O Apanhador no Campo de Centeio
J.D. Salinger
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Cheguei lá cedo demais e, por isso, me sentei num daqueles sofás de couro, bem pertinho do relógio do saguão, e fiquei olhando as garotas. Muita gente já tinha chegado de férias e acho que havia mais ou menos um milhão de pequenas por ali, sentadas ou em pé esperando os namorados. Garotas de pernas cruzadas, garotas de pernas descruzadas, garotas com pernas fabulosas, garotas com pernas pavorosas, garotas que pareciam boazinhas, garotas que, se a gente fosse conhecer, ia ver que eram umas safadas. Era realmente uma paisagem interessante. De certo modo, também era meio deprimente, porque a gente ficava pensando no que ia acontecer com todas elas. Quer dizer, depois que terminassem o ginásio e a faculdade. A maioria ia provavelmente casar com uns bobalhões. Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina. Sujeitos que ficam doentes de raiva, igualzinho umas crianças, se perdem no golfe ou até mesmo num jogo besta como pingue-pongue. Sujeitos que são um bocado perversos. Sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro. Mas é preciso ter cuidado com isso, com essa mania de chamar certos caras de chatos. Não entendo bem os chatos. Juro que não. No Elkton Hills, durante uns dois meses fui companheiro de quarto dum garoto, o Harris Macklin. Ele era muito inteligente e tudo, mas era um dos maiores chatos que já encontrei na minha vida. Tinha uma dessas vozes de taquara rachada e praticamente não parava nunca de falar. Não havia jeito de se calar, e o pior de tudo é que, em primeiro lugar, nunca dizia uma única coisa que a gente tivesse interesse em ouvir. Mas tinha uma coisa que ele fazia como ninguém: o filho da puta assoviava como gente grande. Ele ficava fazendo a cama ou pendurando seus trecos no armário - vivia pendurando alguma coisa no armário, me deixava maluco - e, quando não estava tagarelando com aquela voz de taquara rachada, ficava assoviando o tempo todo. Ele era capaz de assoviar até troços clássicos, mas quase sempre assoviava músicas de jazz. Era capaz de pegar um negócio em como, por exemplo, "Tin Roof Blues", e assoviar tão fácil e bonito - sem parar de pendurar os trecos no armário - que deixava a gente doido. Claro que eu nunca disse a ele que o achava um assoviador fabuloso. Ninguém vai chegar junto de um cara e dizer: "Você é um assoviador fabuloso". Mas morei com ele uns dois meses, apesar de toda a chatura, só porque ele assoviava bem pra burro. Por isso, tenho minhas dúvidas quanto aos chatos. Talvez a gente não deva sentir tanta pena de ver uma garota legal se casar com um deles. A maioria não faz mal a ninguém e talvez, sem que a gente saiba, sejam todos uns assoviadores fabulosos ou coisa parecida. Nunca se sabe...
