em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
Dois minutos antes, eu teria ficado estupefato se me dissessem que a Sra. de Guermantes ia me pedir para visitá-la, e ainda mais que lá fosse jantar. Por mais que soubesse que o salão Guermantes não podia apresentar as particularidades que eu havia extraído desse nome, o fato de que me fora proibido nele penetrar, obrigando-me a dar-lhe o mesmo gênero de existência dos salões cuja descrição lemos num romance ou vimos num sonho, fazia-me imaginá-lo bem diferente, mesmo quando estivesse seguro de que era igual a todos os outros; entre ele e mim havia a barreira onde termina o real. Jantar em casa dos Guermantes era como empreender uma viagem desejada há muito tempo, fazer passar um desejo de minha cabeça diante dos olhos e tomar conhecimento de um sonho. Pelo menos deveria acreditar que se tratasse de um desses jantares aos quais o dono da casa convida alguém, dizendo:
"Venha, não haverá absolutamente ninguém, a não ser nós", fingindo atribuir ao pária o
receio, que sentem, de vê-lo misturado a seus amigos, e procurando até mesmo transformar em
um invejável privilégio reservado somente aos íntimos a quarentena do excluído, não obstante
selvagem e favorecido. Senti, ao contrário, que a Sra. de Guermantes desejava me fazer desfrutar
do que possuía de mais agradável quando me disse, pondo, por outro lado, diante de meus olhos,
como que a beleza violácea de uma chegada à casa da tia de Fabrice e o milagre de uma
apresentação ao conde Mosca:
- Sexta-feira o senhor não estaria livre para uma pequena reunião seria ótimo. Estará
presente a princesa de Parma, que é encantadora; antes de tudo, não o convidaria se não fosse
para se encontrar com pessoas agradáveis.
Abandonada nos meios mundanos intermediários que entrara a um movimento perpétuo
de ascensão, a família, ao contrário, dele desempenha um papel importante nos meios extremos,
como a pequena burguesia e a aristocracia principesca, que não pode procurar elevar-se, visto
que, acima dela, no seu ponto de vista especial, não existe nada. A amizade que me
testemunhavam "a tia Villeparisis" e Robert fizera de mim, talvez, para a Sra. de Guermantes e
seus amigos, que viviam sempre encerrados em si mesmos e numa mesma confraria, objeto de
uma atenção da qual eu nem sequer suspeitava.
A Sra. de Guermantes possuía desses parentes um conhecimento familiar, cotidiano,
comum e bem diferente daquele que imaginávamos e no qual, se somos compreendidos, longe de
nossos atos serem expelidos como um grão de poeira do olho ou a gota d'água da traqueia,
podem ficar gravados, ser comentados, contados ainda durante anos depois de nós mesmos os
temos esquecido, no palácio em que ficamos estarrecidos por reencontrá-los como uma carta
nossa em uma preciosa coleção de autógrafos.
Uns meros elegantes podem proibir o acesso à sua porta excessivamente invadida. Mas a
dos Guermantes não o era. Um estranho quase nunca teria ocasião de passar diante dela. Uma
vez que lhe indicassem algum, a duquesa não pensava em preocupar-se com o valor mundano
que ele traria, já que era coisa que ela conferia e não podia receber. Ela só pensava em suas
qualidades reais. A Sra. de Villeparisis e Saint-Loup lhe haviam dito que eu as possuía. E, sem
dúvida, ela não acreditaria neles se não tivesse notado que eles jamais poderiam fazer com que
eu viesse quando não o desejassem, e que eu, portanto, não dava importância à sociedade, o que
para a duquesa parecia sinal de que um estranho fazia parte das "pessoas agradáveis". Era de
ver, quando falava de mulheres de que não gostava, como logo mudava de fisionomia se
nomeavam, a propósito de alguma, por exemplo a cunhada.
- Oh, ela é encantadora - dizia, com ar de certeza e finura. A única razão que dava, para
tal, era que essa dama se recusara a ser apresentada à marquesa de Chaussegros e à princesa
de Silistrie. Não acrescentava que essa dama recusara ser apresentada a ela própria, duquesa de
Guermantes. Entretanto, isto ocorrera, e desde esse dia o espírito da duquesa trabalhava para
saber o que podia se passar na casa dessa dama tão difícil de conhecer. Morria de vontade de ser
recebida em sua casa. As pessoas mundanas têm de tal modo arraigado o hábito de serem
procuradas que aquele que se lhes esquiva lhes parece uma fênix e monopoliza a sua atenção.
