação e névoa. Provavelmente
as palavras que proferia não eram as que pretendera proferir. Mas os seus olhos
perguntavam se ainda podia continuar a falar mais e mais. E nisto deram com os
da Princesa Bielokónskaia.
- Está muito bem, bátiuchka, prossiga, prossiga, mas
não se precipite dessa forma. Já não viu o resultado da sua pressa no que deu
ainda agora? Estas damas e estes cavalheiros já foram mais extravagantes do
que o senhor, e portanto não se podem surpreender. E nem o senhor fez nada de
extraordinário! Que fez o senhor?
Quebrou um vaso e nos pregou um susto.
Míchkin ouvia, sorrindo.
Pouco depois teve o velho dignitário que ficar todo vermelho, pedindo ao príncipe
“calma, calma!” pois este se voltando para ele lhe perguntara de chofre:
- Com que então foi o senhor quem, há três meses, salvou do degredo um
estudante chamado Podkúmov e um tabelião chamado Chvábrin? Virou-se a
seguir para Iván Petróvitch: - E penso que foi o senhor, se ouvi direito, que
presenteou madeira suficiente para os seus mujiques reconstruírem suas isbás
que um incêndio
destruíra? E isso depois de lhes haver abolido a servidão e nem assim lhe terem
dado provas sequer de agradecimento?
- Oh! Exageraram-lhe!
- Mas Iván Petróvitch sentiu um prazer dignificado.
Nesse caso, Iván Petróvitch tinha toda a razão, pois era apenas um boato
absolutamente falso, que tinha chegado aos ouvidos do príncipe. Agora era com a
Princesa Bielokónskaia:
- E não me recebeu a senhora há seis meses, em
Moscou. como a um filho, quando Lizavéta Prokófievna lhe escreveu me
recomendando? E que mãe daria aos próprios filhos os conselhos que a senhora
me deu?! Nunca me esquecerei. Lembra-se, Alteza?
- Por que está o senhor
nesse estado? - a Princesa Bielokónskaia vexada - É uma pessoa de coração esplêndido, mas.. absurda. Se alguém lhe dá uma pequena moeda se põe a agradecer como se esse
alguém lhe tivesse salvo a vida. Sua gratidão é valiosa mas vexa... - Esteve a
ponto de se zangar, mas acabou também ela rindo, e dessa vez a risada era de
desvanecido contentamento.
O rosto de Lizavéta Prokófievna estava radiante, o do General Epantchín até
refulgia, sendo que ele, repetindo as palavras da princesa que tanto o haviam
tocado, disse ainda em êxtase:
- Também acho que se Liév Nikoláievitch não fosse tão precipitado seria... como
direi?... seria...
Somente Agláia demonstrava mortificação. Havia um rubor talvez de
ressentimento difuso em suas faces.
E o velho dignitário exclamou outra vez para Iván Petróvítch.
- Ele é deveras
muito encantador!
E eis que com emoção crescente, recomeçando a falar de modo cada vez mais
extravagante e impetuoso sempre com uma estranha pressa, Míchkin declarou:
- Dizer-se que entrei neste salão, hoje, com uma tremenda angústia interior!
Temia-os a todos e temia a mim mesmo. A mim mais do que a todos. Quando
cheguei do estrangeiro vim com o intento de procurar a melhor gente. Gente de
antigas famílias de antigas linhagens, como é o meu caso entre as quais me
encontro na primeira fila por direito de nascimento Agora, por exemplo, me vejo
sentado perto de uma princesa como príncipe que sou, não é verdade? Ainda
quero conhecê-los mais, e sei que é necessário, muito necessário! A mim me
diziam que, em gente como as pessoas com quem aqui tenho a honra de estar,
havia mais defeitos do que qualidades. Que era gente
rabugenta, exclusivista voltada só para os seus interesses, estagnada de
educação superficial e de hábitos ridículos! O que se falou e o que por aí há
escrito a tal respeito! Entro aqui com a maior curiosidade. E com inquietação,
dado esse conceito crítico. Vim Com o intento de formar pessoalmente uma
opinião exata, ver se de fato a Camada superior do povo russo não Prestava para
nada, se vivia fora do seu tempo, aderida à sua vida retrógrada! Vim para
verificar se, assim sendo, não lhe valeria mais morrer de vez em lugar de se
estiolar aos poucos, persistindo em intermináveis e inúteis rixas com os homens
do futuro, em lugar de lhes entravar o caminho com seus corpos já quase
cadáveres. Já anteriormente não cheguei nunca a acreditar nessa asserção, tanto
mais que entre nós aqui na Rússia nunca houvera uma casta superior
propriamente, salvo os cortesãos, por uniforme ou por acidente, e que
desapareceram de todo, agora. Estou falando direito, ou não?