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Cheguei lá cedo demais e, por isso, me sentei num daqueles sofás de couro, bem pertinho do relógio do saguão, e fiquei olhando as garotas. Muita gente já tinha chegado de férias e acho que havia mais ou menos um milhão de pequenas por ali, sentadas ou em pé esperando os namorados. Garotas de pernas cruzadas, garotas de pernas descruzadas, garotas com pernas fabulosas, garotas com pernas pavorosas, garotas que pareciam boazinhas, garotas que, se a gente fosse conhecer, ia ver que eram umas safadas. Era realmente uma paisagem interessante. De certo modo, também era meio deprimente, porque a gente ficava pensando no que ia acontecer com todas elas. Quer dizer, depois que terminassem o ginásio e a faculdade. A maioria ia provavelmente casar com uns bobalhões. Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina. Sujeitos que ficam doentes de raiva, igualzinho umas crianças, se perdem no golfe ou até mesmo num jogo besta como pingue-pongue. Sujeitos que são um bocado perversos. Sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro. Mas é preciso ter cuidado com isso, com essa mania de chamar certos caras de chatos. Não entendo bem os chatos. Juro que não. No Elkton Hills, durante uns dois meses fui companheiro de quarto dum garoto, o Harris Macklin. Ele era muito inteligente e tudo, mas era um dos maiores chatos que já encontrei na minha vida. Tinha uma dessas vozes de taquara rachada e praticamente não parava nunca de falar. Não havia jeito de se calar, e o pior de tudo é que, em primeiro lugar, nunca dizia uma única coisa que a gente tivesse interesse em ouvir. Mas tinha uma coisa que ele fazia como ninguém: o filho da puta assoviava como gente grande. Ele ficava fazendo a cama ou pendurando seus trecos no armário - vivia pendurando alguma coisa no armário, me deixava maluco - e, quando não estava tagarelando com aquela voz de taquara rachada, ficava assoviando o tempo todo. Ele era capaz de assoviar até troços clássicos, mas quase sempre assoviava músicas de jazz. Era capaz de pegar um negócio em como, por exemplo, "Tin Roof Blues", e assoviar tão fácil e bonito - sem parar de pendurar os trecos no armário - que deixava a gente doido. Claro que eu nunca disse a ele que o achava um assoviador fabuloso. Ninguém vai chegar junto de um cara e dizer: "Você é um assoviador fabuloso". Mas morei com ele uns dois meses, apesar de toda a chatura, só porque ele assoviava bem pra burro. Por isso, tenho minhas dúvidas quanto aos chatos. Talvez a gente não deva sentir tanta pena de ver uma garota legal se casar com um deles. A maioria não faz mal a ninguém e talvez, sem que a gente saiba, sejam todos uns assoviadores fabulosos ou coisa parecida. Nunca se sabe...
Afinal, avistei a Sally subindo a escada e comecei a descer para encontrá-la. Ela estava um estouro. No
duro, mesmo. Estava com um casaco preto e uma espécie de boina preta. Ela quase nunca usava chapéu, mas
aquela boina ficava cem por cento. O mais engraçado é que, na hora que a vi, me deu uma bruta vontade de
casar com ela. Sou biruta. Nem ao menos gostava muito dela e, apesar disso, de repente, me senti como se
estivesse apaixonado e quisesse casar com ela. Juro por Deus que sou biruta. Reconheço.
- Holden! - ela gritou. - Que bom te encontrar! Faz séculos que não nos vemos!
Ela tinha uma dessas vozes altas pra chuchu, que encabulam a gente. Podia dar-se ao luxo de fazer
aquele escândalo porque era mesmo bonita pra cachorro, mas aquela maneira de falar sempre me aporrinhava.
- Que bom encontrar com você - falei. Era verdade mesmo. - Como vai você?
- Maravilhosamente bem. Estou atrasada?
Disse que não, mas, para falar a verdade, ela estava atrasada uns dez minutos. Mas eu estava pouco
ligando para isso. Toda aquela besteira que vem nas piadas do "Saturday Evening Post" e tudo, mostrando uns
caras esperando pela namorada na esquina, furiosos porque ela está atrasada - isso é tudo conversa fiada. Se
uma garota está bonita quando chega, qual é o sujeito que vai se importar por causa do atraso? Ninguém se
importa.
- É melhor a gente andar depressa - falei. - A peça começa às duas e quarenta.
Começamos a descer as escadas em direção ao ponto de táxis.
- O que é que nós vamos ver? - ela perguntou.
- Sei lá. Os Lunts. Só consegui arranjar entrada para eles.
- Os Lunts! Oh, que maravilhoso!
Tinha certeza que ela ia ficar maluca quando soubesse que ia ver os Lunts.
Ficamos nos esfregando um pouco no táxi, a caminho do teatro. No começo ela não queria, por causa do
baton e tudo, mas eu estava sedutor pra diabo e ela não teve outra alternativa. Duas vezes, quando a porcaria
do táxi teve que frear de repente, por causa do tráfego, por pouco não caí do assento. Essas drogas desses
motoristas nunca olham por onde vão, palavra de honra. Aí, só mesmo de doido que eu sou, quando
estávamos saindo dum apertão daqueles, eu disse a ela que estava apaixonado e tudo. Claro que era mentira,
mas o caso é que eu estava sendo sincero na hora que falei. Sou louco mesmo. Juro que sou.