O verdadeiro motivo de me fazer um convite seria por acaso, no espírito da Sra. de
Guermantes (desde que já não a amava), o fato de que eu não procurava seus parentes, embora
por eles fosse procurado? Não sei. Em todo caso, tendo se decidido a me convidar, queria fazer
me as honras do que possuía de melhor em sua casa, e afastar aqueles de seus amigos que
poderiam impedir-me de voltar, aqueles que sabia serem tediosos. Eu não soubera a que atribuir
a mudança de itinerário da duquesa quando a vira desviar-se de seu caminho estrelar, vir sentar
se a meu lado e convidar-me para jantar, efeito de causas ignoradas. Por falta de um sentido
especial que nos informe a respeito, afiguramo-nos as pessoas que mal conhecemos como eu à
duquesa como se pensassem em nós unicamente nos raros momentos em que nos veem. Ora,
esse olvido ideal em que julgamos que eles nos mantêm é totalmente arbitrário. De modo que,
enquanto no silêncio da solidão, semelhante ao de uma noite linda, imaginamos as diferentes
rainhas da sociedade a prosseguir o seu caminho no céu a uma distância infinita, não podemos
evitar um sobressalto de mal-estar ou de prazer se nos cai lá de cima, como um aerólito que
tivesse gravado o nosso nome, o qual julgávamos desconhecido em Vênus ou Cassiopeia, um
convite para jantar ou um falatório maldoso. Às vezes, quem sabe, quando, à imitação dos
príncipes persas que, segundo o Livro de Ester, mandavam ler os registros em que estavam
inscritos os nomes daqueles dentre seus súditos que lhes haviam testemunhado zelo, a Sra. de
Guermantes, consultando a lista das pessoas bem-intencionadas, dissera consigo a meu respeito:
"Um a quem havemos de convidar."
Mas outros pensamentos a tinham distraído (De zelos tumultuosos um príncipe cercado é
para novos assuntos sem cessar arrastado.) até o momento em que me enxergara sozinho como
Mardoqueu à porta do palácio; e, tendo-lhe refrescado a memória o ver-me ali, queria, como
Assuero, acumular-me com seus dons.
Entretanto, devo dizer que uma surpresa de gênero oposto se seguiu à que eu tivera no
momento em que a Sra. de Guermantes me havia convidado. Esta primeira surpresa, como eu
achara mais modesto de minha parte, e mais agradecido, não a dissimular e, ao contrário,
exprimir com exagero o que tinha de alegre, a Sra. de Guermantes, que se dispunha a partir para
um último sarau, acabava de me dizer, quase como uma justificação, e com receio de que eu não
soubesse bem quem ela era, por causa do ar tão espantado que eu fazia por ter sido convidado
para sua casa:
- O senhor sabe, sou tia de Robert de Saint-Loup, que o estima muito, e afinal já nos vimos
aqui.
Respondendo que sabia disso, acrescentei que conhecia também o Sr. de Charlus, o qual
"fora muito bom comigo em Balbec e em Paris". A Sra. de Guermantes estacou de espanto, e
seus olhos pareceram se reportar, como para uma verificação, a uma página já mais antiga do
livro interior.
