sexta-feira, 11 de julho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.5)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

3.  Os Judeus e a Sociedade
     3.4 - O caso Dreyfus
          3.4.5 - Os Judeus e os Partidários de Dreyfus
     O caso do infeliz capitão Dreyfus havia mostrado ao mundo que, em cada judeu nobre e multimilionário, havia ainda algo do antigo pária sem nação, para quem os direitos humanos não existem, e de quem a sociedade teria prazer de retirar os seus privilégios. Ninguém, contudo, teve maior dificuldade em compreender esse fato que os próprios judeus emancipados. "Não lhes basta", escreveu Bernard Lazare, "rejeitar toda a solidariedade com seus irmãos estrangeiros; têm ainda de atacá-los com todos os males que sua covardia inventa. Não se contentam em ser mais jingoístas que os franceses nativos; como todos os judeus emancipados do mundo, romperam, por vontade própria, com todos os laços de solidariedade. De fato, eles foram a tal ponto que, para as três dúzias de homens na França dispostos a defender um dos seus irmãos mártires, haveria milhares dispostos a montar guarda na Ilha do Diabo, ao lado dos mais fanáticos patriotas do país."[94] Precisamente por haverem representado papel tão insignificante no desenvolvimento político dos países em que viviam, a igualdade jurídica transformou-se, para eles, num fetiche, parecendo-lhes constituir a base indiscutível de sua eterna segurança. Quando o Caso Dreyfus veio adverti-los de que essa segurança estava ameaçada, encontravam se mergulhados num processo de assimilação desintegradora, durante o qual sua falta de sabedoria política havia aumentado em vez de diminuir. Assimilavam-se rapidamente àqueles elementos da sociedade nos quais todas as paixões políticas são sufocadas sob o peso morto do esnobismo social, dos grandes negócios e de oportunidades de lucro. Esperavam livrar-se da antipatia que essas tendências inspiravam, desviando-a contra os seus correligionários ainda não assimilados. Usando as mesmas táticas que a sociedade gentia havia empregado contra eles, empenharam-se em dissociar-se dos chamados Ostjuden [judeus da Europa oriental]. O antissemitismo político, tal como se manifestara nos pogroms da Rússia e da Romênia, era levianamente desprezado por eles como fenômeno que sobreviveu à Idade Média mas que não acontecia nem aconteceria na política moderna do Ocidente. Nunca puderam compreender que, no Caso Dreyfus, o que estava em jogo era algo mais que o simples status social, pois se tratava de algo mais que o mero antissemitismo social.
     São essas, portanto, as razões pelas quais se encontraram tão poucos defensores sinceros de Dreyfus entre os judeus da França. Os judeus, inclusive a própria família do acusado, abstiveram-se de iniciar uma luta política. Por isso mesmo, Labori, advogado de Zola, foi proibido de fazer a defesa no tribunal de Rennes, enquanto o segundo advogado de Dreyfus, Démange, foi forçado a basear sua defesa numa questão de dúvida. Esperava-se assim sufocar sob uma enxurrada de lisonjas qualquer ataque possível ao Exército ou a seus oficiais. O método que levaria à absolvição era o de fingir que tudo não passava de um erro judicial, cuja vítima, por acaso, era um judeu. O resultado foi o segundo veredicto, é Dreyfus, incapaz de encarar o peso da questão, em vez de outro julgamento pediu clemência, isto é, admitiu sua culpa.[95] Os judeus falharam por não enxergarem que se tratava de uma organizada luta política contra eles. Assim, opuseram-se à cooperação com aqueles que estavam dispostos a enfrentar o desafio nessas bases. Quão cega era a sua atitude ficou claro no caso de Clèmenceau. A luta de Clèmenceau pela justiça como fundamento do Estado certamente incluía a restauração de direitos iguais para os judeus. Mas, numa época de lutas de classe de um lado e de nacionalismo desenfreado de outro, isso não teria passado de abstração política se não fosse concebido, ao mesmo tempo, em termos de luta de oprimidos contra opressores. Clèmenceau foi um dos poucos verdadeiros amigos que o povo conheceu nos tempos modernos, apenas porque reconheceu e proclamou perante o mundo que os judeus eram um dos povos oprimidos da Europa. O antissemitismo tende a ver noparvenu judeu um pária; consequentemente, em cada vendedor ambulante receava ver um Rothschild em potencial e em cada subproletario judeu um arrivista. Mas Clèmenceau, em sua atormentada paixão de justiça, via até nos Rothschild os membros de um povo humilhado. Sua angústia pela desventura nacional da França abriu-lhe os olhos e o coração até para aqueles "infelizes, que posam como líderes do seu povo, e logo o abandonam à própria sorte", para aqueles elementos intimidados e submissos que, em sua ignorância, fraqueza e medo, de tal modo se deslumbram pela admiração dos mais fortes que, excluindo a ideia de associarem-se a quem está em luta ativa, só conseguem "acorrer em auxílio do vencedor" quando a batalha já foi ganha.[96]

Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.5)
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[94] Bernard Lazare, "Le nationalisme et l'emancipation juive", em U Echo Sioniste, 20 de abril de 1901, p. 152.
[95] F. Labori, "Le mal politique et les partis", em La Grande Revue, outubro-dezembro de 1901: "A partir do momento, em Rennes, em que o acusado declarou-se culpado e a defesa renunciou ao recurso a um novo julgamento na esperança de ganhar um perdão, o processo Dreyfus como uma grande e universal questão humana estava definitivamente encerrado". Em seu artigo intitulado "Le spectacle du jour", Clèmenceau fala dos judeus de Argel, "por cuja causa Rothschild não levantará o menor protesto".
[96] Ver os artigos de Clèmenceau "Le Spectable du jour", "Et les Juifs!", "La farce du syndicat" e "Encore les Juifs!", emLIniquité. 

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