quinta-feira, 17 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (9b) - Muitas coisas o príncipe ignorava

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

9.

continuando...

.     Muitas coisas o príncipe ignorava e essa era a primeira pessoa do círculo dos Epantchín a visitá-lo.
     Confirmou o boato de que Agláia estivera doente, três dias e três noites, com febre, sem dormir. Que já estava, agora, bem melhor e fora de perigo, mas em um estado muito nervoso. Que, felizmente, tinham adotado uma boa política em casa, resolvendo não fazer a menor alusão ao passado, não só diante de Agláia, mas mesmo entre si. Que os pais já estavam pensando em uma excursão ao estrangeiro, no outono, logo depois do casamento de Adelaída, tendo Agláia recebido as primeiras insinuações sobre essa viagem em silêncio. Que ele, Evguénii Pávlovitch, muito provavelmente iria também até ao estrangeiro, podendo o próprio Príncipe Chtch.. sair. uns pares de meses, com Adelaída, caso os negócios permitissem. Mas que, quanto ao general, esse teria de ficar. Que se tinham mudado todos para Kólmino, a umas vinte verstás de Petersburgo, pois possuíam lá uma espaçosa mansão. Que a Princesa Bielokónskaia não voltara para Moscou, parecendo que ainda permanecia um pouco em Pávlovsk, propositadamente. Que a saída dos Epantchín de Pávlovsk fora conseqüência de uma resolução categórica de Lizavéta Prokófievna, envergonhada com o que acontecera. Que ele, Evguénii Pávlovitch, fora dos que mais cautelosamente tinham transmitido à generala os rumores que circulavam pela cidade, tendo-lhes parecido, por isso, impróprio mudarem-se para a vila de Ieláguin.

- E, com efeito - acrescentou Evguénii Pávlovitch -, o senhor deve compreender que eles a custo poderiam enfrentar tudo isso... Principalmente sabendo do que se passa aqui em sua casa, príncipe! E ante a sua insistência, embora insistam em não o receber, de lhes ir bater todos os dias na porta.
- Sim, sim, sim! Tem razão. Mas eu queria ver Agláia - disse o príncipe, acenando com a cabeça três vezes.
- Ah! Querido príncipe - exclamou Evguénii Pávlovitch, com exaltação e tristeza-, como lhe haveriam de permitir uma coisa dessas, depois de tudo quanto aconteceu? Naturalmente, naturalmente! Foi tudo tão súbito! Compreendo que o senhor estivesse fora dos seus sentidos e não pudesse conter a pobre menina. Isso não estava em suas forças. Mas devia ter compreendido como e quanto o sentimento dela para com o senhor era intenso e sério. Pois se ela nem se dominou sabendo que havia na sua vida uma outra mulher... E o senhor pôde abandonar e despedaçar um tesouro como aquele?
- Sim, sim, sim! Tem razão. Sou muito culpado - recomeçou Míchkin, em uma terrível angústia - E o senhor sabe, só ela, só ela demonstrava essa consideração para com Nastássia Filíppovna. Só ela, mais ninguém.
- Sim, é isso que torna tudo ainda mais terrível, não haver nada de sério em tudo isso! - tentou explicar Evguénii Pávlovítch, deixando-se empolgar. - Há de me perdoar, príncipe, mas eu estive pensando muito, muitíssimo... nisso tudo. Estou a par de tudo o que aconteceu antes, de tudo quanto aconteceu há seis meses. E cheguei à conclusão de que nada disso tinha consistência. Foi só a sua cabeça, e não o seu coração, que se envolveu em uma ilusão, em uma fantasia, em uma miragem! E só o imaginoso ciúme de uma rapariga completamente inexperiente é que poderia ter tomado isso a sério!...

     A esta altura, sem retalhar muito as coisas principais. Evguénii Pávlovitch deixou que toda a sua indignação enfunasse. Raciocinando com clareza e, repetimos, com muita visão psicológica, traçou um quadro vívido das primeiras relações do príncipe com Nastássia Filíppovna. (Ele sempre tivera o dom da linguagem, mas esse momento lhe despertou uma eloquência verdadeira.)