- Como! Então conhece Palamede? -
Este prenome assumia na boca da Sra. de Guermantes uma grande doçura devido à
simplicidade involuntária com que falava de um homem tão brilhante, mas que para ela não
passava do seu cunhado, do seu primo, e com que fora criada. E, no cinzento confuso que era
para mim a vida da duquesa de Guermantes, esse nome de Palamede punha como que a
claridade dos dias longos de verão em que brincara com ele no jardim, em Guermantes, quando
menina. Aliás, naquela porção há muito passada de suas vidas, Oriane de Guermantes e seu
primo Palamede tinham sido bem diferentes do que se tornaram desde então; o Sr. de Charlus,
principalmente, todo entregue a seus gostos pela arte, de tal modo os reprimira mais tarde que
fiquei espantado ao saber que o imenso leque de íris amarelos e negros, que a duquesa
desdobrava naquele momento, fora pintado por ele. Poderia igualmente mostrar-me uma pequena
sonatina que o barão havia composto para ela outrora. Eu ignorava totalmente que o barão
possuísse todos esses talentos, dos quais nunca falava. Digamos de passagem que o Sr. de
Charlus não gostava que a família o chamasse de Palamede. Quanto a Mémé, ainda se poderia
compreender que não gostasse. Essas estúpidas abreviaturas são um sinal da incompreensão
que a aristocracia tem da própria poesia (aliás, o mesmo se dá entre os judeus, pois um sobrinho
de Lady Israels, chamado Moïse, era normalmente chamado na sociedade de "Momo"), e, ao
mesmo tempo, da sua preocupação em não parecer dar importância ao que é aristocrático. Ora, o
Sr. de Charlus tinha, a tal respeito, mais imaginação poética e mais manifesto orgulho. Mas o
motivo por que se agradava tão pouco de "Mémé" não era este, visto que se estendia também ao
prenome de Palamede. A verdade é que, julgando-se e sabendo pertencer a uma família
principesca, desejaria que o irmão e a cunhada o tratassem por "Charlus", como a rainha Maria
Amélia ou o duque de Orléans podiam dizer de seus filhos, netos, sobrinhos e irmãos:
"Joinville, Nemours, Chartres, Paris."
- Como é misterioso esse Mémé - exclamou a duquesa. - Falamos-lhe longamente do
senhor, disse-nos que ficaria muito feliz em conhecê-lo, perfeitamente. como se nunca o tivesse
visto. Confesse que é engraçado! E às vezes o que não é nada amável de minha parte dizer de
um cunhado a quem adoro e cujo raro valor admiro meio louco.
Fiquei chocado com esse qualificativo aplicado ao Sr. de Charlus e doeu comigo que essa
meia-loucura explicava talvez algumas coisas, por exemplo, que ele parecesse tão encantado
com o projeto de solicitar a Bloch que batesse na própria mãe. Percebi que, não só pelas coisas
que dizia, mas pelo modo como as dizia, o Sr. de Charlus era um tanto louco. Da primeira vez que
se ouve um advogado ou um ator, surpreendemo-nos com o tom bem diferente de sua
conversação. Mas como a gente se dá conta de que todos acham isso natural, nada dizemos aos
outros, e nada a nós mesmos, contentamo-nos em apreciar o grau de talento. Quando muito,
pensamos num ator do Théâtre-Français:
"Por que, em vez de deixar recair o seu braço erguido, ele o fez abaixar-se por meio de
pequenas sacudidelas interrompidas por pausas, durante pelo menos dez minutos?" ou num
Labori: "Por que, desde que abriu a boca, emitiu ele esses sons trágicos, inesperados, para dizer
as coisas mais simples?" Mas, como todo mundo admite isto a priori, a gente não fica chocado.
Da mesma forma, refletindo no caso, dizia-se que o Sr. de Charlus falava de si com ênfase, num
tom que absolutamente não era o de ordinário. Parecia que se deveria a todo instante dizer-lhe:
"Mas por que o senhor grita tão alto? Por que é tão insolente?" Apenas, todos pareciam ter
admitido tacitamente que era assim mesmo. E entravam na roda que o festejava enquanto ele
estava perorando. Mas, evidentemente em certos momentos, um estranho julgaria estar ouvindo
um demente a berrar.
- Mas - retomou a duquesa, com a ligeira impertinência que nela se enxertava à
simplicidade - está o senhor bem certo de que não se confunde, que fala mesmo do meu cunhado
Palamede? Por mais que ele ame os mistérios, este me parece demais!
Respondi que estava absolutamente certo e que talvez o Sr. de Charlus tivesse ouvido mal
o meu nome.
- Muito bem, vou deixá-lo disse a duquesa como que lamentando. - Preciso ir a um
segundo sarau na casa da princesa de Ligne. Não vai até lá? Não, o senhor não gosta da
sociedade? Tem muita razão, é aborrecido. Se eu não fosse obrigada! Mas é minha prima, não
seria gentil faltar. Lamento egoistamente, por mim, porque poderia levá-lo e até trazê-lo de volta.
Então, despeço-me e felicito-me pela quarta-feira.
