sábado, 19 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (10a) - Mas o príncipe não morreu

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

10.

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.     Mas o príncipe não morreu antes do casamento, aquele seu pressentimento, confiado a Evguénii Pávlovítch, de que morreria talvez até mesmo à noite, durante o sono, não se tendo realizado. Continuou dormindo pouco e assim mesmo com pesadelos; mas, de dia, no meio de gente, era amável e parecia sem preocupações, só se perdendo em cismas quando estava sozinho.
     O casamento fora apressado, já tendo sido fixado, devendo se realizar uma semana depois daquela visita de Evguénii Pávlovitch. Tal pressa embaraçaria seus melhores amigos, caso os tivesse, de salvar o “pobre maluco”.
     Ao que constava, o General Epantchín e senhora tinham sido, parcialmente, os responsáveis pela visita de Evguénii Pávlovitch. Mas, se na imensa bondade de seus corações, neles podiam desejar salvar o pobre lunático da ruína, era difícil ir além desse fraco esforço, a sua posição e mesmo a sua inclinação sendo incompatíveis com qualquer ação mais pronunciada.
     Já mencionamos aqui que muitos dos que formavam a roda do príncipe se opuseram a ele. Vera Liébedieva só teve o recurso de se fechar na solidão do cômodo que habitava, onde, por entre lágrimas, deixou o príncipe sem sua habitual assistência.
     Kólia estava nessa ocasião ocupado com os funerais do pai, pois o velho general viera morrer de um segundo ataque que lhe sobreveio oito dias após o primeiro. O príncipe, com a mais fervorosa simpatia, se associou ao luto da família, passando nos primeiros dias várias horas ao lado de Nina Aleksándrovna. Assistiu ao funeral e ao serviço na igreja. A muita gente não passou despercebido que a chegada e a saída dele, da igreja, dera lugar a sussurros entre a assistência que lá estava.
     Também nas ruas e no jardim, ao passar, mencionavam-lhe o nome, apontando-o, passando ele indiferente aos sussurros entre os quais se distinguia o nome de Nastássia Filíppovna. Cuidaram até que ela tivesse ido aos funerais, mas não a encontraram. Outra pessoa que primou pela ausência foi a viúva do capitão, impedida de tal desplante por Liébediev.
     A cerimônia do sepultamento causou aflitiva e forte impressão no príncipe que, em resposta a algumas perguntas de Liébediev, confessou que era a primeira vez que assistia a um funeral ortodoxo, apenas guardando vaga lembrança de um outro, na sua infância, na igreja da sua aldeia.

- Sim, nem parece que a pessoa que está no caixão seja a mesma que elegemos presidente ainda no outro dia, não é, príncipe? Por quem está o senhor procurando? 
- Oh! Ninguém. Pareceu-me... 
- Rogójin? 
- Por quê? Ele veio? 
- Sim, está lá dentro, na igreja. 
- Tive a impressão de haver visto os olhos dele. - Míchkin estava confuso. - Mas por que veio? Foi convidado? 
- Nem pensaram nele. Ora, não o conhecem, sequer! Veja que multidão! Há gente de toda espécie! Mas o senhor parece estar espantado? Agora dei para encontrar sempre Rogójin. Na semana passada o encontrei quatro vezes em Pávlovsk.  
- Pois eu, desde aquela vez.., nunca mais o vi - declarou o príncipe.

     O príncipe lá consigo concluíra, já que Nastássia Filíppovna, nem sequer uma só vez, desde aquela noite, lhe dissera ter visto Rogójin. que este se andava retraindo, de propósito. Todo aquele dia esteve o príncipe perdido em raciocínio, ao passo que Nastássia Filíppovna, tanto nesse dia como de noite, estivera excepcionalmente vivaz.
     Kólia, que havia feito as pazes com o príncipe antes da morte do pai, sugerira que devia escolher Keller e Burdóvskii para seus padrinhos (pois o casamento ia ser realizado com urgência e portanto precisava tê-los à mão). Garantira o bom comportamento de Keller e a sua provável serventia, não havendo sido necessário se referir a Burdóvskii, sabidamente uma pessoa quieta e sempre às ordens.
     Nina Aleksándrovna e Liébediev chegaram a fazer ver ao príncipe que, já que o casamento era coisa determinada, não precisava ser em Pávlovsk, em uma estação de verão, tão à vista. Sugeriram que isso se realizasse em casa, e, melhor ainda, em Petersburgo. Foi só então que o príncipe viu claramente o rumo que suas apreensões estavam tomando. Deu como resposta que não admitia comentários, e que esse era o desejo de Nastássia Filíppovna.
     Um dia depois da escolha, foi Keller chamado para falar ao prIncipe, sendo então informado que seria o seu “padrinho”. Ficou parado à entrada, e, mal avistou Míchkin, levantou a mão direita, com o dedo polegar afastado dos outros, e jurou, como fazendo um voto: - Não beberei mais!
     Depois se aproximou do príncipe, apertou-lhe calorosamente a mão, sacudindo-a e anunciou que, na verdade, quando ouvira falar nesse casamento, tomara atitude hostil imediata, desancando-o pelos bilhares, pois se antecipara ao príncipe na escolha, diariamente, com a impaciência de um amigo, desejando para ele, no altar, toda de branco, pelo menos uma princesa de Rohan! Mas agora via com os seus próprios olhos que Míchkin procurara e acertara pelo menos doze vezes mais do que todos os amigos juntos! Pois não se importara com pompa, riqueza ou conceito público, só se importando com a verdade! Que as simpatias das pessoas exalçadas eram demasiado bem conhecidas e que o príncipe era demasiado sublime por sua educação para não ser uma pessoa exalçada, falando de um modo geral.