- Desde o primeiro minuto, tudo começou com falsidade. E o que nasce com a mentira, com a mentira morre; isto é uma lei da natureza. Não concordo e até me indigno quando alguém o chama de idiota. O senhor é inteligente demais para merecer essa classificação. Mas o senhor é tão estranho que não se assemelha a nós outros, vamos, concorde comigo. E então me veio à cabeça que o que está no fundo de tudo que aconteceu é a sua inata falta de experiência (marque bem esta palavra “inata”, príncipe!), a sua extraordinária ingenuidade, a sua fenomenal carência de noções de proporção (o que, alias, o senhor mesmo várias vezes reconheceu) e, finalmente, a enorme massa de convicções que, sendo, como no senhor são, intelectuais, o senhor cuidou que fossem inatas e intuitivas. Deve admitir, príncipe, que desde o começo houve em suas relações para com Nastássia Filíppovna um elemento convencional democrático (uso esta expressão por brevidade), uma fascinação, por assim dizer, pelo caso “mulher” (para expressar-me outra vez com brevidade). Sei todas as minúcias da cena escandalosa que se passou em casa de Nastássia Filíppovna quando Rogójin trouxe o dinheiro. Se prefere, posso analisar tudo, contando pelos meus dedos, ou lhe mostrando em um espelho, para o senhor assim se certificar de que realmente sei como tudo isso foi, como acabou, e no que acabou. Na juventude, lá da Suíça, anelava pela Rússia, e pensava no seu país natal como em uma terra da promissão. Lá leu uma porção de livros sobre a Rússia, excelentes livros, decerto, porém perniciosos para o senhor. Depois veio para cá, sequioso de bem fazer e, se bem me exprimo, de meter mãos à obra. Exatamente no primeiro dia da sua chegada, a triste e lancinante história de uma mulher aviltada lhe chega aos ouvidos. O senhor, um cavalheiro virginal, a escutar a história de uma dama! Naquele mesmo dia viu essa mulher e ficou maravilhado ante tão fantástica e demoníaca beleza! (Concordo que ela seja bonita, naturalmente!) Junte a isso os seus nervos e a sua epilepsia, junte a isso o degelo de Petersburgo, que estraçalha os nervos. Junte tudo isso em um só dia, em uma cidade desconhecida e quase fantasmagórica. Um só dia com tantas peripécias e encontros, um só dia com tão inesperados conhecimentos, Hora sobre hora, da mais surpreendente realidade, o encontro com as três beldades Epantchin. E Agláia entre elas. Depois, a sua fadiga, o torvelinho na sua cabeça e, ainda por cima, a sala de Nastássia Filíppovna, o diapasão dessa sala! E... que poderia o senhor esperar? Diga-me, vamos, que pensa de tudo isso?
- Sim, sim! Sim, sim! - o príncipe abaixou a cabeça e começou a mudar de cor - Tem razão. Foi o que aconteceu, realmente. E, sabe o senhor, mal dormi, ou melhor, não dormi absolutamente naquele trem, nem naquela noite nem na anterior. Estava pavorosamente exausto. 
- Pois decerto! E é o que estou procurando demonstrar - acudiu Evguénii Pávlovitch. - Intoxicado, por assim dizer, pelo entusiasmo, logo se lhe deparou o ensejo de proclamar, publicamente, a generosa ideia de que o senhor, um príncipe por nascimento, e um homem de vida ilibada, não considerava desonrada uma mulher arremessada à vergonha não por culpa própria e sim por um repugnante aristocrata libertino. Deus do Céu, naturalmente que se entende isso! Mas esse não é o ponto, meu caro príncipe. O ponto é saber se houve realidade, se houve sinceridade em suas emoções; se o que houve foi sentimento natural ou entusiasmo intelectual. Que pensa disto? A mulher, no templo, realmente foi perdoada - uma mulher justamente como esta. Mas não lhe foi dito que agira bem e que todo o respeito lhe era devido. Não é mesmo? Não lhe disse o senso comum, três meses depois. Qual o verdadeiro estado da questão? Não desejo criticá-la, mas poderiam todas as aventuras dessa mulher justificar o seu intolerável e diabólico orgulho e o seu insolente egoísmo rapace? Perdoe-me, príncipe, se me deixei arrastar por tudo isso, mas...