Que o Sr. de Charlus tivesse enrubescido por minha causa dias antes do Sr. de
Argencourt, ainda passa. Mas, para a própria cunhada, que fazia uma ideia tão alta dele, que
negasse conhecer-me fato tão natural, pois eu conhecia a um tempo a sua tia e o seu sobrinho -,
era algo que eu absolutamente não podia compreender. Terminarei isto, dizendo que, de um certo
ponto de vista, havia uma verdadeira grandeza na Sra. de Guermantes, grandeza que consistia
em apagar completamente tudo o que outros teriam só parcialmente esgotado. Mesmo que nunca
me tivesse encontrado a espioná-la, a assediá-la, a segui-la em seu caminho naqueles passeios
matinais, mesmo que nunca tivesse respondido à minha saudação cotidiana com impaciência e
irritação, mesmo que não houvesse mandado Saint-Loup embora, quando ele lhe suplicara que
me convidasse, não poderia ter comigo maneiras mais nobremente, naturalmente amáveis. Não
só não perdia tempo em explicações retrospectivas, em meias palavras, em sorrisos ambíguos,
em subentendidos, não só mostrava em sua afabilidade atual, sem retrocessos, sem reticências,
algo de tão altivamente retilíneo como sua majestosa estatura, mas os agravos que pudesse ter
sentido contra alguém no passado estavam tão inteiramente reduzidos a cinzas, e essas mesmas
cinzas eram lançadas tão longe de sua memória ou, pelo menos, de sua maneira de ser, que, ao
ver o seu rosto de cada vez que ela precisava tratar com a mais bela das simplificações, o que em
tantos outros teria sido pretexto para uns restos de frieza, para recriminações, tinha-se a ideia de
uma espécie de purificação. Mas, se eu estava surpreso com a modificação que nela se operara a
meu respeito, como o era ainda mais por descobrir em mim uma mudança bem maior a respeito
dela! Não houvera um só instante em que eu não retomasse vida e alento se não buscasse,
tramando sempre novos projetos, alguém que me fizesse ser recebido por ela e, após essa
primeira ventura, não buscasse ainda outras mais para o meu coração cada vez mais exigente! A
impossibilidade de encontrar algo nesse sentido é que me fizera partir para Doncieres, a fim de
ver Robert de Saint-Loup. E agora, era exatamente devido a uma carta sua que eu estava
agitado, mas por causa da Sra. de Stermaria, e não da Sra. de Guermantes.
Acrescentemos, para acabar com esta noitada, que ali se passou um fato, desmentido
alguns dias depois, o qual não deixou de me assombrar, fez-me zangar por algum tempo com
Bloch e que constitui em si uma dessas curiosas contradições cuja explicação iremos encontrar
em Sodoma. Pois bem, Bloch, na casa da Sra. de Villeparisis, não cessou de me elogiar o ar de
amabilidade do Sr. de Charlus, o qual, quando o encontrava na rua, o olhava nos olhos como se o
conhecesse, tinha vontade de conhecê-lo, sabia muito bem quem ele era. Primeiro, sorri daquilo,
visto que Bloch se expressara com tamanha violência, em Balbec, a respeito do mesmo Sr. de
Charlus. E pensei simplesmente que Bloch, a exemplo de seu pai quanto a Bergotte, conhecia o
barão "sem conhecê-lo". E aquilo que tomava por um olhar amável era um olhar distraído. Mas
enfim Bloch chegou a tantas minúcias e pareceu tão seguro de que, em duas ou três ocasiões, o
barão viera abordá-lo, que, lembrando-me de haver falado de meu colega ao Sr. de Charlus, o
qual, de volta de uma visita à casa da Sra. de Villeparisis, fizera várias perguntas, formei a
suposição de que Bloch não mentia, que o Sr. de Charlus soubera o seu nome, que ele era meu
amigo, etc.. Assim, pouco depois, no teatro, pedi ao Sr. de Charlus para lhe apresentar Bloch e,
com sua aquiescência, fui procurá-lo. Mas, logo que o Sr. de Charlus o viu, um espanto
rapidamente reprimido se desenhou em seu rosto, onde foi substituído por um cintilante furor. Não
só não estendeu a mão a Bloch, mas cada vez que este lhe dirigia a palavra respondia-lhe com o
ar mais insolente, com uma voz cortante e irritada. De modo que Bloch, que, pelo que dizia, não
recebera do barão senão sorrisos, julgou que eu não o tinha recomendado e sim desservido,
durante a curta conversa em que, sabendo do gosto do Sr. de Charlus pelos protocolos, lhe falara
do meu camarada antes de conduzi-lo até ele. Bloch nos deixou, extenuado como quem tenta
montar num cavalo prestes, o tempo todo, a tomar o freio nos dentes ou a nadar contra as ondas
que o repeliam sem cessar sobre as pedras, e não voltou a falar comigo durante seis meses.