- Meu querido, também gosto muito de você - ela disse. E aí engrenou uma segunda: - Me promete que
vai deixar teu cabelo crescer. Esse cabelo à escovinha está ficando fora de moda. E teu cabelo é tão bonito...
Bonito uma ova.
A peça não era tão ruim. Eu já tinha visto piores. Mas era meio morrinha. Era a estória de uns
quinhentos mil anos na vida de um casal velho. Começa quando os dois são jovens e os pais da moça são
contra o casamento, mas ela acaba mesmo casando com o cara. E aí eles vão envelhecendo. O marido vai
para a guerra e a mulher tem um irmão que é porrista. Não consegui me interessar muito. Quer dizer, não dei
muita bola quando morria alguém na família ou coisa que o valha. Eles eram apenas um bando de atores. O
marido e a mulher até que formavam um casal simpático - os dois eram muito espirituosos e tudo - mas não
consegui me interessar muito por eles. Em parte porque ficaram a peça inteirinha tomando chá ou coisa
parecida. Toda vez que apareciam, lá vinha um mordomo empurrando um carrinho de chá para eles, ou então
a mulher estava servindo chá a alguém. E todo o mundo estava sempre entrando ou saindo o tempo todo. A
gente ficava tonto só de ver o pessoal se sentar e se levantar. O Alfred Lunt e a Lynn Fontanne faziam o
papel do casal velho e trabalhavam muito bem, mas não gostei muito deles. Que eles eram diferentes, isso
eram. Não agiam feito gente, mas não representavam como atores. É difícil de explicar. Agiam assim como
se soubessem que eram famosos e tudo. Quer dizer, eram bons, mas eram bons demais. Quando um deles
acabava de dizer sua parte, imediatamente o outro tratava de falar alguma coisa bem depressa. Queriam
parecer gente de verdade, conversando e se interrompendo e tudo. Mas o problema é que pareciam demais
com gente conversando e se interrompendo. Era um pouco como o Ernie tocando lá no Village. Se a gente
faz uma coisa bem demais, aí, depois de algum tempo, se não tiver muito cuidado, começa a se exibir. E aí a
gente deixa de ser bom de verdade. De qualquer modo, eles eram as únicas pessoas na peça - os Lunts, é
claro - que pareciam ter algum miolo. Isso eu tenho que admitir.
No fim do primeiro ato, saímos com todos os outros trouxas para fumar um cigarro. Uma palhaçada
completa. Nunca vi tanto cretino junto de uma vez só, todos fumando como umas chaminés e falando alto
sobre a peça para que os outros vissem como eles eram inteligentes. O bestalhão de um artista de cinema
estava fumando perto de nós. Não sei o nome dele, mas é o tal que faz sempre o papel dum cara que, na
guerra, se borra todo de medo na hora de enfrentar o fogo. Estava com uma loura do barulho, e os dois
estavam tentando bancar o blasé e tudo, como se não soubessem que todo mundo estava olhando para ele.
Modesto pra burro. Me diverti um bocado com a estória. A Sally não falou muito, a não ser para se babar
com os Lunts, porque estava ocupada em achar tudo bacana e em ser simpática. Aí, de repente, descobriu do
outro lado do saguão um imbecil qualquer que ela conhecia. O cara estava de terno de flanela cinza-escuro e
um desses coletes de xadrez. Completamente metido a besta. Crente que estava abafando. Ele estava
encostado na parede, fumando pra chuchu, dando a impressão de que estava mortalmente aporrinhado. A
Sally ficou repetindo: "Conheço aquele rapaz de algum lugar". Ela sempre conhecia alguém, em qualquer
lugar que estivesse, ou pelo menos pensava que conhecia. Ficou repetindo tanto, que me enchi e disse:
- Se conhece, porque não vai até lá e dá um beijinho nele? Aposto que ele vai gostar.