- Sim, talvez tudo seja assim. Talvez tenha razão...- tornou a concordar o príncipe. - Ela é muito suscetível... O senhor está certo, mas... 
 - Que é merecedora de compaixão? É o que quer dizer, meu magnânimo amigo? Mas como pôde, atrapalhando-se com a compaixão, servir o prazer de uma mulher para envergonhar outra? E esta, uma pura e suave moça que o senhor consentiu que uns olhos altivos e rancorosos humilhassem! Ao que o vai levar a compaixão, ainda? A um exagero que ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Como pôde o senhor, amando uma jovem, humilhá-la perante a rival, e, por causa da rival, deixando-a assim, depois do senhor mesmo lhe haver feito uma proposta de casamento honorabilíssima? Não lhe fez o senhor esse pedido, essa proposta? Sim, o senhor o fez, e diante dos pais e das irmãs. Chama-se ainda, depois disso, um homem de bem? Permita que lhe pergunte, príncipe? E... o senhor não iludiu essa adorável criatura quando lhe disse que a amava?
- Sim! Sim! Tem razão! De fato eu me sinto culpado! repetiu o príncipe, tomado de inenarrável angústia. 
- Mas acha que isso é o bastante? - insistiu Evguénii Pávlovitch, indignado. - Acha que basta gritar: “Ah, mereço todas as censuras!”? Sim, é digno de censura, mas persiste! E onde estava o seu coração, então, o seu coração de cristão? Ora, não viu o rosto de Agláia, naquele momento? Bem, e estava ela sofrendo menos do que a outra, do que essa outra mulher que se interpôs entre ela e o senhor? Como foi que viu isso e permitiu? Como pôde permitir?
- Mas.., eu não permiti! balbuciou o desgraçado príncipe.
- Não permitiu? 
- Sim, não permiti coisa nenhuma! Até agora não compreendo como tudo aquilo se passou. Eu... eu ia a correr atrás de Agláia Ivánovna, mas justamente naquele instante Nastássia Filíppovna caiu desacordada. Desde então não me deixaram mais ver Agláia Ivánovna.  
- Deixe disso! O ataque não importava! De qualquer forma o senhor devia ter corrido atrás de Agláia! Mesmo que a outra desmaiasse!
- Sim, sim! Devia ter feito isso, sim! Ela podia, porém, ter morrido; o senhor não sabe. Ela poderia até se matar, o senhor não a conhece... Depois, que é que tinha? Eu contava depois tudo a Agláia e então... Evguénii Pávlovitch... Mas vejo que o senhor não sabe nada. Diga-me, por que não me hão de deixar ver Agláia Ívánovna? Eu já teria explicado tudo a ela. Para que se puseram as duas a falar de coisas erradas?... Foi por isso que aconteceu tudo aquilo. Ao senhor é difícil explicar. Mas a Agláia eu posso. Ah! A pobrezinha! A pobrezinha! E o senhor a me recordar ainda o rostinho dela quando se foi embora. Então eu poderia esquecer?... Vamos lá! Temos de ir! - pulou subitamente e puxou Evguénii Pavlovitch.
- Ir aonde?
- Ver Agláia Ivánovna, vamos imediatamente! 
- Mas não está mais aqui em Pávlovsk, estou lhe dizendo. E ir, para quê? 
- Ela compreenderá, ela compreenderá! - bradou o príncipe, implorando, com as mãos juntas. - Ela compreenderá que não se trata do que aconteceu, mas de alguma coisa mais! Alguma coisa bem diferente!
- Que quer dizer com mais essa coisa “diferente”? Só se é para dizer que se vai casar com a outra! Pois o senhor persiste, não é? O senhor vai ou não vai se casar? 
- Vou sim. Vou sim!
- Então, como é que “há uma outra coisa diferente”?
- Não é isso, não é isso. O eu me ir casar não quer dizer nada, absolutamente nada.
- Como não quer dizer nada? Não tem importância? Ora, a mim me parece que não se trata de uma coisa à-toa, acho eu! Vai se casar com uma mulher que ama, para a tornar feliz. E Agláia Ivánovna vê e sabe disso. E como é que ainda acha que não tem importância? 
