Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
3.4 - O caso Dreyfus
3.4.5 - Os Judeus e os Partidários de Dreyfus
O caso do infeliz capitão Dreyfus havia mostrado ao mundo que, em cada judeu nobre e
multimilionário, havia ainda algo do antigo pária sem nação, para quem os direitos humanos não
existem, e de quem a sociedade teria prazer de retirar os seus privilégios. Ninguém, contudo,
teve maior dificuldade em compreender esse fato que os próprios judeus emancipados. "Não
lhes basta", escreveu Bernard Lazare, "rejeitar toda a solidariedade com seus irmãos
estrangeiros; têm ainda de atacá-los com todos os males que sua covardia inventa. Não se
contentam em ser mais jingoístas que os franceses nativos; como todos os judeus emancipados
do mundo, romperam, por vontade própria, com todos os laços de solidariedade. De fato, eles
foram a tal ponto que, para as três dúzias de homens na França dispostos a defender um dos seus
irmãos mártires, haveria milhares dispostos a montar guarda na Ilha do Diabo, ao lado dos mais
fanáticos patriotas do país."[94] Precisamente por haverem representado papel tão insignificante
no desenvolvimento político dos países em que viviam, a igualdade jurídica transformou-se,
para eles, num fetiche, parecendo-lhes constituir a base indiscutível de sua eterna segurança.
Quando o Caso Dreyfus veio adverti-los de que essa segurança estava ameaçada, encontravam
se mergulhados num processo de assimilação desintegradora, durante o qual sua falta de
sabedoria política havia aumentado em vez de diminuir. Assimilavam-se rapidamente àqueles
elementos da sociedade nos quais todas as paixões políticas são sufocadas sob o peso morto do
esnobismo social, dos grandes negócios e de oportunidades de lucro. Esperavam livrar-se da
antipatia que essas tendências inspiravam, desviando-a contra os seus correligionários ainda não
assimilados. Usando as mesmas táticas que a sociedade gentia havia empregado contra eles,
empenharam-se em dissociar-se dos chamados Ostjuden [judeus da Europa oriental]. O antissemitismo político, tal como se manifestara nos pogroms da Rússia e da Romênia, era
levianamente desprezado por eles como fenômeno que sobreviveu à Idade Média mas que não
acontecia nem aconteceria na política moderna do Ocidente. Nunca puderam compreender que,
no Caso Dreyfus, o que estava em jogo era algo mais que o simples status social, pois se tratava
de algo mais que o mero antissemitismo social.
São essas, portanto, as razões pelas quais se encontraram tão poucos defensores sinceros de
Dreyfus entre os judeus da França. Os judeus, inclusive a própria família do acusado, abstiveram-se de iniciar uma luta política. Por isso mesmo, Labori,
advogado de Zola, foi proibido de fazer a defesa no tribunal de Rennes, enquanto o segundo
advogado de Dreyfus, Démange, foi forçado a basear sua defesa numa questão de dúvida.
Esperava-se assim sufocar sob uma enxurrada de lisonjas qualquer ataque possível ao Exército
ou a seus oficiais. O método que levaria à absolvição era o de fingir que tudo não passava de um
erro judicial, cuja vítima, por acaso, era um judeu. O resultado foi o segundo veredicto, é
Dreyfus, incapaz de encarar o peso da questão, em vez de outro julgamento pediu clemência,
isto é, admitiu sua culpa.[95] Os judeus falharam por não enxergarem que se tratava de uma
organizada luta política contra eles. Assim, opuseram-se à cooperação com aqueles que estavam
dispostos a enfrentar o desafio nessas bases. Quão cega era a sua atitude ficou claro no caso de
Clèmenceau. A luta de Clèmenceau pela justiça como fundamento do Estado certamente incluía
a restauração de direitos iguais para os judeus. Mas, numa época de lutas de classe de um lado e
de nacionalismo desenfreado de outro, isso não teria passado de abstração política se não fosse
concebido, ao mesmo tempo, em termos de luta de oprimidos contra opressores. Clèmenceau foi
um dos poucos verdadeiros amigos que o povo conheceu nos tempos modernos, apenas porque
reconheceu e proclamou perante o mundo que os judeus eram um dos povos oprimidos da
Europa. O antissemitismo tende a ver noparvenu judeu um pária; consequentemente, em cada
vendedor ambulante receava ver um Rothschild em potencial e em cada subproletario judeu um
arrivista. Mas Clèmenceau, em sua atormentada paixão de justiça, via até nos Rothschild os
membros de um povo humilhado. Sua angústia pela desventura nacional da França abriu-lhe os olhos e o coração até para aqueles "infelizes, que posam como líderes do seu povo, e logo o
abandonam à própria sorte", para aqueles elementos intimidados e submissos que, em sua
ignorância, fraqueza e medo, de tal modo se deslumbram pela admiração dos mais fortes que,
excluindo a ideia de associarem-se a quem está em luta ativa, só conseguem "acorrer em auxílio
do vencedor" quando a batalha já foi ganha.[96]
continua página 130...
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Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade: 3.4.5)
______________________[94] Bernard Lazare, "Le nationalisme et l'emancipation juive", em U Echo Sioniste, 20 de abril de 1901, p. 152.
[95] F. Labori, "Le mal politique et les partis", em La Grande Revue, outubro-dezembro de 1901: "A partir do momento, em Rennes, em que o acusado declarou-se culpado e a defesa renunciou ao recurso a um novo julgamento na esperança de ganhar um perdão, o processo Dreyfus como uma grande e universal questão humana estava definitivamente encerrado". Em seu artigo intitulado "Le spectacle du jour", Clèmenceau fala dos judeus de Argel, "por cuja causa Rothschild não levantará o menor protesto".
[95] F. Labori, "Le mal politique et les partis", em La Grande Revue, outubro-dezembro de 1901: "A partir do momento, em Rennes, em que o acusado declarou-se culpado e a defesa renunciou ao recurso a um novo julgamento na esperança de ganhar um perdão, o processo Dreyfus como uma grande e universal questão humana estava definitivamente encerrado". Em seu artigo intitulado "Le spectacle du jour", Clèmenceau fala dos judeus de Argel, "por cuja causa Rothschild não levantará o menor protesto".
[96] Ver os artigos de Clèmenceau "Le Spectable du jour", "Et les Juifs!", "La farce du syndicat" e "Encore les Juifs!", emLIniquité.
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