sábado, 12 de julho de 2025

Massa e Poder - A Malta: A Malta Interna e a Malta Silenciosa

Elias Canetti

A MALTA

      A Malta Interna e a Malta Silenciosa

     As quatro formas básicas assumidas pela malta deixam-se agrupar de diversas maneiras. Pode-se fazer uma distinção entre as maltas internas e as externas
     A malta externa, que chama mais a atenção e, por isso mesmo, pode ser caracterizada com maior facilidade, move-se rumo a uma meta exterior a ela. Estende-se por um longo caminho. Comparado ao da vida cotidiana, seu movimento é mais intenso. Maltas externas são tanto as maltas de caça quanto as de guerra. O animal que se caça precisa ser encontrado e capturado, assim como se tem de ir até o inimigo que se quer combater. Por maior que seja a excitação que se consegue mediante uma dança de caça ou de guerra, a atividade propriamente dita da malta externa projeta-se na distância.
     A malta interna tem algo de concêntrico. Forma-se, assim, em torno de um morto que se tem de enterrar. Ela tende não ao atingimento, mas à retenção de alguma coisa. A lamentação pelo morto enfatiza de todas as maneiras que seu lugar é aqui, junto daqueles reunidos em torno do seu cadáver. Seu caminho para longe, ele o trilha sozinho. Trata-se de um caminho perigoso e medonho a percorrer, até que ele chegue ao outro lado, onde os outros mortos o aguardam e acolhem. Como não se deixe reter, o morto é, por assim dizer, desincorporado. Precisamente na condição de uma malta, os que lamentam a sua perda compõem algo como um corpo próprio, do qual o morto é liberado e afastado não sem algum esforço.
     Também a malta de multiplicação é uma malta interna. Um bando de dançarinos forma-se junto a um centro ao qual, a partir do exterior, deve agregar-se algo que é ainda invisível. Mais homens devem juntar-se aos já presentes, mais animais àqueles que se caçam ou criam, mais frutos àqueles que se colhem. O sentimento predominante é uma crença na já-existência de tudo quanto deve juntar-se ao visível que tanto se aprecia. O que se quer encontra-se já em alguma parte: necessário é apenas atraí-lo. Tende-se aí a realizar as cerimônias onde se supõe que aquilo que se deseja, embora não se possa vê-lo, exista em grande número.
     Uma significativa passagem de uma malta externa a interna ocorre na comunhão. Mediante a incorporação de um determinado animal, abatido durante a caçada, e graças à consciência solene de que, uma vez tendo-o desfrutado, passa a haver algo dele em todos os presentes, a malta se interioriza. Nesse estado, ela pode, então, esperar pela reanimação e, acima de tudo, pela multiplicação do animal.
     Uma outra maneira de se classificar as maltas é diferenciar as silenciosas das ruidosas. Nesse sentido, basta lembrar quão ruidosa é a lamentação. Caso não se fizesse notar com a máxima veemência, ela não teria sentido. Tão logo o barulho tem um fim, tão logo ele não é mais ouvido ou é sobrepujado de alguma maneira, a malta de lamentação se dispersa, tendo-se novamente cada um por si. Por sua própria natureza, a caçada e a guerra são ruidosas. Se, como ocorre com frequência, um silêncio temporário se faz necessário para enganar o inimigo, tanto mais barulhento é, então, o desfecho dos acontecimentos. O latido dos cães, os gritos dos caçadores, mediante os quais eles intensificam um no outro a excitação e a sede de sangue, constituem em toda parte os momentos decisivos da caçada. Na guerra, porém, a selvageria da provocação e a ameaça dirigida contra o inimigo sempre foram imprescindíveis. Os gritos e o fragor das batalhas atravessam a história, e mesmo as guerras de hoje não podem prescindir do estrondo das explosões.
     A malta silenciosa é aquela que espera. Ela tem paciência, uma paciência particularmente notável, em se tratando de pessoas reunidas. E manifesta-se onde quer que a meta de uma malta não seja atingível pela intervenção rápida e excitada. Talvez a palavra silenciosa seja aqui um pouco equívoca; mais clara seria, então, a designação malta de espera. Afinal, esse tipo de malta pode caracterizar-se por toda sorte de atividades — canto, conjurações, sacrifícios. Próprio de tais atividades é que elas almejam algo distante, que não pode apresentar-se de imediato. É essa espécie de espera e de silêncio que penetrou nas religiões que tratam do além. Existem, pois, pessoas que passam uma vida inteira esperando que haja uma vida melhor no além. Mas o exemplo mais elucidativo da malta silenciosa permanece sendo a comunhão. O processo da incorporação, se há de ser perfeito, demanda um silêncio e uma paciência concentrados. A reverência pelo sagrado e muito importante que cada um abriga em si exige, por algum tempo, um comportamento calmo e digno.

continua página 178...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - A Malta: A Malta Interna e a Malta Silenciosa
____________________

ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário