Elias Canetti
A MALTA
A Malta de Multiplicação
Qualquer que seja o povo primitivo que contemplemos, depararemos
sempre e de imediato em sua vida com momentos de concentração: as
maltas de caça, de guerra ou de lamentação. O desenvolvimento dessas
três espécies de malta é claro; todas elas têm algo de elementar. Onde
uma ou outra dessas formações tenha sido compelida para um segundo
plano, é comum encontrarmos resquícios dela, a comprovar sua
presença e importância no passado.
Na malta de multiplicação tem-se uma formação mais complexa. Seu
significado é enorme, pois ela constituiu a verdadeira força propulsora
da propagação do ser humano. Ela conquistou-lhe a terra e conduziu a
civilizações cada vez mais ricas. Sua eficácia jamais foi apreendida em
toda a sua amplitude, pois o conceito da reprodução desfigurou e
obscureceu os verdadeiros processos da multiplicação. Desde o
princípio, só se pode compreendê-la em sua atuação conjunta com os
processos da metamorfose.
Os primeiros homens, movendo-se em número reduzido por espaços
enormes e frequentemente vazios, confrontam-se com uma quantidade
de animais que lhes é superior. Nem todos lhes são hostis; a maioria
nem sequer representa algum perigo para eles. Muitos, porém,
apresentam-se em número gigantesco; trate-se de rebanhos de antílopes
ou búfalos, de peixes, gafanhotos, abelhas ou formigas — comparado ao
seu, o número de homens é insignificante.
É escassa a descendência humana. Os descendentes anunciam-se um a
um, e um longo tempo se passa até que eles cheguem. O anseio por
mais, por um número maior de pessoas ao qual se pertença, deve ter
sido sempre profundo e premente. E tal desejo intensificou-se
incessantemente; toda ocasião que ensejava a formação de uma malta só
podia fortalecer o impulso no sentido da elevação do número de
homens. Uma malta de caça maior era capaz de cercar mais animais
selvagens. Nem sempre se podia confiar nos animais; de repente,
surgiam muitos deles; quanto maior o número de caçadores, tanto
maior era a presa. Na guerra, queria-se ser mais forte que as hordas
inimigas: tinha-se sempre consciência do perigo de se estar em número
reduzido. Cada morte, particularmente se se tratasse de um homem
experiente e ativo, significava uma perda assaz decisiva. A fraqueza do
homem era seu número reduzido.
É certo que, com frequência, também os animais que representavam
perigo viviam isolados ou em pequenos grupos, tal como o homem.
Este, tanto quanto aqueles, era um animal de rapina, mas de um tipo
que nunca queria estar sozinho. Podia viver em bandos tão grandes
quanto os dos lobos, mas, ao contrário destes, não se satisfazia com seu
tamanho. E isso porque, ao longo do gigantesco lapso de tempo em que
viveu em pequenos grupos, o homem de certa maneira incorporou, pela
metamorfose, todos os animais que conhecia. Foi somente a partir desse
seu aprendizado da metamorfose que o homem fez-se homem: a
metamorfose era seu dom e prazer característicos. Em suas primeiras
metamorfoses em outros animais, o homem representou e dançou como
outras espécies existentes em maior número. Quanto mais perfeita a sua
representação dessas criaturas, tanto mais intensamente sentiu ele a
grandeza de seu número. Sentiu o que era ser muitos, adquirindo, então,
a consciência recorrente de seu isolamento, na qualidade de homem
vivendo em pequenos grupos.
É indubitável que, tão logo se fez homem, o ser humano quis ser
mais. Todas as suas crenças, mitos, ritos e cerimônias estão impregnados
desse desejo. Os exemplos são muitos, e alguns deles poderão ser
encontrados no curso desta investigação. Considerando-se que tudo
aquilo que no homem almeja a multiplicação apresenta-se dotado de
força tão elementar, pode causar surpresa o fato de, no princípio deste
capítulo, se ter enfatizado o caráter complexo da malta de
multiplicação. Um pouco de reflexão demonstrará, porém, por que
razão ela se manifesta de tantas e tão diversas formas. Ao ser procurada,
ela aparecerá onde, com naturalidade, se esperava que o fizesse. Mas a
malta de multiplicação possui também seus recantos secretos, e surge
repentinamente onde menos se supunha encontrá-la.
