terça-feira, 1 de julho de 2025

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXXV - Sganarelo

Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA


O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos


DISPERSAS 

SGANARELO 

Esse que eu agora rimo 
É viscoso como a lesma 
Pegajosa sobre o limo, 
Sinistro como aventesma.

Feia coisa, enorme bicho, 
Pavoroso mastodonte 
Feito do horror a capricho, 
Com cornos rijos na fronte.

Todo o ventre se lhe estufa 
De obesidade lasciva, 
e fala a voz urra e bufa 
Lembrando a locomotiva.

Na terrível carantonha 
Retorcida, escalavrada, 
Lhe estruge, às vezes medonha, 
Formidável gargalhada.

E à luz do sol, que corusca, 
Nas praças, à luz do dia, 
A sua presença brusca 
Tem uma ardente ironia.

A língua rubra e convulsa 
Sai-lhe da boca em espasmo, 
Enquanto no olhar lhe pulsa 
A blasfêmia do sarcasmo.

Capra figura profunda, 
Atroz e amedrontadora, 
Que larga entranha fecunda 
Foi a tua geradora?! 

Que aborto de ventre estranho 
Pode gerar esse aborto 
Assim feroz e tamanho, 
Peludo, estroncado e torto?

De que idades tão antigas, 
Pré-históricas vieste? 
Mais hostil do que as urtigas, 
Mais nefando de que a peste! 

Trazes a pata esmagante, 
A pata do bronze trazes; 
Que é no espírito diamante 
E que é nas almas lilases. 

Possuis o sangue da verve 
Resplandecente, infinita, 
Que ruge, palpita e ferve 
E canta e soluça e grita. 

Vens como imagem da Morte, 
Da Morte hedionda e nefasta, 
Das iras ao vento forte, 
Do desespero à vergasta. 

Desmancha-te em cabriolas 
De doido polichinelo, 
Que os teus membros lembrem molas 
Como um palhaço amarelo. 

Faz nos músculos esgrimas, 
Pula trapézios e barras 
E salta saltando estas rimas 
Que vão saltando bizarras. 

Acrobata da miséria 
Estica os nervos, estica 
E ri, ri tu da matéria 
Da gente fidalga e rica. 

És medonho?! isso que importa? 
Ri! mas ri alto na praça, 
Se a desgraça não foi morta, 
Ah! deixem rir a desgraça! 

Satanás sujo e potrudo 
Nas cambalhotas te inspire. 
Eia! vá! desdém por tudo, 
Por tudo, e o tempo que gire! 

Faz que o século se agite 
De eternas risadas grossas 
E como com dinamite 
Arromba o mundo com troças. 

Fura o estúrdio Sancho Pança 
Com estocadas de riso 
E mete-o também na dança 
Dos saltos, se for preciso. 

Destrói tudo, vai, desaba, 
De tudo faz estilhaços 
E a golpes de riso acaba 
Os erros córneos e crassos. 

Fura os ventres mais rotundos 
Com aguilhões de chacota 
E manda ao Mestre dos mundos 
Um exemplar da risota. 

Na tal luxúria gorducha, 
Na velha e calva luxúria 
Rebente risos em ducha, 
Com toda a sátira e fúria. 

Ri! até que se transforme, 
Ó rebelado do inferno! 
O riso num facho enorme 
Aceso no sol moderno! 

__________________

Leia também:
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXXV - Sganarelo
__________________________

De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.
__________________________

Organização e Estudo
Lauro Junkes
Presidente da Academia Catarinense de Letras
© Copyright 2008
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Projeto Gráfico, Editoração e Capa
ESPAÇO CRIAÇÃO ARQUITETURA DESIGN E COMPUTAÇÃO GRÁFICA LTDA.
www.espacoecriacao.com.br
Fone/Fax: (48) 3028.7799
Revisão Linguístico-Ortográfica
PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES
PROF. Dr. LAURO JUNKES
Impressão e Acabamento
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Formato
14 x 21cm

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167
S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898
                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)
                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.
                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.
                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1

"A gente só tem saída na poesia."

Nenhum comentário:

Postar um comentário