- Não, não está
certo - disse Iván Petróvitch sorrindo com ironia.
- Pronto! Lá vem ele outra vez!- comentou a Princesa Bielokónskaia, perdendo a paciência.
- Laissez-le dire!... Está morto por isso! - garantiu-lhe o velho dignitário, em voz
baixa.
O príncipe perdera completamente o autodomínio:
- E que encontro eu? Sim,
aqui neste salão, nesta sociedade? Gente elegante, de bom coração, inteligente!
Deparo com um respeitável ancião que se prontifica a ouvir um rapaz como eu,
que se torna afável comigo! Encontro gente apta a compreender e a perdoar! Eis
a bondosa gente russa! Tão bondosa e caritativa como a que encontrei por lá.
Talvez até melhor! Fácil é julgar que deliciosa surpresa não é a minha! Oh!
Permitam-me que eu traslade isso para palavras! Tanto se ouve dizer e tanto se
acredita que a alta sociedade não passa de maneirismos, de etiquetas antiquadas,
na qual toda a realidade da vida está extinta! E agora, aqui estou e verifico por
mim próprio que entre nós na Rússia não se dá isso. Lá fora talvez possa ser, mas
aqui na Rússia, não! Pode gente assim ser contrafação? Pode disto nascer
vocação para jesuítas? Ouvi o Príncipe N... contar agora há pouco uma história.
Que espontaneidade, que singeleza de humor, que franqueza genuína. Poderiam
tais palavras sair de um homem que estivesse morto já? Cujo talento e cujo
coração houvessem secado já? Tratar-me- iam os mortos como aqui me
trataram? Não é isto material e substância para o futuro? Para uma crença
esperançosa? Pode gente assim ficar para trás, deixar de ter sensibilidade?
- Peço-lhe de novo, meu rapaz, que se acalme. Vamos deixar esse assunto
para uma outra vez. Terei muito prazer - sorriu o velho dignitário.
Iván Petróvitch
resolveu limpar a garganta. E mexendo-se na sua poltrona, o General Epantchín
fez um movimento qualquer. O chefe de seção resolveu conversar com a esposa
do alto dignitário, deixando de prestar atenção em Míchkin. Mas a mulher do
dignitário ainda assim o escutava e olhava de soslaio.
- Não, o melhor para mim é falar - tornou a investir o príncipe, febrilmente,
dirigindo-se para o ancião com particular confiança, como se estivesse fazendo
uma confidência. - Ontem Agláia Ivánovna me pediu que permanecesse aqui
hoje muito calado. Ou melhor, chegou a me dizer quais os assuntos que eu não
deveria falar em hipótese alguma. (Ela sabe em que espécie de assuntos digo
incoerências.) Tenho vinte e seis anos, mas não ignoro que sou uma criança. Já
muitas vezes me admoestei a mim próprio pois acho que não tenho o direito de
exprimir uma opinião já que o faço sempre errado. Foi somente com um tal
Rogójin que uma vez me abri francamente. Líamos Ptíchkin inteiro, juntos, do
qual ele ignorava até o nome. Sempre temi que este meu modo absurdo pudesse
desacreditar o pensamento, a ideia dominante. Não tenho elocução. Não tenho
gesticulação adequada, causo risos nos outros, enfim... degrado as minhas ideias.
Não tenho o senso de proporção, muito menos! E isso é que é pior. Sei que me é
muito mais vantajoso ficar sentado, quieto. Mas quando persisto em ficar quieto
me torno muito sensível e, o que é mais, me ponho a pensar em uma porção de
coisas. E então Sinto que o melhor é falar. Falando me sinto logo
magnificamente. Todos estão com expressão tão inefável! Prometi ontem a
Agláia Ivánovna que ficaria calado hoje toda a noite!
- Vraiment? - sorriu o velho
dignitário.
- Mas pensando bem vi que não tenho razão em pensar assim. A
sinceridade não é declamação, mesmo que pareça ser só isso e nada mais. Não é
verdade mesmo?
- As vezes.
