Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
9.
continuando...
. Muitas coisas o príncipe ignorava e
essa era a primeira pessoa do círculo dos Epantchín a visitá-lo.
Confirmou o
boato de que Agláia estivera doente, três dias e três noites, com febre, sem
dormir. Que já estava, agora, bem melhor e fora de perigo, mas em um estado
muito nervoso. Que, felizmente, tinham adotado uma boa política em casa,
resolvendo não fazer a menor alusão ao passado, não só diante de Agláia, mas
mesmo entre si. Que os pais já estavam pensando em uma excursão ao
estrangeiro, no outono, logo depois do casamento de Adelaída, tendo Agláia
recebido as primeiras insinuações sobre essa viagem em silêncio. Que ele,
Evguénii Pávlovitch, muito provavelmente iria também até ao estrangeiro,
podendo o próprio Príncipe Chtch.. sair. uns pares de meses, com Adelaída, caso
os negócios permitissem. Mas que, quanto ao general, esse teria de ficar. Que se
tinham mudado todos para Kólmino, a umas vinte verstás de Petersburgo, pois
possuíam lá uma espaçosa mansão. Que a Princesa Bielokónskaia não voltara
para Moscou, parecendo que ainda permanecia um pouco em Pávlovsk,
propositadamente. Que a saída dos Epantchín de Pávlovsk fora conseqüência de
uma resolução categórica de Lizavéta Prokófievna, envergonhada com o que
acontecera. Que ele, Evguénii Pávlovitch, fora dos que mais cautelosamente
tinham transmitido à generala os rumores que circulavam pela cidade, tendo-lhes
parecido, por isso, impróprio mudarem-se para a vila de Ieláguin.
- E, com efeito - acrescentou Evguénii Pávlovitch -, o senhor deve compreender
que eles a custo poderiam enfrentar tudo isso... Principalmente sabendo do que se
passa aqui em sua casa, príncipe! E ante a sua insistência, embora insistam em
não o receber, de lhes ir bater todos os dias na porta.
- Sim, sim, sim! Tem razão. Mas eu queria ver Agláia - disse o príncipe,
acenando com a cabeça três vezes.
- Ah! Querido príncipe - exclamou Evguénii Pávlovitch, com exaltação e tristeza-, como lhe haveriam de permitir uma coisa dessas, depois de tudo quanto
aconteceu? Naturalmente, naturalmente! Foi tudo tão súbito! Compreendo que o
senhor estivesse fora dos seus sentidos e não pudesse conter a pobre menina. Isso
não estava em suas forças. Mas devia ter compreendido como e quanto o
sentimento dela para com o senhor era intenso e sério. Pois se ela nem se
dominou sabendo que havia na sua vida uma outra mulher... E o senhor pôde
abandonar e despedaçar um tesouro como aquele?
- Sim, sim, sim! Tem razão.
Sou muito culpado - recomeçou Míchkin, em uma terrível angústia - E o senhor sabe, só ela, só ela demonstrava essa consideração para com
Nastássia Filíppovna. Só ela, mais ninguém.
- Sim, é isso que torna tudo ainda
mais terrível, não haver nada de sério em tudo isso! - tentou explicar Evguénii
Pávlovítch, deixando-se empolgar. - Há de me perdoar, príncipe, mas eu estive
pensando muito, muitíssimo... nisso tudo. Estou a par de tudo o que aconteceu
antes, de tudo quanto aconteceu há seis meses. E cheguei à conclusão de que
nada disso tinha consistência. Foi só a sua cabeça, e não o seu coração, que se
envolveu em uma ilusão, em uma fantasia, em uma miragem! E só o imaginoso
ciúme de uma rapariga completamente inexperiente é que poderia ter tomado
isso a sério!...
A esta altura, sem retalhar muito as coisas principais. Evguénii
Pávlovitch deixou que toda a sua indignação enfunasse. Raciocinando com
clareza e, repetimos, com muita visão psicológica, traçou um quadro vívido das
primeiras relações do príncipe com Nastássia Filíppovna. (Ele sempre tivera o
dom da linguagem, mas esse momento lhe despertou uma eloquência
verdadeira.)