- Mas a ralé, a gentalha, julga diferentemente; na cidade, nas casas, nas reuniões, nas vilas, nos banhos públicos, nas tavernas e nos bilhares não se fala de outra coisa, senão do próximo acontecimento. Já me chegou aos ouvidos, por exemplo, que estão preparando uma serenata ao jeito de vaia, debaixo da sua janela, e isso, a bem dizer, na noite do casamento. Se o senhor vier a precisar da pistola de um homem honesto, estou pronto a trocar uma dúzia de tiros, como cavalheiro, na madrugada seguinte às núpcias.

     Aconselhou também, como aviso prévio, já que na certa viria toda onda de almas imundas aglomerar-se diante da igreja, a se ter preparada a mangueira de jorrar água, diante da calçada. Mas Liébediev se opôs, temendo que o jorro da mangueira lhe derrubasse a casa.

- Este Liébediev está intrigando contra o senhor. príncipe, lá isso é que está. Queria pô-lo sob tutela quanto à sua liberdade e ao seu dinheiro, as duas coisas que distinguem cada um de nós de um quadrúpede! Ouvi, ouvi em boas fontes! É a santa verdade!

     Míchkin então se lembrou já lhe ter sido rosnada uma coisa assim, a que naturalmente não prestara atenção. Agora, desta vez, também simplesmente se riu e esqueceu de novo. Mas não havia dúvida que, de fato, Liébediev andara, por este tempo, muito ocupado. Os projetos deste homem nasciam de inspirações e, através do ardor com que se metia a ombro, se tornavam demasiado complexos desenvolvendo- se para lá de ramificações desde muito já afastadas do original ponto de partida. Essa a razão por que se atrapalhava em suas empresas.
     Quando, quase às vésperas do casamento, se dirigiu ao príncipe para expressar seu arrependimento (era um hábito dele vir expressar arrependimento àqueles contra os quais estivera intrigando, principalmente não tendo obtido êxito), declarou que nascera para ser um Talleyrand e não sabia como se tornar, um simples Liébediev. E então desvendara todo o seu jogo que escandalizou profundamente o príncipe. 
     Segundo a sua história, começara por procurar a ajuda de certas pessoas de importância, com cujo apoio pensou contar em caso de necessidade. Começara por procurar Iván Fiódorovitch. O general, embora perplexo, acreditou na boa-vontade do homem para com o príncipe, mas declarou que por mais que desejasse não lhe era possível agir nesse caso. Lizavéta Prokófievna não o quis ver nem escutar. Evguénii Pávlovitch e o Príncipe Chtch... simplesmente o despediram. 
     Mas Líébediev não era homem para perder assim a energia! E foi aconselhar-se com um advogado sagaz, um velho de experiência. seu amigo e até mesmo protetor. Dera-lhe este a opinião de que a coisa só era possível se testemunhas idôneas atestassem o desarranjo mental e a indubitável insanidade; e, ainda mais, pessoas de importância apoiando estas.
     Liébediev, nem com isso se desencorajou e teceu meios e modos de um médico, também homem de valor, já idoso, com uma condecoração, a cruz de Sant’Ana, e que estava em Pávlovsk, vir ver o príncipe, por assim dizer por acaso, para ver e apalpar o terreno, travando relações com ele e depois, não oficialmente, mas como amigo, dizer o que julgava dele. 
     O príncipe recordava-se da visita desse médico. Recordava-se que, certa noite. Liébediev o amolara a respeito de não o achar bom; mas, vendo que o príncipe categoricamente recusara uma visita médica, Liébediev aparecera, assim por acaso, com o doutor, pretextando que tinham ambos vindo da casa de Ippolít Tieriéntiev, o qual vinha de piorar, que o doutor, ali, tinha muita coisa a dizer a Míchkin a respeito do doente. O príncipe louvara Liébediev e recebera o médico cordialmente.
     Puseram-se logo a discorrer sobre Ippolít. O doutor pediu ao príncipe que lhe fizesse um relato da cena do suicídio, bem minuciosa: e o príncipe quase o distraiu com a descrição e a explicação do acidente. Falaram, também, do clima de Petersburgo, das aflições de Míchkin, da Suíça e do Dr. Schneider. A discussão do sistema do Dr. Schneider e as histórias do príncipe a respeito dele interessaram tanto o médico que ficou duas horas e até fumou os excelentes cigarros do príncipe, enquanto Liébediev fora atrás de um licor que pouco depois Vera trouxe. E que o doutor, que era um homem casado e pai de família, se derramou em tais elogios a Vera que a acabaram indignando.
