terça-feira, 15 de julho de 2025

Massa e Poder - A Malta: A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica

Elias Canetti

A MALTA

      A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica

     As pessoas conhecem o morto cuja perda lamentam. Somente aqueles que lhe eram próximos ou sabem exatamente quem ele é têm o direito de juntar-se à malta de lamentação. A dor aumenta na proporção da familiaridade que se tinha com ele. Os que o conheciam melhor são os que se lamentam com maior veemência. O ápice da lamentação cabe à mãe de cujo ventre ele proveio. Não se guarda luto pela morte de estranhos. Em sua origem, a malta de lamentação não podia formar-se em torno de qualquer um.
     Contudo, essa determinação em relação a seu objeto caracteriza todas as maltas. Não se trata apenas de os pertencentes a uma malta conhecerem-se bem uns aos outros: eles conhecem sua meta também. Quando estão caçando, sabem do que estão atrás. Quando guerreiam, conhecem muito bem o inimigo. Na lamentação, sua dor tem por objeto um morto que sabem muito bem quem é. E, nos ritos de multiplicação, sabem com idêntica precisão o que deve multiplicar-se.
     A malta é de uma determinação imutável e assustadora. Essa determinação, porém, possui também um elemento de familiaridade. Um carinho singular por sua presa é inegável nos caçadores primitivos. Na lamentação e na multiplicação, essa familiaridade carinhosa é natural. Mas, por vezes, algo desse interesse íntimo recai até mesmo sobre o inimigo, se não é temido em demasia.
     As metas que a malta se fixa são sempre as mesmas. A repetição infinda, própria de todas as atividades vitais do homem, caracteriza também as suas maltas. A determinação e a repetição conduziram aí a formações de enorme constância. É essa constância, o fato de estarem sempre prontas e à disposição, que possibilita o emprego das maltas em civilizações mais complexas. Na qualidade de cristais de massa, são empregados repetidamente, onde quer que se trate de produzir massas com rapidez.
     Mas muito do que há de arcaico em nossas culturas modernas expressa-se também sob a forma da malta. É precisamente esse o teor do anseio por uma vida simples ou natural, por um desligamento das pressões e exigências crescentes do nosso tempo: trata-se do desejo de viver em maltas isoladas. As caças à raposa na Inglaterra, as viagens oceânicas em barcos pequenos e escassamente tripulados, os retiros espirituais em conventos, as expedições a terras desconhecidas e mesmo o sonho de, juntamente com uns poucos, viver em meio a uma natureza paradisíaca, onde, por assim dizer, tudo se multiplica por si só, sem nenhum esforço por parte do homem — todas essas situações arcaicas têm em comum a ideia de um número reduzido de pessoas que se conhecem bem umas às outras e participam conjuntamente de uma empreitada clara e inequívoca, bastante bem determinada ou delimitada.
     Uma forma desavergonhada da malta tem-se ainda hoje em todo e qualquer ato de justiça por linchamento. A expressão é tão descarada quanto aquilo que ela designa, pois trata-se aí, na verdade, de uma supressão da justiça. Não se considera digna dela a pessoa inculpada. Tal pessoa deve morrer feito um animal, sem direito a nenhuma das formalidades usuais entre os homens. A diversidade de sua aparência e conduta, o abismo que, para os assassinos, os separa de sua vítima, torna-lhes mais fácil tratá-la como um animal. Quanto mais longamente ela fugir deles, tanto mais avidamente eles se transformarão numa malta. Um homem forte e saudável, um bom corredor, propicia lhes a oportunidade para uma caçada, oportunidade esta que agarram com prazer. Por sua própria natureza, tais caçadas não podem ser muito frequentes; a raridade aumenta-lhes o encanto. As crueldades que os homens se permitem no ato do linchamento explicam-se possivelmente pelo fato de não poderem eles devorar sua vítima. Provavelmente, veem-se como homens porque não cravam nela os dentes.
      A acusação de natureza sexual, na qual esse tipo de malta tem amiúde seu ponto de partida, transforma a vítima num ser perigoso. Imagina-se o crime real ou suposto que cometeu. A união de um homem negro a uma mulher branca; a imagem da proximidade corporal entre ambos enfatiza-lhes a diferença aos olhos dos vingadores. A mulher faz-se cada vez mais branca, assim como o homem torna-se cada vez mais negro. Ela é inocente, pois, sendo homem, ele é mais forte. Se ela consentiu no ato, é porque foi enganada pela força superior do homem. É a ideia dessa superioridade que se a figura insuportável aos vingadores e os compele a unirem-se contra ele. Na qualidade de um animal feroz — afinal, atacou uma mulher —, ele é acossado e morto conjuntamente. Seu assassinato afigura-se lícito e imperioso aos vingadores, proporcionando-lhes franca satisfação.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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