Elias Canetti
A MALTA
A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica
As pessoas conhecem o morto cuja perda lamentam. Somente aqueles
que lhe eram próximos ou sabem exatamente quem ele é têm o direito
de juntar-se à malta de lamentação. A dor aumenta na proporção da
familiaridade que se tinha com ele. Os que o conheciam melhor são os
que se lamentam com maior veemência. O ápice da lamentação cabe à
mãe de cujo ventre ele proveio. Não se guarda luto pela morte de
estranhos. Em sua origem, a malta de lamentação não podia formar-se
em torno de qualquer um.
Contudo, essa determinação em relação a seu objeto caracteriza todas
as maltas. Não se trata apenas de os pertencentes a uma malta
conhecerem-se bem uns aos outros: eles conhecem sua meta também.
Quando estão caçando, sabem do que estão atrás. Quando guerreiam,
conhecem muito bem o inimigo. Na lamentação, sua dor tem por
objeto um morto que sabem muito bem quem é. E, nos ritos de
multiplicação, sabem com idêntica precisão o que deve multiplicar-se.
A malta é de uma determinação imutável e assustadora. Essa
determinação, porém, possui também um elemento de familiaridade.
Um carinho singular por sua presa é inegável nos caçadores primitivos.
Na lamentação e na multiplicação, essa familiaridade carinhosa é
natural. Mas, por vezes, algo desse interesse íntimo recai até mesmo
sobre o inimigo, se não é temido em demasia.
As metas que a malta se fixa são sempre as mesmas. A repetição
infinda, própria de todas as atividades vitais do homem, caracteriza
também as suas maltas. A determinação e a repetição conduziram aí a
formações de enorme constância. É essa constância, o fato de estarem
sempre prontas e à disposição, que possibilita o emprego das maltas em
civilizações mais complexas. Na qualidade de cristais de massa, são
empregados repetidamente, onde quer que se trate de produzir massas
com rapidez.
Mas muito do que há de arcaico em nossas culturas modernas
expressa-se também sob a forma da malta. É precisamente esse o teor
do anseio por uma vida simples ou natural, por um desligamento das
pressões e exigências crescentes do nosso tempo: trata-se do desejo de
viver em maltas isoladas. As caças à raposa na Inglaterra, as viagens
oceânicas em barcos pequenos e escassamente tripulados, os retiros
espirituais em conventos, as expedições a terras desconhecidas e mesmo
o sonho de, juntamente com uns poucos, viver em meio a uma natureza
paradisíaca, onde, por assim dizer, tudo se multiplica por si só, sem
nenhum esforço por parte do homem — todas essas situações arcaicas
têm em comum a ideia de um número reduzido de pessoas que se
conhecem bem umas às outras e participam conjuntamente de uma
empreitada clara e inequívoca, bastante bem determinada ou
delimitada.
Uma forma desavergonhada da malta tem-se ainda hoje em todo e
qualquer ato de justiça por linchamento. A expressão é tão descarada
quanto aquilo que ela designa, pois trata-se aí, na verdade, de uma
supressão da justiça. Não se considera digna dela a pessoa inculpada. Tal
pessoa deve morrer feito um animal, sem direito a nenhuma das
formalidades usuais entre os homens. A diversidade de sua aparência e
conduta, o abismo que, para os assassinos, os separa de sua vítima,
torna-lhes mais fácil tratá-la como um animal. Quanto mais
longamente ela fugir deles, tanto mais avidamente eles se transformarão
numa malta. Um homem forte e saudável, um bom corredor, propicia
lhes a oportunidade para uma caçada, oportunidade esta que agarram
com prazer. Por sua própria natureza, tais caçadas não podem ser muito
frequentes; a raridade aumenta-lhes o encanto. As crueldades que os
homens se permitem no ato do linchamento explicam-se possivelmente
pelo fato de não poderem eles devorar sua vítima. Provavelmente,
veem-se como homens porque não cravam nela os dentes.
A acusação de natureza sexual, na qual esse tipo de malta tem amiúde
seu ponto de partida, transforma a vítima num ser perigoso. Imagina-se
o crime real ou suposto que cometeu. A união de um homem negro a
uma mulher branca; a imagem da proximidade corporal entre ambos
enfatiza-lhes a diferença aos olhos dos vingadores. A mulher faz-se cada
vez mais branca, assim como o homem torna-se cada vez mais negro.
Ela é inocente, pois, sendo homem, ele é mais forte. Se ela consentiu no
ato, é porque foi enganada pela força superior do homem. É a ideia
dessa superioridade que se a figura insuportável aos vingadores e os
compele a unirem-se contra ele. Na qualidade de um animal feroz —
afinal, atacou uma mulher —, ele é acossado e morto conjuntamente.
Seu assassinato afigura-se lícito e imperioso aos vingadores,
proporcionando-lhes franca satisfação.
continua página 181...
____________________
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
____________________
Leia também:
Massa e Poder - A Malta: A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica
____________________
ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
Nenhum comentário:
Postar um comentário