Ela ficou furiosa comigo. Finalmente, o bobalhão nos viu e veio cumprimentá-la. Valia a pena ver os
dois se cumprimentando. Parecia até que não se viam há uns vinte anos. Parecia até que os dois tomavam
banho juntos, na mesma banheira, quando eram crianças. Velhos faixas. Era nojento. O mais engraçado é
que eles, provavelmente, só se haviam encontrado uma única vez, em alguma festa cretina. Afinal, quando
deram a baboseira por terminada, a Sally resolveu me apresentar. O nome do cara era George qualquer coisa - nem me lembro - e estudava no Andover. Grande coisa. Dava gosto ver a cara do sujeito quando a Sally
pediu a opinião dele sobre a peça. Tratava-se de um desses cretinos que precisam de espaço quando
começam a falar. Deu um passo para trás e pisou em cheio no pé de uma dona que estava bem ali. Acho que
não sobrou um dedo inteiro no pé da infeliz. Disse que a peça em si não era nenhuma obra-prima, mas os
Lunts, evidentemente, eram uns anjos. Anjos, pomba! Anjos. Era o fim. Aí, ele e a Sally começaram a falar
de uma porção de gente que os dois conheciam. Era a conversa mais cretina do mundo. Ficavam pensando
no nome dum lugar, o mais depressa que podiam, e então soltavam o nome de alguém que morava no tal
lugar. Eu estava a ponto de vomitar quando chegou a hora de sentar outra vez. Estava mesmo. E então,
quando acabou o segundo ato, os dois continuaram a tal conversa morrinha. Ficaram pensando em outros
lugares e outros nomes de pessoas que moravam lá. Para piorar, o palhação tinha uma dessas vozes bem
cretinas e pedantes, como se estivesse cansado pra burro. Parecia uma moça, com aquela voz de fresco. Mas
o filho da mãe não teve o menor escrúpulo de se meter com minha pequena. Quando saímos do teatro pensei
até que ele ia entrar conosco na droga do táxi, porque andou uns dois quarteirões com a gente, mas acabou
dizendo que tinha de tomar uns drinques com uma turma de cretinos. Imaginei os caras sentados num bar,
cada um metido numa droga dum colete xadrez, comentando peças, livros e mulheres com aquelas vozes
cansadas e esnobes. Esses caras me enchem.
Quando tomamos o táxi, depois de ouvir aquele filho da mãe do Andover bem umas dez horas seguidas,
eu já estava odiando a Sally. Estava decidido a levá-la para casa - estava mesmo - quando ela disse:
- Tenho uma ideia maravilhosa!
Ela vivia tendo ideias maravilhosas.
- Escuta. A que horas você precisa estar em casa para jantar? Você está com muita pressa? Tem hora
certa para chegar em casa? - ela continuou.
- Eu? Não. Não tenho hora certa - respondi. Puxa, nunca falei uma coisa mais verdadeira na minha
vida. - Por quê?
- Vamos patinar no gelo na Radio City?
Esse era o tipo de ideia maravilhosa que ela vivia tendo.
- Patinar na Radio City? Agora? Agorinha mesmo?
- Só uma hora, mais ou menos. Você não quer? Se não quiser...
- Não disse que não queria. Claro. Se você quer...
- Verdade? Não precisa dizer sim só para me agradar. Francamente, ir ou não ir é a mesmíssima coisa
para mim.
A mesmíssima coisa uma ova.
- A gente pode alugar aqueles amores de saiotes de patinar - ela disse. - A Jeannette Cultz alugou um, na
semana passada.
Era por isso que ela estava tão seca para ir. Estava louca para se ver num daqueles saiotinhos que mal
dão para cobrir a bundinha e tudo.
E lá fomos nós. Depois que nos deram os patins, entregaram à Sally um saiotinho azul justíssimo. Para
falar a verdade, ela ficou ótima com aquilo. E o pior é que ela sabia. Ficou o tempo todo andando na minha
frente, para que eu visse como a bundinha dela era bonitinha. E era bonitinha mesmo. Confesso que era.
