quinta-feira, 3 de julho de 2025

Massa e Poder - A Malta: A Malta de Guerra

Elias Canetti

A MALTA

      A Malta de Guerra

     A diferença fundamental entre as maltas de guerra e de caça situa-se na duplicidade da primeira. Na medida em que se tenha uma tropa excitada a dar caça a um único homem a quem ela deseja punir, tem-se uma formação de natureza análoga à da malta de caça. Caso esse homem pertença a um outro grupo que dele não deseja abrir mão, logo teremos duas maltas a se enfrentar. Os inimigos não são muito diferentes entre si. Trata-se de seres humanos, homens, guerreiros. Na forma original como as guerras eram travadas, os inimigos assemelham se tanto que demanda esforço distingui-los. Ambos possuem a mesma maneira de lançar-se uns sobre os outros, e seu armamento é aproximadamente o mesmo. De ambos os lados dão-se gritos selvagens e ameaçadores, e as duas partes apresentam-se munidas da mesma intenção para com o inimigo. A malta de caça — contrariamente a isso — é unifacetada: os animais contra os quais ela investe não tentam cercar ou capturar os homens. Eles estão em fuga, e se por vezes se defendem, tal se dá no momento em que se deseja matá-los. Na maioria das vezes, nem sequer têm condições de, então, defender-se dos homens.
      Decisivo e verdadeiramente característico da malta de guerra é a existência de duas maltas munidas exatamente da mesma intenção uma para com a outra. Sua bipartição é total, e absoluto o corte que as divide, enquanto se tiver um estado de guerra. A m de se descobrir o que é que elas verdadeiramente pretendem uma contra a outra, basta que se leia o relato que se segue. Trata-se da narrativa da expedição de uma tribo sul-americana — os taulipangues — contra seus inimigos, os pischaukos. O relato é, todo ele, de um taulipangue e contém tudo quanto é necessário saber acerca da malta de guerra. O narrador apresenta-se impregnado da empreitada na qual toma parte, entusiasmado com ela, e a descreve a partir de seu interior, do ponto de vista de uma das partes; fá-lo com uma crueza ao mesmo tempo verídica e horripilante, da qual dificilmente se encontrará paralelo.