No princípio, o homem não pensou em sua própria multiplicação
como desvinculada da dos outros animais. Seu anseio por ela, ele o
transfere para tudo o que o cerca. Tanto quanto o compele o impulso
no sentido de aumentar seu próprio bando, provendo-o
abundantemente de crianças, o homem quer também mais animais e
mais frutos, mais rebanhos e mais trigo — mais, enfim, do que quer que
seja que ele se alimente. Para que ele prospere e se faça maior em
número, é preciso que tenha à sua disposição tudo quanto necessita para
viver.
Onde a chuva é escassa, o homem concentra-se em fazer chover.
Assim como ele, aquilo de que todas as criaturas mais necessitam é da
água. Desse modo, em muitas regiões da terra, os ritos relacionados à
chuva coincidem com aqueles que visam a multiplicação. Quer sejam
eles próprios a dançar a dança da chuva, como ocorre entre os índios
pueblos, quer reúnam-se sedentos ao redor de seu feiticeiro, quando
este lhes atrai a chuva, sua constituição, em todos os casos dessa
natureza, é a de uma malta de multiplicação.
A m de que se perceba o estreito vínculo existente entre
multiplicação e metamorfose faz-se necessário examinar mais
detalhadamente aqui os ritos dos australianos. Há mais de meio século,
pesquisadores diversos os estudaram minuciosamente.
Os ancestrais de que tratam os mitos australianos da criação são seres
raros: são criaturas duplas, em parte animal, em parte homem — ou,
dizendo-o com maior precisão, são ambas as coisas. Foram eles os
introdutores das cerimônias, e estas seguem sendo praticadas porque
assim eles ordenaram. É notável o fato de que cada uma delas vincula o
homem a uma determinada espécie animal ou vegetal. Assim, o
ancestral-canguru é, ao mesmo tempo, canguru e homem, e o ancestral
ema, homem e ema simultaneamente. Jamais se encontram dois bichos
distintos representados num único ancestral. O homem está sempre
presente, constituindo uma metade, por assim dizer, a outra metade
cabendo a um determinado animal. Há que se insistir, porém, no fato
de que ambos estão presentes ao mesmo tempo, numa única forma; para
nós, suas características misturam-se da forma mais ingênua e
surpreendente possível.
É claro que tais ancestrais não representam outra coisa senão o
resultado de metamorfoses. O homem, a quem sempre foi possível
sentir-se e ver-se como um canguru, transformou-se num totem
canguru. Essa metamorfose específica, praticada e empregada com
frequência, revestiu-se do caráter de uma conquista, sendo transmitida
de geração em geração por meio de mitos que se podiam representar
dramaticamente.
O ancestral dos cangurus de que os homens se viam cercados
converteu-se, ao mesmo tempo, no ancestral daquele grupo de homens
que se denominavam cangurus. A metamorfose presente na origem
dessa dupla descendência era representada nas ocasiões em que todos se
reuniam. Uma ou duas pessoas faziam o papel do canguru; as demais
participavam como espectadoras dessa metamorfose tradicional. Numa
apresentação posterior, elas próprias podiam dançar o canguru, seu
ancestral. O prazer advindo dessa metamorfose, a importância especial
que ela adquiriu com o passar do tempo, seu valor para as novas
gerações, tudo isso exprimia-se na sacralidade dos ritos durante os quais
era praticada. A metamorfose bem-sucedida e, assim, estabelecida
tornou-se uma espécie de dádiva: era cultivada da mesma forma como se
cultiva o tesouro composto das palavras que formam uma determinada
língua, ou aquele outro tesouro, composto de objetos, a que nós
designamos e percebemos como material — o das armas, ornamentos e
certos objetos sagrados.