- Fazê-la feliz? Oh! Não! Apenas vou me casar com ela. É ela quem quer. E que tem que eu case com ela?... Eu... Oh!... Nada disso tem importância! Assim ela não morre. Casar-se com Rogójin é que seria uma loucura! Compreendo agora tudo quanto não compreendi antes. E, veja o senhor, quando elas estavam lá, uma em face da outra, não pude suportar o rosto de Nastássia Filíppovna... O senhor não sabe, Evguénii Pávlovitch - o príncipe abaixou a voz, misteriosamente -, eu nunca disse isto a ninguém, nem mesmo a Agláia, mas eu não posso suportar o rosto de Nastássia Filíppovna. O senhor tinha razão quando ainda há pouco falava daquela noite em casa de Nastássia Filíppovna: mas deixou de dizer uma coisa que ignora. Já naquela manhã, quando olhei o retrato dela, não pude suportar aquele rosto!... Veja por exemplo os olhos de Vera; não são uma coisa muito diferente? Eu... eu tenho medo do rosto dela! - acrescentou com extraordinária expressão de terror. 
- Tem medo?
- Sim. Ela é louca - ciciou ele, empalidecendo.
- Tem certeza? - perguntou Evguénii Pávlovitch, com extremo interesse.
- Tenho sim. Agora, tenho. Certifiquei-me, destes últimos dias para cá. 
- Mas que é que está fazendo, então, príncipe? - o pavor também se estava comunicando a Evguénii Pávlovitch. - Então vai se casar com ela por causa de uma espécie de medo? Mas não se compreende! Sem mesmo a amar, talvez?
- Oh! Não. Eu a amo com todo o meu coração. Ora... ela é uma criança! Agora ela não passa de uma criança. Completamente! Uma criança! Oh! O senhor não entende essas coisas.
- E ao mesmo tempo declara que ama Agláia Ivánovna? 
- Oh! Sim, sim! 
- Mas como? Então ama a ambas? 
- Oh! Sim, sim! 
- Palavra de honra, príncipe, pense no que está dizendo!
- Sem Agláia, eu sou... Preciso absolutamente ver Agláia! Eu... eu vou morrer qualquer dia destes, durante o sono! Ainda a noite passada tive a sensação de estar morrendo... Oh! Se Agláia soubesse, se ela ao menos pudesse vir a saber tudo, mas absolutamente tudo, entende? Pois em um caso destes se precisa vir a saber de tudo, isso é que importa! Por que é que nós nunca chegamos a saber tudo relativamente a uma outra pessoa, principalmente quando se censura essa pessoa? Não sei mais o que estou dizendo. Estou zonzo. O senhor me assombrou... Será que ela ainda tem a mesma expressão no rosto, como na hora em que fugiu? Provavelmente é minha a culpa toda. Não sei bem como, mas a culpa é minha. Há em tudo isso qualquer coisa que eu não lhe posso explicar, Evguénii Pávlovitch. Não posso achar as palavras, mas... Agláia... Agláia compreenderia. Eu sempre acreditei que ela compreenderia. 
- Não compreenderia não, príncipe. Agláia o amou como mulher, como ser humano e não como espírito abstrato. Quer saber de uma coisa mais do que provável, príncipe? O senhor nunca amou nenhuma delas!
- Sei lá! Talvez.., talvez seja isso. O senhor tem razão em muita coisa, Evguénii Pávlovitch. O senhor é muito inteligente! Ah! A minha cabeça está começando a doer, outra vez. Pelo amor de Deus, vamos à casa dela! Pelo amor de Deus!
- Mas já lhe disse que não está em Pávlovsk. Foi para Kólmino. 
- Então vamos a Kólmino, imediatamente.
- Isso é impossível - declarou Evguénii Pávlovitch, peremptoriamente, levantando-se.
- Ouça. escreverei a ela. O senhor leva a carta. 
- Não, príncipe. não! Poupe-me essa incumbência. Não posso.

     Despediram-se.
     Evguénii Pávlovitch saiu com profundas impressões, concluindo de tudo isso que o príncipe não estava em seu juízo perfeito. 

 “Que quereria ele significar com aquele rosto que quanto mais temia mais amava? E quem sabe se realmente não viria a morrer sem ver Agláia, de modo a ela nunca vir a saber quanto ele a amava? Ah!... Pode-se amar duas pessoas ao mesmo tempo? Bem misterioso que isso é... Pobre idiota! Doravante, que será dele?” 

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (9b) - Muitas coisas o príncipe ignorava
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