     No começo, havia amizade entre os taulipangues e os pischaukos. Depois, entraram em con ito por causa das mulheres. Primeiro, os pischaukos assassinaram alguns taulipangues que atacaram na floresta. Depois, mataram um jovem taulipangue e uma mulher, e, em seguida, mais três taulipangues na oresta. Desse modo, os pischaukos queriam, pouco a pouco, acabar com toda a tribo dos taulipangues.
     Então, Manikuza, o chefe guerreiro dos taulipangues, convocou toda a sua gente. Os taulipangues tinham três chefes: Manikuza — o cacique supremo — e dois caciques menores. Destes, um era um homem pequeno e gordo, mas muito valente, e o outro, seu irmão. Estava presente também o velho cacique, pai de Manikuza. E, dentre a sua gente, havia ainda um homem pequeno, muito valente, da tribo vizinha dos arecunás. Manikuza mandou preparar uma massa fermentada de caxiri, cinco grandes cabaças cheias dela. Depois, mandou que preparassem seis canoas. Os pischaukos moravam nas montanhas. Os taulipangues levaram consigo duas mulheres, que deveriam tocar fogo nas casas. Partiram, então, não sei por que rio. Até que a guerra acabasse, não comeram nada: nenhuma pimenta, nenhum peixe grande ou animal de caça; apenas peixes pequenos. Com eles, levavam ainda tinta e argila branca, para se pintarem.
     Chegaram perto de onde moravam os pischaukos. Manikuza mandou cinco homens até a casa deles, a m de descobrir se estavam todos lá. Todos estavam lá. Era uma casa grande, com muita gente, cercada por uma paliçada circular. Os espiões retornaram e deram essa informação ao cacique. Em seguida, o velho e os três caciques puseram-se a soprar a massa fermentada do caxiri. Sopraram também a tinta, a argila branca e os tacapes de guerra. Os velhos levavam apenas arcos e flechas com pontas de ferro; nenhuma arma de fogo. Os demais tinham espingardas e chumbo. Cada um trazia consigo um saco de chumbo e seis cartuchos de pólvora. Também esse material todo foi soprado [isto é, insuflado de poder mágico]. Pintaram-se, então, com listras vermelhas e brancas: começando pela testa, uma listra vermelha em cima e outra branca embaixo, pelo rosto todo. Sobre o peito, cada um pintou três listras, alternando vermelho e branco em cima e embaixo; e zeram o mesmo no antebraço, para que os guerreiros fossem capazes de reconhecer-se uns aos outros. Também as mulheres pintaram-se dessa mesma maneira. Manikuza ordenou, então, que derramassem água na massa do caxiri.
      Os espiões disseram que havia muita gente nas casas. Havia uma casa bem grande e, mais para o lado, três casas menores. Os pischaukos eram bem mais numerosos que os taulipangues, que eram apenas quinze, fora o arecuná. Beberam caxiri; cada um bebeu uma cabaça cheia, caxiri suficiente para dar coragem. Então, Manikuza disse: “Este aqui atira primeiro! Enquanto ele recarrega sua espingarda, outro atira. Um de cada vez!”. E dividiu sua gente em três grupos de cinco homens cada, num amplo círculo ao redor da casa. Depois, ordenou: “Não desperdicem um único tiro! Quando um homem cair, deixem-no no chão e atirem naquele que ainda está de pé!”.
     Avançaram, pois, separados em três grupos, tendo as mulheres atrás de si, com as cabaças cheias de bebida. Chegaram à beira da savana, e Manikuza disse: “O que fazemos agora? Eles são muitos. Talvez seja melhor voltarmos para buscar mais gente!”. Ao que o arecuná respondeu: “Não! Em frente! Se eu avançar acompanhado de muita gente, não vou encontrar ninguém para matar!”. [o que significa: essa gente toda ainda não é suficiente para meu tacape, pois mato muito rápido]. E Manikuza emendou: “Avante! Avante! Avante!”. Incitava a todos. Aproximaram-se da casa. Era noite. Em seu interior, estava um pajé a soprar um doente. Avisando os habitantes da casa, o pajé disse: “Vem vindo gente!”. Ao que, então, o dono da casa — o cacique dos pischaukos — replicou: “Pois que venham! Eu sei quem é! É Manikuza! E daqui ele não sairá!”. O pajé prosseguiu advertindo e disse: “Eles já chegaram!”. E o cacique respondeu: “É Manikuza! Ele não voltará para casa! Sua vida vai terminar aqui!”.
     Manikuza cortou, então, o cipó que atava a paliçada. As duas mulheres entraram e puseram fogo na casa — uma na entrada, a outra na saída. Havia muitas pessoas lá dentro. A seguir, as mulheres tornaram a recuar para trás da paliçada. O fogo tomou conta da casa. Um velho subiu nela, tentando apagá-lo. Muitas pessoas deixavam-na, atirando muito com suas espingardas, mas a esmo, pois não viam ninguém; atiravam apenas para assustar o inimigo. O velho cacique dos taulipangues quis dar uma flechada num pischauko, mas errou o alvo: o pischauko estava dentro de seu buraco na terra. Quando o velho preparava a segunda flecha, o pischauko derrubou-o com sua espingarda. Manikuza viu que seu pai estava morto. Os guerreiros puseram-se então a atirar bastante. Haviam cercado a casa toda, e os pischaukos não tinham para onde fugir.
     Foi aí que um guerreiro taulipangue chamado Ewama invadiu a casa. Atrás dele, um dos caciques menores; e atrás deste, seu irmão; e atrás deste, Manikuza, o chefe guerreiro; e atrás dele o arecuná. Os demais permaneceram do lado de fora, a m de matar os pischaukos que pretendessem fugir. Os cinco que entraram avançaram até os inimigos e os derrubaram com seus tacapes. Os pischaukos atiraram neles, mas não acertaram ninguém. Manikuza, então, matou o cacique dos pischaukos, e o cacique menor deles foi morto pelo cacique menor dos taulipangues. O irmão deste último e o arecuná matavam rápido e deram cabo de muita gente. Somente duas virgens fugiram, e vivem ainda rio acima, casadas com taulipangues. Todos os outros foram mortos. Depois, incendiaram a casa toda. As crianças choravam, e eles jogaram todas elas no fogo. No meio dos mortos, um pischauko ainda vivia. Ele se lambuzara inteirinho de sangue e se deitara entre os mortos, a m de fazer crer aos inimigos que estava morto também. Os taulipangues pegaram então os pischaukos tombados e, um a um, cortaram-nos em dois pedaços com um facão. Encontraram o homem que ainda estava vivo, agarraram-no e o mataram. Depois, pegaram o cacique dos pischaukos, amarraram-no a uma árvore com os braços levantados e esticados e atiraram nele com o restante da munição, até fazê-lo em pedaços. Em seguida, pegaram uma mulher morta. Com os dedos, Manikuza rasgou lhe o órgão sexual e disse a Ewama: “Veja isto aqui: um bom lugar para você entrar!”.
     Os demais pischaukos, ainda nas três outras casas menores, fugiram cada um para um lado, dispersando-se pelas montanhas da região. Ali, seguem vivendo até hoje, inimigos mortais das outras tribos e assassinos secretos, tendo por alvo especialmente os taulipangues.
     Seu velho cacique morto, os taulipangues o enterraram no próprio local. Além dele, somente dois outros tinham ferimentos leves de chumbo na barriga. Depois, voltaram para casa gritando: “Hai-hai-hai-hai-hai!”. Em casa, encontraram seus banquinhos já preparados para eles.