- Quero explicar tudo, tudo, tudo! Sim, cuidam que sou utópico? Teórico? Pelo
amor de Deus! Mas as minhas ideias são o que há de mais simples! Não
acreditam? Riem? Digo-lhes, sou às vezes desprezível exatamente por não
manter sempre acesa essa minha fé, por vacilar às vezes. Quando entrei aqui
neste salão, ainda há pouco, perguntava a mim mesmo: Como me devo dirigir a
eles? Com quais palavras devo começar a fim de que me compreendam ao
menos um pouco?” Como entrei amedrontado! E mais amedrontado estava por
todos aqui. Foi terrível, terrível! E, afinal, por que esse medo? Não é vergonhoso
ter medo? Por que há de um espírito avançado recear diante de uma tal ou qual
massa de retrógrados e maus? Devia entrar de fronte erguida! E eis o que me
tornou assim tão feliz! É que minutos depois já eu me havia Convencido que não
existe absolutamente essa tal ou qual massa retrógrada e má, mas que todos são,
todos somos substância viva! Assim, por que continuar eu preocupado, arredio,
temendo já agora apenas o meu feitio absurdo? Meu? Só meu? Estamos todos
fartos de saber que somos absurdos, superficiais, que temos maus hábitos, que
somos maçantes, que não sabemos encarar as coisas, que não compreendemos
coisíssima nenhuma! Somos todos assim, nós, eu, eles, aqueles, estes, todos! E
não ficam ofendidos por lhes estar eu dizendo no rosto, que são, que somos
absurdos? Estão? Mas é que. também assevero que somos substância esplêndida!
Querem que lhes diga uma coisa? A meu ver às vezes ser absurdo não deixa ser
bom. Com efeito, é melhor até. Toma mais fácil nos perdoarmos uns aos outros,
é mais fácil do que ser humilde. Não é possível a humanidade compreender tudo,
imediatamente, não é possível começar logo com a perfeição! Para atingirmos a
perfeição, devem começar por uma grande ignorância bem difusa! Tudo que é
compreendido depressa carece de compreensão eficiente. Digo-lhes isto porque
por mais que se haja entendido e compreendido muita coisa, muitíssima mais
ainda há a ser compreendida com eficiência essencial! Mas agora caio em mim:
não se teriam molestado por um criançola como eu lhes dizer tais coisas? Claro
que não! Bem, sabem todos aqui de que forma relevar e perdoar os que os
ofendem: e os que não os ofendem. Sim, sempre é muito mais difícil perdoar
quem não nos ofende, pois tal perdão tem de ser duplo, para a inocência alheia e
para a injustiça de nosso equívoco, já que erradamente supusemos nos ter
advindo dano. Eis o que eu esperava de gente sã, eis o que eu ansiava por
declarar quando comecei a me exprimir, não sabendo ser claro... O senhor está
rindo, Iván Petróvitch? Cuida que ao entrar aqui eu estava com prevenção por
causa deles, de quem passo por paladino, tido como sou por um democrata um
advogado da igualdade? (Riu de forma crispada. Já vi entrecortando os períodos
com acento de riso prazeroso.) Não, não era isso. Meu medo era por todos nós
aqui juntos. Pois se eu próprio sou um príncipe, de antiga família! Se me vejo
sentado entre príncipes! Falo, para salvar a todos nós, para que a nossa classe não
pereça em vão nas trevas, sem realizar nada, tendo recebido tudo e tudo tendo
perdido! Por que hei de eu desaparecer. dar passagem a outros, quando posso
permanecer na vanguarda e
ser dos principais? Já que estamos na frente, urge sejamos os chefes! Tornemo-nos servos para sermos condutores!
Fez menção de se levantar da poltrona mas o velho dignitário o conteve de novo
embora o olhasse com uma inquietação crescente.
- Tenham paciência, ouçam!
Sei que não está direito que eu esteja falando. Melhor dar um exemplo, fica mais
claro!... Melhor começar... e já comecei... e... e... pode alguém ser deveras
infeliz? posso eu, por exemplo, me considerar infeliz só porque sou doente, só por
causa do meu caso tão triste? Mas se posso ser feliz! Palavra que não entendo
como é que existe gente que ao passar por uma árvore não se sinta feliz em vê
la! Como pode uma pessoa conversar com outra e não sentir felicidade em amar
essa outra pessoa? Estão entendendo? O que digo é certo, exato, nítido! Só que
não consigo me exprimir certo... E que de coisas inefáveis deparamos a todo
instante, a cada passo, tantas e tais que mesmo o homem mais desesperançado
tem de se sentir feliz, pelo menos ao dar com uma delas! Que nossos olhos batam
no rosto de uma criança, que nossos olhos se deslumbrem diante do nascer do sol,
que se abaixem para ver como a erva cresce! isso não chega para dar
felicidade? E se nossos olhos dão de chofre com uns olhos que nos amam?!...