- Desde o primeiro minuto, tudo começou com falsidade. E o que
nasce com a mentira, com a mentira morre; isto é uma lei da natureza. Não
concordo e até me indigno quando alguém o chama de idiota. O senhor é
inteligente demais para merecer essa classificação. Mas o senhor é tão estranho
que não se assemelha a nós outros, vamos, concorde comigo. E então me veio à
cabeça que o que está no fundo de tudo que aconteceu é a sua inata falta de
experiência (marque bem esta palavra “inata”, príncipe!), a sua extraordinária
ingenuidade, a sua fenomenal carência de noções de proporção (o que, alias, o
senhor mesmo várias vezes reconheceu) e, finalmente, a enorme massa de
convicções que, sendo, como no senhor são, intelectuais, o senhor cuidou que
fossem inatas e
intuitivas. Deve admitir, príncipe, que desde o começo houve em suas relações
para com Nastássia Filíppovna um elemento convencional democrático (uso esta
expressão por brevidade), uma fascinação, por assim dizer, pelo caso “mulher”
(para expressar-me outra vez com brevidade). Sei todas as minúcias da cena
escandalosa que se passou em casa de Nastássia Filíppovna quando Rogójin
trouxe o dinheiro. Se prefere, posso analisar tudo, contando pelos meus dedos, ou
lhe mostrando em um espelho, para o senhor assim se certificar de que
realmente sei como tudo isso foi, como acabou, e no que acabou. Na juventude,
lá da Suíça, anelava pela Rússia, e pensava no seu país natal como em uma terra
da promissão. Lá leu uma porção de livros sobre a Rússia, excelentes livros,
decerto, porém perniciosos para o senhor. Depois veio para cá, sequioso de bem
fazer e, se bem me exprimo, de meter mãos à obra. Exatamente no primeiro dia
da sua chegada, a triste e lancinante história de uma mulher aviltada lhe chega
aos ouvidos. O senhor, um cavalheiro virginal, a escutar a história de uma dama!
Naquele mesmo dia viu essa mulher e ficou maravilhado ante tão fantástica e
demoníaca beleza! (Concordo que ela seja bonita, naturalmente!)
Junte a isso os seus nervos e a sua epilepsia, junte a isso o degelo de Petersburgo,
que estraçalha os nervos.
Junte tudo isso em um só dia, em uma cidade desconhecida e quase
fantasmagórica. Um só dia com tantas peripécias e encontros, um só dia com tão
inesperados conhecimentos, Hora sobre hora, da mais surpreendente realidade, o
encontro com as três beldades Epantchin. E Agláia entre elas. Depois, a sua
fadiga, o torvelinho na sua cabeça e, ainda por cima, a sala de Nastássia
Filíppovna, o diapasão dessa sala! E... que poderia o senhor esperar? Diga-me,
vamos, que pensa de tudo isso?
- Sim, sim! Sim, sim! - o príncipe abaixou a
cabeça e começou a mudar de cor - Tem razão. Foi o que aconteceu, realmente. E, sabe o senhor, mal dormi, ou
melhor, não dormi absolutamente naquele trem, nem naquela noite nem na
anterior. Estava pavorosamente exausto.
- Pois decerto! E é o que estou
procurando demonstrar - acudiu Evguénii Pávlovitch. - Intoxicado, por assim dizer, pelo entusiasmo, logo se lhe deparou o ensejo de
proclamar, publicamente, a generosa ideia de que o senhor, um príncipe por
nascimento, e um homem de vida ilibada, não considerava desonrada uma
mulher arremessada à vergonha não por culpa própria e sim
por um repugnante aristocrata libertino. Deus do Céu, naturalmente que se
entende isso! Mas esse não é o ponto, meu caro príncipe. O ponto é saber se
houve realidade, se houve sinceridade em suas emoções; se o que houve foi
sentimento natural ou entusiasmo intelectual. Que pensa disto? A mulher, no
templo, realmente foi perdoada - uma mulher justamente como esta. Mas não
lhe foi dito que agira bem e que todo o respeito lhe era devido. Não é mesmo?
Não lhe disse o senso comum, três meses depois. Qual o verdadeiro estado da
questão? Não desejo criticá-la, mas poderiam todas as aventuras dessa mulher
justificar o seu intolerável e diabólico orgulho e o seu insolente egoísmo rapace?
Perdoe-me, príncipe, se me deixei arrastar por tudo isso, mas...
- Sim, talvez tudo
seja assim. Talvez tenha razão...- tornou a concordar o príncipe. - Ela é muito
suscetível... O senhor está certo, mas...
