quinta-feira, 17 de julho de 2025

Massa e Poder - A Malta: As Maltas nas Lendas dos Antepassados dos Arandas

Elias Canetti

A MALTA

      As Maltas nas Lendas dos Antepassados dos Arandas

     Como é que a malta se delineia, segundo o pensamento dos aborígines australianos? Um quadro claro disso dão-nos duas lendas dos arandas sobre seus antepassados. A primeira delas trata de Ungutnika, um famoso canguru de seu passado mítico. Sobre suas experiências com os cães selvagens conta-se o seguinte:

  Ele ainda não era propriamente adulto, mas um animalzinho pequeno, quando partiu em peregrinação. Tendo viajado cerca de três milhas, alcançou uma planície descampada, avistando ali uma malta de cães selvagens. Jaziam todos juntos da mãe, que era bem grande. Ele, então, ficou por ali, observando os cães selvagens, até que estes notaram a presença dele e começaram a correr em seu encalço. Ele fugiu aos saltos, o mais rápido que podia, mas os cães o apanharam numa outra planície. Rasgaram-lhe o ventre, comeram lhe primeiro o fígado, tiraram-lhe a pele, jogaram-na para o lado e puseram-se a arrancar-lhe toda a carne dos ossos. Assim que terminaram, deitaram-se novamente.
  Ungutnika, porém, não fora totalmente destruído, pois restavam lhe ainda a pele e os ossos. Diante dos olhos dos cães, a pele foi até os ossos e recobriu-os. Ungutnika pôs-se novamente de pé e fugiu. Os cães o perseguiram, apanhando-o dessa vez perto de Ulima, uma colina. Ulima signi ca “fígado”, e a colina tem esse nome porque os cães, então, não comeram, mas jogaram fora o fígado, que se transformou na colina escura que caracteriza o lugar. O que se passara antes tornou a acontecer, e Ungutnika, que se recompusera mais uma vez, correu até Pulpunja — palavra que designa um ruído peculiar produzido por morcegos pequenos. Nesse lugar, Ungutnika virou-se e produziu tal ruído, para zombar dos cães, que, mais uma vez, apanharam-no e o abriram de imediato. Mas, para grande espanto de seus perseguidores, ele novamente se recompôs. Correu, então, até Undiara, tendo os cães atrás de si. Ali, ao alcançar um ponto bem próximo de um poço, eles o apanharam e comeram-no inteiro. Cortaram fora o rabo e o enterraram no local onde, em forma de uma pedra, ele se encontra até hoje. A pedra chama-se Churinga-Rabo-de-Canguru; nas cerimônias de multiplicação, ela é desenterrada, exibida a todos e cuidadosamente polida.

      Por quatro vezes, o canguru é caçado pela malta de cães selvagens. É morto, rasgado e devorado. As três primeiras vezes em que isso acontece, deixam intocada a pele e os ossos. Enquanto ambos permanecem intactos, o canguru é capaz de reerguer-se, e seu corpo volta a crescer; de novo, os cães dão-lhe caça. Um único e mesmo animal é comido, portanto, quatro vezes. E a carne que se comeu reaparece de súbito. De um canguru fazem-se quatro, e, no entanto, trata-se sempre do mesmo animal.
     Também a caçada é sempre a mesma; mudam somente os locais em que ela se dá, e os locais dos acontecimentos fabulosos ficam marcados para sempre na paisagem. O morto não cede: torna a viver e zomba da malta, que não para de se assombrar. Mas tampouco ela cede: tem de matar sua presa, mesmo tendo-a já incorporado. Impossível seria expressar com maior clareza e simplicidade a determinação da malta e o caráter repetitivo de sua ação.
     A multiplicação é obtida aí através de uma espécie de ressurreição. O animal não é adulto, não tendo ainda produzido filhotes. Em compensação, quadruplica-se a si mesmo. Multiplicação e reprodução absolutamente não são, como se vê, coisas idênticas. A partir da pele e dos ossos, ele se recompõe ante os olhos de seus perseguidores, e os incita à caça.
     O rabo, que é enterrado, segue existindo sob a forma de uma pedra: ela é o monumento e a testemunha do milagre. A força das quatro ressurreições encontra-se nela agora, e, se tratada corretamente — como acontece nas cerimônias —, ela auxilia continuamente na multiplicação.
      A segunda lenda principia com um único homem caçando um canguru grande e muito forte. Tendo-o visto, ele quer matá-lo e comê-lo. Segue-o, então, por grandes distâncias — trata-se de uma caçada demorada —, e ambos acampam em vários lugares, a uma determinada distância um do outro. Por toda parte onde o animal se detém, ele deixa vestígios na paisagem. Numa certa localidade, ele ouve um ruído e põe se de pé sobre as patas traseiras. Uma pedra de oito metros de altura ergue-se ainda hoje no local, representando-o naquela posição. Posteriormente, atrás de água, cava um buraco na terra, e também esse poço segue existindo.
     Afinal, porém, terrivelmente esgotado, o animal se deita. O caçador topa com um certo número de homens, pertencentes a um subgrupo de seu totem. Os homens lhe perguntam: “Você tem lanças grandes?”. “Não”, responde ele, “só pequenas. Vocês têm lanças grandes?” E os primeiros respondem: “Não. Só pequenas”. O caçador, então, lhes diz: “Ponham as lanças no chão”. Ao que os homens replicam: “Está bem, mas ponha as tuas também no chão”. As lanças são jogadas no chão e todos partem unidos para cima do animal. O caçador permanece apenas com um escudo e sua churinga — sua pedra sagrada — nas mãos.