     Separaram-se como amigos.
     Tendo deixado o príncipe, o doutor disse a Liébediev que se uma pessoa como aquela devia ser posta sob vigilância, quem estaria apta a vigiá-la? E como resposta à trágica descrição de Liébediev quanto ao próximo acontecimento, o doutor abanara a cabeça, dissimulada e astutamente, observando que, mesmo excluindo o fato de que “não há ninguém com quem um homem não se possa casar”, a fascinante senhora, além de ser incomparavelmente bela, o que só bastava para atrair um homem rico, também- assim, pelo menos, tinha ouvido - possuía uma fortuna, advinda de Tótskii e de Rogójin, em pérolas, diamantes, xales e móveis. Por conseguinte, a escolha do príncipe, longe de ser uma forma peculiar, ou melhor evidente de loucura, era, antes, um testemunho da perspicácia de sua sabedoria mundana e da sua prudente previdência, levando, portanto, à conclusão inteiramente oposta, a favor, com efeito, do príncipe...
     Esta opinião impressionara de tal forma Liébediev que não prosseguiu, tendo chegado a dizer a Míchkin: - E agora, não verá o senhor, em mim mais do que devoção e inteireza, pronto até a derramar meu sangue pelo senhor. Vim especialmente para lhe falar como estou falando.
     Ippolít também distraiu o espírito do príncipe durante aqueles dias, em que foi chamado à casa dele várias vezes. A família estava vivendo em uma pequena casa não longe. Os menores, a irmã com o irmão de Ippolít, sentiam-se radiantes em Pávlovsk porque pelo menos aí podiam fugir do doente, escapando para o jardim.
     A pobre viúva do capitão fora abandonada à sua mercê, sendo sua vítima de agora. O príncipe era obrigado a intervir e a pacificá-los todos os dias; e o doente ainda o apelidava de sua enfermeira menoscabando-o por tomar o papel de pacificador. Passaram a ter grande ressentimento por Kólia. visto este estar espaçando suas visitas, tendo, primeiramente, passado junto do pai moribundo e depois com a mãe viúva. Por fim fez Ippolít do casamento do príncipe com Nastássia Filíppovna o mote de escárnio, ofendendo tantas vezes, com isso, o príncipe, que este acabou se zangando, a ponto de deixar de visitá-lo. Mas logo daí a dois dias a viúva do capitão trotou para casa do príncipe, de manhãzinha, e implorou com lágrimas que fosse vê-lo, do contrário “aquele indivíduo seria a causa da morte dela”. Inventou até que o doente tinha um segredo para contar.
     Míchkin foi.
     Ippolít preparara tudo; chorou, e depois das lágrimas, naturalmente, ainda ficou mais estúpido e insolente do que antes, embora tivesse receado demonstrar o seu despeito. Estava tão mal que pelos indícios o fim estava perto. Não tinha segredo nenhum a dizer-lhe, e sim, apenas, algumas petições. E, sem ar, ou, para melhor dizer, com emoção (possivelmente envergonhado), avisou o príncipe “que se acautelasse contra Rogójín”. “É um homem que nunca largará de mão uma coisa. Ele não é como o senhor, ou eu, príncipe; se quiser uma coisa, nada o demoverá.”
     O príncipe começou a interrogá-lo mais minuciosamente, tentando colher fatos, fosse como fosse. Mas fatos não havia e só sentimentos e impressões de Ippolít que para sua intensa satisfação conseguiu o que queria: sobressaltar o príncipe, de modo cabal. A princípio, o príncipe não quis responder a certas insinuações de Ippolít, apenas sorrindo ao seu conselho de “ir para o estrangeiro; que havia padres russos por toda parte, que se poderia casar por lá”. terminando com esta sugestão:

- É por causa de Agláia Ivánovna que eu receio, o senhor sabe. Rogójin sabe quanto o senhor a ama. É um caso de amor por amor. O senhor lhe roubou Nastássia Filíppovna! Ele então matará Agláia Ivánovna; e muito embora ela não seja sua, o senhor ficará sentido, pois não é?

     Conseguiu o seu fim; o príncipe deixou-o, partindo completamente zonzo.
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (10a) - Mas o príncipe não morreu
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