- Que é merecedora de compaixão? É o
que quer dizer, meu magnânimo amigo? Mas como pôde, atrapalhando-se com a
compaixão, servir o prazer de uma mulher para envergonhar outra? E esta, uma
pura e suave moça que o senhor consentiu que uns olhos altivos e rancorosos
humilhassem! Ao que o vai levar a compaixão, ainda? A um exagero que
ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Como pôde o senhor, amando uma
jovem, humilhá-la perante a rival, e, por causa da rival, deixando-a assim, depois
do senhor mesmo lhe haver feito uma proposta de casamento honorabilíssima?
Não lhe fez o senhor esse pedido, essa proposta? Sim, o senhor o fez, e diante dos
pais e das irmãs. Chama-se ainda, depois disso, um homem de bem? Permita que
lhe pergunte, príncipe? E... o senhor não iludiu essa adorável criatura quando lhe
disse que a amava?
- Sim! Sim! Tem razão! De fato eu me sinto culpado!
repetiu o príncipe, tomado de inenarrável angústia.
- Mas acha que isso é o bastante? - insistiu Evguénii Pávlovitch, indignado. - Acha
que basta gritar: “Ah, mereço todas as censuras!”? Sim, é digno de censura, mas
persiste! E onde estava o seu coração, então, o seu coração de cristão? Ora, não
viu o rosto de Agláia, naquele momento? Bem, e estava ela sofrendo menos do
que a outra, do que essa outra mulher que se interpôs entre ela e o senhor? Como
foi que viu isso e permitiu? Como pôde permitir?
- Mas.., eu não permiti!
balbuciou o desgraçado príncipe.
- Não permitiu?
- Sim, não permiti coisa nenhuma! Até agora não compreendo como tudo aquilo
se passou. Eu... eu ia a correr atrás de Agláia Ivánovna, mas justamente naquele
instante Nastássia Filíppovna caiu desacordada. Desde então não me deixaram
mais ver Agláia Ivánovna.
- Deixe disso! O ataque não importava! De qualquer forma o senhor devia
ter corrido atrás de Agláia! Mesmo que a outra desmaiasse!
- Sim, sim! Devia
ter feito isso, sim! Ela podia, porém, ter morrido; o senhor não sabe. Ela poderia
até se matar, o senhor não a conhece... Depois, que é que tinha? Eu contava
depois tudo a Agláia e então... Evguénii Pávlovitch... Mas vejo que o senhor não
sabe nada. Diga-me, por que não me hão de deixar ver Agláia Ívánovna? Eu já
teria explicado tudo a ela. Para que se puseram as duas a falar de coisas
erradas?... Foi por isso que aconteceu tudo aquilo. Ao senhor é difícil explicar.
Mas a Agláia eu posso. Ah! A pobrezinha! A pobrezinha! E o senhor a me
recordar ainda o rostinho dela quando se foi embora. Então eu poderia esquecer?... Vamos lá! Temos de ir! - pulou subitamente e puxou Evguénii Pavlovitch.
- Ir aonde?
- Ver Agláia Ivánovna, vamos imediatamente!
- Mas não está mais aqui em
Pávlovsk, estou lhe dizendo. E ir, para quê?
- Ela compreenderá, ela compreenderá! - bradou o príncipe, implorando, com as
mãos juntas. - Ela compreenderá que não se trata do que aconteceu, mas de
alguma coisa mais! Alguma coisa bem diferente!
- Que quer dizer com mais
essa coisa “diferente”? Só se é para dizer que se vai casar com a outra! Pois o
senhor persiste, não é? O senhor vai ou não vai se casar?
- Vou sim. Vou sim!
- Então, como é que “há uma outra coisa diferente”?
- Não é isso, não é isso. O
eu me ir casar não quer dizer nada, absolutamente nada.
- Como não quer dizer nada? Não tem importância? Ora, a mim me parece que
não se trata de uma coisa à-toa, acho eu! Vai se casar com uma mulher que
ama, para a tornar feliz. E Agláia Ivánovna vê e sabe disso. E como é que ainda
acha que não tem importância?