  O canguru era muito forte e rechaçou os homens. Todos lançaram se então sobre o animal, e o caçador, que ficou por baixo do amontoado de gente, morreu pisoteado. Também o canguru parecia estar morto. Os homens enterraram o caçador com seu escudo e churinga, e levaram o animal consigo para Undiara. Na realidade, o canguru não estava morto, mas morreu logo em seguida, sendo depositado numa caverna. Os homens não o comeram. No lugar da caverna onde seu corpo jazia surgiu, então, um patamar de pedra, no qual, após a morte do animal, seu espírito penetrou. Pouco depois, também os homens morreram, e seus espíritos penetraram no charco logo ao lado. Reza a tradição que, tempos depois, grandes hordas de cangurus vieram até a caverna e penetraram na terra; também os seus espíritos adentraram a pedra.

     A caçada individual transforma-se aí na caçada de toda uma malta. Os homens lançam-se desarmados sobre o animal. Querem enterrá-lo sob um amontoado de gente. O peso dos caçadores reunidos deve sufocá-lo. O canguru, porém, é muito forte e revida com golpes para todos os lados, dificultando a empreitada dos homens. No calor da luta, o próprio caçador acaba debaixo do amontoado de gente, e, em vez do canguru, é ele quem morre pisoteado. Os homens enterram-no, então, com seu escudo e churinga sagrada.
     Essa história de uma malta de caça que, no encalço de um animal em particular, em vez de matá-lo mata por engano um nobre caçador encontra-se difundida por todo o mundo. Ela termina com o lamento pelo caçador: a malta de caça transforma-se em malta de lamentação. Essa transformação constitui o cerne de muitas religiões importantes e amplamente disseminadas. Também aqui, na lenda dos arandas, fala-se no sepultamento da vítima. Escudo e churinga são enterrados com ela, e a menção da churinga, tida por sagrada, confere ao acontecimento seu toque solene.
     Quanto ao animal, que só morre depois, ele é enterrado em outro lugar. Sua caverna torna-se um centro para os cangurus. No curso de tempos que se seguiram, uma grande quantidade deles vem até a mesma pedra e nela penetra. Undiara, que é como se chama o lugar, torna-se um local sagrado no qual os membros do totem-canguru celebram suas cerimônias. Estas se prestam à multiplicação desse animal, e, enquanto desenrolarem-se corretamente, haverá cangurus em número suficiente na redondeza.
     É notável a maneira pela qual se alinham nessa lenda dois acontecimentos religiosos cruciais e inteiramente distintos. O primeiro deles contém, como foi dito, a transformação de uma malta de caça em malta de lamentação; e o segundo, que se passa na caverna, apresenta a transformação da malta de caça em malta de multiplicação. Para os australianos, esse segundo acontecimento reveste-se de uma importância muito maior: ele está verdadeiramente no centro de seu culto.
     Que ambos ocorram um ao lado do outro é algo que corrobora uma tese central desta investigação. Cada uma das quatro formas básicas da malta está presente desde o princípio e por toda parte onde haja seres humanos. Assim sendo, todas as transformações de uma malta em outra são igualmente, e sempre, possíveis. De acordo com a ênfase que se dá a uma ou outra transformação constituem-se diferentes formas religiosas básicas. Distingo como os dois grupos principais as religiões de lamentação e as de multiplicação. Contudo, existem também — como se verá — religiões de caça e de guerra.
      Um vestígio de procedimentos bélicos encontra-se presente até mesmo na lenda mencionada acima. A conversa sobre as lanças, mantida pelo caçador com o grupo de homens que encontra, diz respeito a possibilidades bélicas. Se, ao mesmo tempo, todos jogam no chão as lanças que possuem, eles estão renunciando a um combate. É somente depois disso que, unidos, lançam-se sobre o canguru.
     Deparamos aí com o segundo ponto que me parece notável nessa lenda: o amontoado de homens que se projeta sobre o canguru; uma massa coesa de corpos humanos deve sufocá-lo. Entre os australianos, são frequentes as referências a semelhantes amontoados de corpos humanos. Eles figuram constantemente em suas cerimônias. Num determinado momento da cerimônia de circuncisão dos jovens, o candidato se deita no chão e um certo número de homens deita-se sobre ele, de modo que o jovem tem de suportar-lhes o peso total. Em algumas tribos, um amontoado de pessoas lança-se sobre o moribundo, comprimindo-o por todos os lados. Essa situação, que já conhecemos, é particularmente interessante: ela representa uma passagem dos vivos para o amontoado dos moribundos e dos mortos, passagem esta da qual se fala com frequência neste livro. Alguns casos australianos de densos amontoados serão tratados no próximo capítulo. Para o momento, basta notar que o denso amontoado dos vivos, reunido intencional e violentamente, não é menos importante do que o dos mortos. Se este último nos parece mais familiar, tal se vincula ao fato de, no curso da história, ele ter assumido proporções gigantescas. É natural que frequentemente nos pareça juntarem-se os homens em maior quantidade apenas quando mortos. O amontoado dos vivos, porém, é igualmente bem conhecido: não é outra coisa o que se encontra no cerne da massa.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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