Os dias que precederam meu jantar com a Sra. de Stermaria não foram deliciosos, mas
insuportáveis. É que, em geral, quanto mais curto o tempo que nos separa daquilo a que nos
propusemos, mais longo parece, pois a ele aplicamos medidas mais breves ou simplesmente
porquê imaginamos medi-lo. O papado, dizem, conta por séculos, e talvez mesmo nem pense em
contar, pois seu objetivo está no infinito. Estando o meu apenas à distância de três dias, eu
contava por segundos, entregava-me a essas fantasias que são começos de carícias, carícias que
nos enraivece não poder fazer com que as termine a própria mulher (precisamente essas carícias,
à exclusão de todas as outras). E em suma, se é certo que em geral a dificuldade de atingir o
objeto de um desejo contribui para aumentá-lo a dificuldade, não a impossibilidade, pois esta
última o suprime, no entanto, para um desejo puramente físico, a certeza de que será realizado
num momento próximo e determinado não é menos estimulante que a incerteza; quase tanto
como a dúvida ansiosa, a ausência de dúvida é intolerável a espera do prazer infalível porque faz
dessa espera uma realização inumerável e, devido à frequência das representações antecipadas
divide o tempo em fatias tão miúdas que provocam angústia.
O que me faltava era possuir a Sra. de Stermaria: há vários com uma atividade incessante,
meus desejos tinham preparado isso na minha imaginação, e somente ele; um outro (o prazer
com uma mulher) não teria motivo, visto que o prazer não passa da realização de vontade prévia,
que não é sempre a mesma, que muda de acordo com as combinações da fantasia, os acasos
das recordações, o estado do temperamento, a ordem da disponibilidade dos desejos, dos quais
os últimos saciados descansam até que tenha sido um tanto esquecida a decepção de seu
cumprimento; eu já deixara a grande estrada dos desejos genéricos e caminhava pela trilha de um
desejo mais particular; seria preciso, para desejar outro encontro, voltar de muito longe para
retomar a grande estrada e seguir por outro atalho. Possuir a Sra. de Stermaria na ilha do Bois de
Boulogne, para onde a convidara para jantar, tal era o prazer que eu fantasiava a todo instante.
Prazer que teria sido destruído caso eu jantasse nessa ilha sem a Sra. de Stermaria; mas talvez
também bastante diminuído se jantasse, embora com ela, em outro local. De resto, as atitudes
conforme as quais se imagina um prazer são anteriores à mulher, ao tipo de mulheres que lhe
convêm.
São essas atitudes que o governam, e até mesmo o lugar; e, devido a isso, fazem retornar
alternativamente, ao nosso pensamento caprichoso, tal mulher, tal lugar, tal quarto, que em outras
semanas teríamos desdenhado. Filhas da atitude, tais mulheres não se dão bem sem a cama
grande, onde encontramos paz a seu lado, e outras, para serem acariciadas com intenção mais
secreta, necessitam de folhas ao vento, de águas na noite, são leves e fugidias como umas e
outras.
Decerto, já bem antes de ter recebido a carta de Saint-Loup e quando ainda não se tratava
da Sra. de Stermaria, a ilha do Bois me havia parecido apropriada para o prazer, pois me
acontecera ter estado ali a fim de degustar a tristeza de não ter nenhum prazer para abrigar
naquelas paragens. É pelas margens do lago que conduzem a essa ilha e ao longo das quais, nas
últimas semanas de verão, costumam passear as parisienses que ainda não se despediram, que,
não sabendo mais onde encontrá-la e nem mesmo se já deixou Paris, perambulamos na
esperança de ver passar a moça por quem nos apaixonamos no último baile do ano e que não
poderemos mais encontrar em nenhuma recepção antes da primavera seguinte. Sentindo-se nas
vésperas ou talvez no dia seguinte à partida do ente querido, a gente segue, à beira da água
trêmula, essas belas alamedas onde uma Primeira folha rubra já desponta como uma última rosa,
escruta esse horizonte em que, por um artifício inverso ao desses panoramas sob cuja rotunda os
personagens de cera do primeiro plano dão à tela pintada do fundo a aparência ilusória da
profundidade e do volume, nossos olhos passam sem transição do parque cultivado às alturas
naturais do Meudon e do monte Valérien, não sabendo onde pôr um limite, e colocam a
verdadeira campina na obra de jardinagem, cujo encanto artificial projetam muito além dela; da
mesma forma, esses pássaros raros criados em liberdade num jardim botânico e que todos os
dias, ao sabor de seus passeios alados, vão buscar até nos bosques limítrofes uma nota exótica.