- Fazê-la feliz? Oh! Não! Apenas vou me casar com ela. É ela quem quer. E que
tem que eu case com ela?... Eu... Oh!... Nada disso tem importância! Assim ela não morre. Casar-se com
Rogójin é que seria uma loucura! Compreendo agora tudo quanto não
compreendi antes. E, veja o senhor, quando elas estavam lá, uma em face da
outra, não pude suportar o rosto de Nastássia Filíppovna... O senhor não sabe,
Evguénii Pávlovitch - o príncipe abaixou a voz, misteriosamente -, eu nunca
disse isto a ninguém, nem mesmo a Agláia, mas eu não posso suportar o rosto de
Nastássia Filíppovna. O senhor tinha razão quando ainda há pouco falava daquela
noite em casa de Nastássia Filíppovna: mas deixou de dizer uma coisa que ignora.
Já naquela manhã, quando olhei o retrato dela, não pude suportar aquele rosto!...
Veja por exemplo os olhos de Vera; não são uma coisa muito diferente? Eu... eu
tenho medo do rosto dela! - acrescentou com extraordinária expressão de terror.
- Tem medo?
- Sim. Ela é louca - ciciou ele, empalidecendo.
- Tem certeza? - perguntou
Evguénii Pávlovitch, com extremo interesse.
- Tenho sim. Agora, tenho.
Certifiquei-me, destes últimos dias para cá.
- Mas que é que está fazendo, então,
príncipe? - o pavor também se estava comunicando a Evguénii Pávlovitch. - Então vai se casar com ela por causa de uma espécie de medo? Mas não se
compreende! Sem mesmo a amar, talvez?
- Oh! Não. Eu a amo com todo o meu
coração. Ora... ela é uma criança! Agora ela não passa de uma criança.
Completamente! Uma criança! Oh! O senhor não entende essas coisas.
- E ao mesmo tempo declara que ama Agláia Ivánovna?
- Oh! Sim, sim!
- Mas como? Então ama a ambas?
- Oh! Sim, sim!
- Palavra de honra, príncipe, pense no que está dizendo!
- Sem Agláia, eu sou...
Preciso absolutamente ver Agláia! Eu... eu vou morrer qualquer dia destes,
durante o sono! Ainda a noite passada tive a sensação de estar morrendo... Oh!
Se Agláia soubesse, se ela ao menos pudesse vir a saber tudo, mas absolutamente
tudo, entende? Pois em um caso destes se precisa vir a saber de tudo, isso é que
importa! Por que é que nós nunca chegamos a saber tudo relativamente a uma
outra pessoa, principalmente quando se censura essa pessoa? Não sei mais o que
estou dizendo. Estou zonzo. O senhor me assombrou... Será que ela ainda tem a
mesma expressão no rosto, como na hora em que fugiu? Provavelmente é minha
a culpa toda. Não sei bem como, mas a culpa é minha. Há em tudo isso qualquer
coisa que eu não lhe posso explicar, Evguénii Pávlovitch. Não posso achar as
palavras, mas... Agláia... Agláia compreenderia. Eu sempre acreditei que ela
compreenderia.
- Não compreenderia não, príncipe. Agláia o amou como mulher, como ser
humano e não como espírito abstrato. Quer saber de uma coisa mais do que
provável, príncipe? O senhor nunca amou nenhuma delas!
- Sei lá! Talvez..,
talvez seja isso. O senhor tem razão em muita coisa, Evguénii Pávlovitch. O
senhor é muito inteligente! Ah! A minha cabeça está começando a doer, outra
vez. Pelo amor de Deus, vamos à casa dela! Pelo amor de Deus!
- Mas já lhe disse que não está em Pávlovsk. Foi para Kólmino.
- Então vamos a
Kólmino, imediatamente.
- Isso é impossível - declarou Evguénii Pávlovitch,
peremptoriamente, levantando-se.
- Ouça. escreverei a ela. O senhor leva a
carta.
- Não, príncipe. não! Poupe-me essa incumbência. Não posso.
Despediram-se.
Evguénii Pávlovitch saiu com profundas impressões, concluindo
de tudo isso que o príncipe não estava em seu juízo perfeito.
“Que quereria ele
significar com aquele rosto que quanto mais temia mais amava? E quem sabe se
realmente não viria a morrer sem ver Agláia, de modo a ela nunca vir a saber
quanto ele a amava? Ah!... Pode-se amar duas pessoas ao mesmo tempo? Bem
misterioso que isso é... Pobre idiota! Doravante, que será dele?”
continua página 527...
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Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (9b) - Muitas coisas o príncipe ignorava
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