     O conflito principia por causa das mulheres. Pessoas isoladas são mortas. Registram-se apenas os que os outros mataram. A partir desse momento, impera a crença inabalável de que os inimigos querem acabar com toda a tribo dos taulipangues. O cacique conhece bem sua gente, a qual agora convoca; não são muitos — dezesseis, contando com o homem da tribo vizinha — e todos sabem o que esperar um do outro na luta. Jejua-se com rigor: as pessoas podem alimentar-se apenas de peixes minúsculos. A partir da massa fermentada, prepara-se uma bebida forte. Antes da luta, os guerreiros bebem dela, para “dar coragem”. Com as tintas, pintam no próprio corpo uma espécie de uniforme, “para que os guerreiros sejam capazes de reconhecer-se uns aos outros”. Todos os apetrechos considerados pertinentes à guerra são “soprados”, e muito particularmente as armas. Assim, um poder mágico é-lhes insuflado, e eles estão abençoados.
     Tão logo se encontram próximos do acampamento inimigo, espiões são enviados para examinar se estão todos ali. Estão todos presentes. Quer-se que estejam todos reunidos, pois todos devem ser aniquilados a um só tempo. Trata-se de uma casa grande, abrigando grande quantidade de pessoas — uma perigosa superioridade. Os dezesseis têm todos os motivos para embebedar-se de coragem. O cacique dá, então, suas instruções, exatamente como um oficial. Contudo, tendo alcançado as proximidades da casa inimiga, ele sente sua responsabilidade. “Eles são muitos”, diz, e hesita. Seria melhor dar meia-volta e buscar reforços? Mas entre seus homens há um para quem o número de inimigos a matar nunca é suficiente. A determinação deste comunica-se ao cacique, que dá a ordem: “Avante!”.
     É noite, mas as pessoas no interior da casa estão acordadas. Um pajé está trabalhando; um doente está sendo tratado, e todos se encontram reunidos ao redor de ambos. O pajé, mais desconfiado que os demais, tem seus sentidos aguçados e pressente o perigo. “Vem vindo gente!”, avisa, e, logo em seguida: “Eles já chegaram!”. Mas o cacique, no interior da casa, sabe muito bem de quem se trata. Ele possui um inimigo de cuja inimizade está seguro. E seguro está também de que seu inimigo vem apenas para ali perder a própria vida. “Ele não voltará para casa! Sua vida vai terminar aqui!” A cegueira do que vai morrer é tão notável quanto a hesitação do que irá atacar. O ameaçado nada faz: a desgraça logo se abate sobre ele.
     Não tarda muito, e está em chamas a casa na qual as mulheres puseram fogo; seus habitantes correm para fora. Não podem ver quem, da escuridão, neles atira, mas eles próprios são alvos bem iluminados. Os inimigos invadem a casa e põem-se a golpeá-los com seus tacapes. A história de seu m completa-se numas poucas frases. O que interessa aí não é uma luta, mas a aniquilação total. As crianças a chorar são arremessadas no fogo. Os mortos são despedaçados um a um. Um sobrevivente, que se lambuza de sangue e se deita ao lado dos mortos, na esperança de escapar, tem o mesmo destino destes. O cacique morto, eles o esticam, amarram a uma árvore e atiram até fazê-lo em pedaços. A violação de uma mulher morta constitui o clímax horripilante. Tudo sucumbe inteiramente ao fogo.
     Os poucos habitantes das casas vizinhas e menores que se salvam nas montanhas seguem vivendo ali como “assassinos secretos”.
     Quase nada há a acrescentar a essa descrição da malta de guerra. Dentre incontáveis relatos de natureza semelhante, esse é, em sua crueza, o mais verídico de todos. Ele nada contém que não seja pertinente; nada foi melhorado ou embelezado pelo narrador.
     Os dezesseis homens que partiram nessa expedição não trouxeram de volta para casa nenhuma espécie de presa; não se zeram mais ricos com sua vitória. Não deixaram uma única mulher ou criança com vida. Sua meta era a aniquilação da malta inimiga, de modo que dela nada mais resta, literalmente nada. Descreve-se com volúpia o que se fez. Os outros, no entanto, é que eram e continuam sendo os assassinos.

continua página 157...
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Massa e Poder - A Malta: A Malta de Guerra
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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