Entre a última festa do ano e o exílio do inverno, percorremos ansiosamente esse reino
romanesco de encontros incertos e de melancolias amorosas, e não ficaríamos mais surpresos
que ele estivesse situado fora do universo geográfico do que; em Versalhes, no alto do terraço,
observatório em torno ao qual as nuvens se acumulam contra o céu azul no estilo de Van der
Meulen, depois de assim nos termos elevado para fora da natureza, soubéssemos que ali onde
esta na extremidade do grande canal, as aldeias que não podemos no horizonte ofuscante como
o mar, se chamam Fleurus ou recomeça, distinguir, Nimegue.
E, passado o último carro, quando sentimos com pesar que ela já não virá, vamos jantar na
ilha; acima dos choupos trêmulos que recordam incessantemente os mistérios do entardecer mais
do que a eles respondem, uma nuvem rósea põe uma última cor de vida no céu apaziguado.
Algumas gotas de chuva caem sem rumor na água antiga, mas que, na sua divina infância,
continua sendo da cor do tempo e que a todo instante esquece as imagens das nuvens e das
flores. E, depois de os gerânios terem lutado inutilmente contra o crepúsculo ensombrecido,
intensificando a iluminação de suas cores, uma bruma vem envolver a ilha, que adormece;
passeamos na escuridão úmida ao longo das águas, onde no máximo a passagem silenciosa de
um cisne nos espanta, como num leito noturno os olhos crescidos e abertos um instante e o
sorriso de uma criança que não imaginávamos acordada. Então tanto mais gostaríamos de ter
conosco a amada quanto mais sós nos sentimos e mais distantes nos podemos julgar estar.
Mas a essa ilha, onde mesmo no verão era frequente o nevoeiro, como me sentiria feliz em
levar a Sra. de Stermaria, agora que havia chegado a estação chuvosa, que chegara o fim do
outono! Se o tempo que fazia desde domingo não deixaria acinzentadas e marítimas as regiões
em que vivia a minha fantasia como outras estações as tornavam embalsamar das luminosas,
italianas -, a esperança de possuir a Sra. de Stermaria dentro de poucos dias teria bastado para
fazer erguer-se, vinte vezes por hora, uma cortina de bruma em minha imaginação
monotonamente nostálgica. Em todo caso, o nevoeiro que desde a véspera se erguera sobre a
própria Paris não só me fazia pensar incessantemente na terra natal da jovem senhora que eu
acabava de convidar, mas, como era provável que, bem mais espesso ainda do que na cidade,
devesse à tardinha invadir o Bois, sobretudo à beira do lago, eu pensava que, para mim, a ilha
dos Cisnes representaria um pouco da ilha da Bretanha, cuja atmosfera marítima e brisa havia
sempre envolvido a meus olhos, como uma vestimenta, a pálida silhueta da Sra. de Stermaria.
Certamente, quando somos jovens, na idade que eu tinha em meus passeios para os lados de
Méséglise, nosso desejo, nossa crença atribuem ao vestido de uma mulher uma particularidade
individual, uma irredutível essência. Perseguimos a realidade. Porém, à força de deixá-la escapar,
acabamos por verificar que, através de todas essas tentativas baldadas onde nos defrontamos
com o Nada, subsiste algo de sólido, que é o que procurávamos. Começamos a conhecer o que
amamos; tentamos obtê-lo, ainda que à custa de um artifício. Então, na falta da crença
desaparecida, a roupa significa o suprimento dessa crença por meio de uma ilusão voluntária. Eu
sabia que, a meia hora de casa, não ia encontrar a Bretanha. Mas, ao passear abraçado à Sra. de
Stermaria pelas trevas da ilha, à beira d'água, procederia como outros que, não podendo penetrar
num convento, pelo menos, antes de possuir uma mulher, vestem-na de freira.
continua na página 172...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Dois minutos antes)
Volume 7
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