Essa metamorfose, que, na qualidade de uma bem preservada
tradição, de um totem, marcava um parentesco de certos homens com
os cangurus, significava ainda uma vinculação com o número destes
últimos. Tal número era sempre maior do que o dos homens; desejava
se o seu crescimento, pois este vinculava-se ao dos homens. Se os
cangurus se multiplicavam, multiplicavam-se também os homens. A
multiplicação do animal-totem era idêntica à sua.
Não há, pois, como superestimar a força dessa conexão entre
metamorfose e multiplicação: ambas caminham de mãos dadas. Tão
logo uma metamorfose é estabelecida e, na qualidade de uma tradição,
cultivada com precisão em sua forma, ela assegura a multiplicação de
ambas as criaturas que nela se zeram unas e inseparáveis. Uma dessas
criaturas é sempre o homem. Em cada totem ele garante para si a
multiplicação de um outro animal. A tribo formada de vários totens
apropriou-se da multiplicação deles todos.
A grande maioria dos totens australianos é composta de animais.
Alguns deles, porém, são plantas, e, como se trata, na maioria dos casos,
de plantas que o homem come, jamais causaram surpresa os ritos a elas
dedicados. Parece natural que o homem saia à cata de ameixas e nozes, e
que as deseje em grande quantidade. Dentre os totens figuram ainda
alguns dos insetos que consideramos daninhos — certas larvas, cupins e
gafanhotos — mas que são guloseimas para o australiano. O que dizer,
porém, diante de homens que têm por totem escorpiões, piolhos,
moscas e mosquitos? Nesse caso, não se pode falar em utilidade, no
sentido corriqueiro da palavra; essas criaturas são pragas tanto para o
australiano quanto para nós. O que o atrai só pode ser o número
gigantesco desses seres, e, ao estabelecer um parentesco seu com eles,
interessa-lhe assegurar para si o seu número. O homem que descende de
um totem-mosquito quer que sua gente se faça tão numerosa quanto os
mosquitos.
Não quero concluir essa referência passageira e assaz sumária às figuras duplas australianas sem mencionar uma outra espécie de totem
encontrável entre eles. A lista que se segue causará espanto, mas o leitor
já a conhece. Dentre esses totens australianos encontram-se as nuvens, a
chuva e o vento, a grama, a grama em chamas, o mar, a areia e as
estrelas. Trata-se da lista dos símbolos naturais de massa, já interpretados
aqui em detalhes. Inexiste prova melhor de sua antiguidade e significado
do que sua presença entre os totens australianos.
Seria, contudo, equivocado supor que as maltas de multiplicação
vinculam-se em toda parte a totens, ou que sempre demandam tanto
tempo quanto entre os australianos. Existem práticas de natureza mais
simples e compacta, nas quais se trata de atrair rápida e imediatamente
o animal desejado. Tais práticas pressupõem a presença de grandes
manadas. O relato que se segue, acerca da famosa dança dos búfalos dos
mandans — uma tribo indígena da América do Norte —, data da
primeira metade do século XIX.
Os búfalos reúnem-se, por vezes, em massas gigantescas e vagueiam
pelo país em todas as direções, do Leste para o Oeste, do Norte para
o Sul, para onde quer que sua disposição os leve. De repente, então,
os mandans ficam sem ter o que comer. Formam uma tribo pequena
e, diante de inimigos mais fortes a atentar contra sua vida, não
ousam afastar-se demasiado de casa. Assim sendo, chegam próximos
de morrer por inanição. Em crises como essa, cada mandan apanha
em sua tenda uma máscara, que deixam preparada para tais ocasiões:
trata-se da pele da cabeça de um búfalo, encimada pelos chifres.
Inicia-se, então, a dança dos búfalos, para que “os búfalos venham”.
Ela deve seduzir a manada a mudar de direção, encaminhando-se
para a aldeia dos mandans.
A dança tem lugar no centro da aldeia. Por volta de dez a quinze
mandans participam dela, cada um deles ostentando sobre a própria
cabeça uma cabeça de búfalo com os chifres e tendo à mão o arco ou
a lança de sua preferência para matar búfalos.