O mais gozado é que nós dois éramos os piores patinadores na droga do ringue. Mas os piores mesmo.
E olha que tinha cada cara ruim... Os tornozelos da Sally se entortavam tanto que só faltavam encostar no
gelo. Não só tinham uma aparência grotesca, mas também deviam estar doendo pra burro. Sei que os meus
estavam. Os meus estavam acabando comigo. Nós devíamos estar uma gracinha. Para piorar ainda mais,
tinha no mínimo uns duzentos desocupados sem nada de melhor para fazer do que ficar ali parados, vendo a
gente cair uns por cima dos outros.
- Vamos sentar numa mesa lá dentro e tomar um troço qualquer? - perguntei finalmente.
- Foi a ideia mais maravilhosa que você teve hoje - ela disse. A infeliz estava se matando. Era de doer.
Juro que tive pena dela.
Tiramos a porcaria dos patins e fomos para aquele bar onde a gente pode tomar uma bebida e espiar os
patinadores, só de meias nos pés. Assim que sentamos, a Sally tirou as luvas e eu lhe dei um cigarro. Ela não
estava com cara de muito feliz. Veio o garçon e eu pedi uma Coca-Cola para ela - ela não bebia - e um uísque
com soda para mim, mas o sacana não quis trazer, e então eu pedi uma coca para mim também. Aí comecei a
riscar fósforos. Eu faço muito isso, quando estou num certo estado de espírito. Deixo o fósforo queimar até
eu não poder mais segurar, e então jogo no cinzeiro. É um tique nervoso.
Aí, de repente, sem mais nem menos, a Sally disse:
- Escuta, preciso saber de uma coisa. Você vem ou não vem me ajudar a arrumar a árvore de Natal?
Preciso saber.
Estava sendo malcriada, ainda por causa dos tornozelos.
- Escrevi dizendo que ia. Você já me perguntou esse troço umas vinte vezes. Vou, sim, já disse.
- Preciso saber mesmo - ela falou.
Começou a olhar em volta da porcaria do salão. De repente, parei de acender fósforos e me debrucei
sobre a mesa, na direção dela. Eu tinha uns assuntos na cachola.
- Êi, Sally - falei.
- O que é? - ela perguntou. Estava olhando para uma garota do outro lado da sala.
- Você já se sentiu alguma vez cheia de tudo? - perguntei. - Quer dizer, você alguma vez na vida já ficou
com medo de que tudo vai dar errado, a menos que você faça alguma coisa? Quer dizer, você gosta do
colégio e desse negócio todo?
- É uma chatice.
- Quer dizer, você detesta o colégio? Sei que é uma chatice, mas estou perguntando se você detesta
mesmo.
- Bem, detestar mesmo, não detesto. Você vive sempre...
- Bom, eu odeio a escola. Pôxa, como detesto o troço - falei. - E não é só isso. É tudo. Detesto viver em
Nova York e tudo. Táxis, ônibus da Avenida Madison, com os motoristas gritando sempre para a gente sair
pela porta de trás, e ser apresentado a uns cretinos que chamam os Lunts de anjos, e subir e descer em
elevadores quando a gente só quer sair, e os sujeitos ajustando as roupas da gente nas lojas, e as pessoas
sempre...
- Não grita, por favor - Sally falou. O que era muito engraçado, porque eu nem estava gritando.
- Os carros, por exemplo - eu disse. E falei numa voz muito calma. - A maioria das pessoas, são todos
malucos por carros. Ficam preocupados com um arranhãozinho neles, e estão sempre falando de quantos
quilômetros fazem com um litro de gasolina e, mal acabam de comprar um carro novo, já estão pensando em
trocar por outro mais novo ainda. Eu não gosto nem de carros velhos. Quer dizer, nem me interesso por eles.
Eu preferia ter uma droga dum cavalo. Pelo menos o cavalo é humano, pôxa. Pelo menos, o cavalo você
pode...
- Não sei nem de que é que você está falando. Você pula de uma coisa...