Ergueu-se por um instante, enquanto falava. De repente o ancião o olhou
estupefato, sendo que Lizavéta Prokófievna, erguendo os braços, aturdida,
exclamou: “Deus do Céu!” pois fora a primeira a perceber a terrível surpresa.
Nisto, Agláia se precipitou de onde estava para ele e ainda chegou a tempo de
tomá-lo nos braços, ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia, aquele
uivo selvagem do “espírito que dilacera e rasga um desgraçado”.
O doente jazia agora sobre o tapete e alguém se apressou em lhe colocar uma
almofada sob a cabeça.
Quem poderia esperar por uma coisa destas? Um quarto de hora depois, o
Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch e o velho dignitário se empenhavam em
restabelecer a vivacidade da reunião. Foi impossível. E dentro de meia hora a
recepção se desfez, sendo pronunciadas muitas palavras de simpatia e de mágoa,
os comentários se restringindo ao mínimo. Iván Petróvitch observou que “o
jovem era um eslavófilo mas que não havia nada de perigoso nisso”, O alto
dignitário não expressou opinião de espécie alguma. Cumpre dizer, de passagem,
que no dia seguinte e no imediato, todos os que tinham estado presentes pareciam
um tanto ou quanto circunspectos ou mesmo frios com os Epantchín. Iván
Petróvitch tomou ares de
“desconsiderado”, isso logo passando. O chefe de seção do departamento onde
trabalhava o General Epantchín o tratou um tanto secamente. O velho dignitário
grunhiu qualquer reparo genérico, à guisa de advertência ao chefe da família,
valendo-se da sua categoria de padrinho, ou melhor, patrono, coisa que logo
abrandou, passando através de termos elogiosos a deixar entrever quanto se
interessava pelo futuro de Agláia. Realmente era um homem de bom coração. E
a prova complementar disto é que uma das razões por que naquela noite se
interessara por Míchkin promanava do fato de já ter ouvido alusões ao papel que
o príncipe desempenhara no escândalo referente a Nastássia Filíppovna. Viera a
saber qualquer coisa sobre o caso, interessara-se bastante, gostaria até de fazer
umas perguntas.
A Princesa Bielokónskaia disse a Lizavéta Prokófievna ao se despedir aquela
noite:
- Bem, há nele coisas boas e ruins. E se desejas que eu seja franca: as ruins são
em maior quantidade do que as boas. Podes ver por ti mesma o que ele é: um
homem doente!
A generala compenetrou-se, de uma vez para sempre, que um tal noivado era
“impossível” e naquela mesma noite ainda fez o voto de, enquanto vivesse, não
consentir que ele viesse a ser marido de Agláia. Tal opinião perdurou até à
manhã seguinte, quando se levantou. Com o decorrer das horas se sentiu enleada
em contradições que chegaram ao auge por volta de meio-dia, ao se sentar para
o almoço.
Em resposta a uma pergunta que as irmãs lhe fizeram com muita cautela, Agláia
declarou, friamente, mas com altivez, de forma peremptória:
- Nunca lhe dei
margem a acariciar qualquer esperança, nem mesmo vagamente. Jamais o
considerei sequer em pensamento como podendo vir a ser meu noivo. Para mim
é um homem tão desinteressante como outro qualquer.
Lizavéta Prokófievna
queimou-se logo:
- Nunca poderia esperar isso de ti! - disse com mágoa. - Bem sei que como
pretendente ele se acha fora de questão, e agradeço a Deus estarmos todas e
todos de pleno acordo. Mas não esperava estas palavras de ti. Esperava coisa
muitíssimo diferente! Quanto a mim, estive para mandar embora toda aquela
gente ontem à noite ficar apenas com ele! Eis a minha opinião em resposta à tua!
E imediatamente se calou, apavorada com as próprias palavras. Mas se ao
menos pudesse saber quanto estava sendo injusta com a filha nesse momento!
Sim, pois esta já mentalmente havia decidido tudo. Também ela estava
aguardando ansiosa a hora definitiva e qualquer alusão, qualquer referência, só
lhe poderia produzir uma profunda ferida coração adentro.
continua página 501...
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