A dança sempre surte o efeito desejado; ela não cessa jamais;
prossegue dia e noite, até que “os búfalos venham”. Tocam-se
tambores, chacoalham-se os chocalhos, cantam-se canções, dão-se
gritos. Os espectadores postam-se mais para o lado, com máscaras na
cabeça e armas na mão, prontos para substituir qualquer um que,
cansado, abandone o círculo.
Durante esse período de excitação geral, espias postam-se no alto
das colinas ao redor da aldeia e, notando que os búfalos se
aproximam, fazem o sinal combinado, o qual é imediatamente visto
e compreendido por todos na aldeia. Essas danças estendem-se por
duas, três semanas ininterruptas, até o feliz momento em que os
búfalos aparecem. Elas nunca falham, e a elas se atribui o fato de os
búfalos virem.
Da máscara que usam pende ainda, geralmente, uma tira de pele do comprimento do animal, contendo o rabo em sua extremidade; essa tira assenta-se sobre as costas do dançarino e arrasta pelo chão. Quem se cansa, indica-o curvando-se bem para a frente e aproximando seu corpo do chão; um outro apontar-lhe-á, então, seu arco e o alvejará com uma flecha embotada, de modo que o primeiro cai no chão feito um búfalo. Os circundantes agarram-no, arrastam no pelos calcanhares para fora do círculo e sacam de suas facas. Com elas, fazem os movimentos da despela e do esquartejamento e, depois, deixam-no ir; seu lugar é imediatamente ocupado por outro, que, tendo a máscara sobre a cabeça, põe-se a dançar no círculo. Desse modo, a dança pode facilmente prosseguir por dias e noites, até que se tenha alcançado o efeito desejado e os “búfalos venham”.
Os dançarinos representam búfalos e caçadores ao mesmo tempo. Em
sua indumentária, eles são búfalos, mas o arco, a flecha e a lança
caracterizam-nos como caçadores. Enquanto o indivíduo segue
dançando, ele deve ser visto como búfalo, e assim se comporta. Quando
se cansa, torna-se um búfalo cansado. Não lhe é permitido abandonar a
manada sem ser abatido. Atingido por uma flecha — e não em razão do
cansaço —, ele tomba. Até na agonia da morte permanece sendo búfalo.
É, então, transportado e esquartejado pelos caçadores. No início, ele era
“manada”; agora, termina como presa.
A ideia de que, por meio da dança impetuosa e prolongada, a malta
poderia atrair a manada de búfalos propriamente ditos pressupõe uma
série de coisas. Os mandans sabem, pela experiência, que a massa cresce
e atrai para seu círculo tudo quanto lhe é semelhante e se encontra nas
proximidades. Onde quer que muitos búfalos se achem reunidos, mais
búfalos juntar-se-ão a eles. Mas sabem também que a excitação da dança
eleva a intensidade da malta. Sua força depende da impetuosidade do
movimento rítmico. O que lhe falta em número, a malta pode obter
por meio da impetuosidade.
Os búfalos, afinal — cuja aparência e movimentos são bem
conhecidos —, são como os homens, pois gostam de dançar e deixam-se
atrair por seus inimigos mascarados para uma festa. A dança persiste
porque deve surtir seu efeito à distância. Os búfalos, que, em algum
ponto longínquo, sentem-na como atração rumo à malta, cedem a essa
atração na medida em que ela, na qualidade de dança, for intensa. Se a
dança arrefecesse, não se teria mais uma verdadeira malta, e os búfalos
— ainda longe, talvez — poderiam dirigir-se para outro lugar qualquer.
Manadas existem por toda parte, e qualquer uma delas poderia distrair
lhes a atenção. Os dançarinos precisam transformar-se numa fortíssima
atração. Na condição de uma malta de multiplicação cuja excitação não
arrefece em momento algum, eles são mais fortes do que qualquer
manada dispersa, e atraem os búfalos de forma irresistível.
continua página 172...
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Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - A Malta: A Malta de Multiplicação
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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