- Sabe de um troço? - perguntei. - Só estou agora aqui em Nova York por tua causa. Se você não
estivesse por aqui, eu provavelmente estaria numa porcaria dum lugar qualquer, lá pro fim do mundo. No
mato ou em qualquer outra droga de lugar. Praticamente só estou aqui por tua causa.
- Você é um amor - ela disse. Mas via-se que ela estava querendo que eu mudasse de assunto.
- Você devia ir a um colégio de rapazes, só pra ver. Experimenta só - falei. - Estão entupidos de
cretinos, e você só faz estudar bastante para poder um dia comprar uma droga dum cadilaque, e você é
obrigado a fingir que fica chateado se o time de futebol perder, e só faz falar de garotas e bebida e sexo o dia
inteiro, e todo mundo forma uns grupinhos nojentos. Os caras do time de basquete formam um grupinho, os
camaradas que jogam bridge formam um grupinho. Até os que são sócios da porcaria do Clube do Livro
formam um grupinho. Se você tenta bater um papo inteligente...
- Escuta aqui - ela disse. - Muitos rapazes encontram mais do que isso no colégio.
- Concordo! Concordo, alguns deles encontram mesmo. Mas eu só encontro isso. Compreendeu? Esse
é que é o caso. É exatamente o meu problema. Não encontro praticamente nada em nada. Estou mal de vida.
Estou péssimo.
- E está mesmo.
Aí, de repente, tive uma ideia.
- Olha aqui - falei. - Escuta a minha ideia. Que tal a gente dar o fora? Escuta só minha ideia. Conheço
um camarada que mora lá em Greenwich Village que pode me emprestar o carro dele por uns quinze dias. Ele
era meu colega na escola, até hoje me deve dez dólares. Podíamos fazer o seguinte: podíamos sair em direção
a Massachusetts e Vermont, amanhã de manhã, e por aí tudo, sabe. É bonito pra burro por lá. É mesmo.
Quanto mais pensava no troço, mais excitado ficava, e cheguei a me esticar e pegar a droga da mão da
Sally. Que idiota que eu era.
- Fora de brincadeira - continuei. - Tenho uns 180 dólares no banco. Posso tirar o dinheiro amanhã,
quando o banco abrir, e então a gente vai e pega o carro dele. Fora de brincadeira. Vamos ficar numa
daquelas casinhas de campo e tudo, até acabar o dinheiro. Aí então, quando terminar a grana, posso arranjar
um emprego e nós vamos viver num lugar qualquer, com um riacho, e depois a gente pode se casar e tudo. Eu
mesmo ia rachar a lenha no inverno. Palavra de honra, ia ser bom mesmo! Quê que você acha? Vambora!
Que tal? Você vem comigo! Por favor!
- A gente não pode fazer uma coisa dessas - ela disse. Parecia danada da vida.
- Por que não? Por quê que não pode?
- Para de gritar comigo, por favor - ela falou, mas era conversa, porque eu nem estava gritando com ela
nem nada.
- Por quê que não pode? Hem? Por quê?
- Porque não pode, só por isso. Em primeiro lugar, praticamente ainda somos crianças. E você já parou
para pensar no quê que ia acontecer se você não arranjasse um emprego quando o dinheiro acabasse? Íamos
morrer de fome. Esse negócio todo é tão maluco, que nem é...
- Não vejo nada de maluco. Eu arranjava um emprego, não se preocupe com isso. Não precisa se
preocupar com isso. Quê que há? Não quer ir comigo? Se não quiser, diz logo.
- Não é isso. Não é isso, absolutamente.
De certa maneira, eu já estava começando a ficar com raiva dela.
- Nós vamos ter um mundo de tempo para fazer essas coisas, todas essas coisas. Quer dizer, depois que
você acabar a universidade e tudo, e se a gente se casar. Vai ter um mundo de lugares maravilhosos para a
gente ir. Você está...
- Não, não vai ter mundo nenhum de lugares maravilhosos para a gente ir. Ia ser completamente
diferente - falei. Estava começando novamente a ficar deprimido como o diabo.
- O quê? - ela perguntou. - Não estou ouvindo direito. Uma hora você grita, na outra você...
- Eu disse que não, que não vai ter lugar maravilhoso nenhum para se ir, depois que eu terminar a
universidade e tudo. Vê se escuta direito. Ia ser completamente diferente. Teríamos que descer de elevador,
com as malas e a tralha toda. Íamos ter que telefonar para todo mundo, dizendo "até à volta", e mandar cartões
postais dos hotéis e tudo. E eu estaria trabalhando em algum escritório, ganhando um dinheirão, e indo para o
trabalho de táxi ou nos ônibus da Avenida Madison, e lendo jornais, e jogando bridge o tempo todo, e indo ao
cinema, e vendo uma porção de documentários idiotas e traillers e jornais. Jornais cinematográficos. Puxa
vida. Tem sempre uma corrida de cavalos imbecil, e uma dona quebrando uma garrafa no casco de um navio,
e um chipanzé andando numa droga duma bicicleta, vestido de calças. Não ia ser a mesma coisa nem um
pouquinho. Você não entendeu nada do que eu falei.
- Talvez não! Talvez nem você também entenda - ela respondeu. Já estávamos um com raiva do outro.
Estava na cara que não adiantava tentar uma conversa inteligente. Eu estava danado de ter começado o troço.
- Vamos, vambora daqui - falei. - Pra falar a verdade, você enche o meu saco.
Pôxa, ela foi bater lá no teto quando eu disse isso. Sei que não devia ter dito, e provavelmente não teria
dito em outra situação, mas ela estava me fazendo ficar tremendamente deprimido. Em geral, nunca digo esse
tipo de coisa a uma garota. Pôxa, ela subiu a serra. Eu me desculpei como um doido, mas ela não quis aceitar
minhas desculpas. Estava até chorando. Isso me deixou meio apavorado, porque fiquei com medo que ela
fosse para casa e contasse ao pai que eu tinha dito que ela enchia meu saco. O pai dela era um daqueles filhos da mãe enormes e caladões, e nunca tinha ido muito com a minha cara. Ele uma vez disse a Sally que eu era
muito barulhento.
- Fora de brincadeira. Me desculpe - eu continuava a repetir.
- Desculpe. Desculpe. É muito engraçado - ela disse. Ela ainda estava meio chorando e, de repente,
acho que me senti arrependido mesmo de ter dito aquilo.
- Vambora. Vou te levar em casa. Fora de brincadeira.
- Sei ir pra casa sozinha, muito obrigada. Se pensa que vou deixar você me levar em casa, está louco.
Nenhum rapaz nunca me disse isso em toda a minha vida.
Pensando bem, o negócio todo era de certo modo meio cômico e, de repente, fiz uma coisa que não
devia ter feito. Ri. E eu tenho uma dessas gargalhadas imbecis, altas pra burro. Dessas assim que, se eu
sentasse atrás de mim num cinema ou coisa parecida, eu provavelmente me debruçaria e diria a mim mesmo
para fazer o favor de calar a boca. A Sally ficou ainda mais danada.
Fiquei por ali algum tempo, pedindo desculpas e tentando fazer com que ela me desculpasse, mas não
houve jeito. Continuava a me dizer para ir embora e deixá-la em paz. Acabei fazendo isso mesmo. Fui lá
dentro, apanhei meus sapatos e meus trecos, e fui embora sem ela. Não devia ter feito isso, mas nessas alturas
eu já estava mesmo cheio.
Para ser franco, nem sei porque comecei aquela história toda com ela. Quer dizer, aquele troço de ir para
algum canto, para Massachusetts e Vermont e tudo. Provavelmente não a levaria comigo, nem que ela
quisesse. Ela não era o tipo de garota que valesse a pena levar para um negócio daqueles. Mas o pior de tudo
é que eu estava falando sério na hora que fiz o convite. Isso é que é o pior. Juro por Deus que sou maluco.
continua na página 56...
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O Apanhador no Campo de Centeio - 17: Cheguei lá cedo demais
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