Elias Canetti
A MALTA
As Formações Humanas dos Arandas
Ambas as lendas tratando de antepassados que acabamos de conhecer
foram extraídas do livro de Spencer e Gillen sobre a tribo dos arandas
(chamados por eles de “arunta”). A maior parte dessa famosa obra é
dedicada à descrição de suas festas e cerimônias. Dificilmente se poderia
ter uma ideia exagerada da multiplicidade destas. Particularmente
notável é a riqueza de formações que os participantes constroem no
decorrer dessas cerimônias. Trata-se, em parte, de formações que
conhecemos muito bem, porque conservaram seu significado até os
nossos dias; em parte, porém, são cerimônias que nos desconcertam por
sua estranheza. O que se segue é uma enumeração sumária das
principais dentre elas.
Em todas as atividades secretas, que se processam em silêncio, a fila
indiana figura com frequência. Os homens partem em fila indiana para
buscar suas churingas sagradas, escondidas em cavernas ou em outros
lugares. Caminham, talvez, uma hora até atingirem sua meta; os jovens
que participam dessas expedições são proibidos de fazer perguntas.
Quando o velho que os comanda deseja explicar-lhes alguma coisa —
certas formações na paisagem relacionadas às lendas dos antepassados
—, ele se serve da mímica.
Nas cerimônias propriamente ditas, atua em geral um número
bastante reduzido de protagonistas, os quais, caracterizados como
antepassados de um totem, os representam. Na maioria das vezes, esse
número é de dois ou três; com frequência, reduz-se a apenas um. Os
jovens formam um círculo, dançam em torno deles e emitem
determinados gritos. Esse girar em círculo constitui uma formação
bastante frequente, sendo constantemente mencionado.
Em outra ocasião, durante as cerimônias do engwura — o
acontecimento mais importante e solene na vida da tribo —, os jovens
deitam-se no chão, enfileirados sobre uma elevação pequena e alongada
do terreno, ali jazendo mudos por um certo número de horas. Esse
deitar-se em fileira repete-se com frequência, tendo chegado, em certa
ocasião, a estender-se por oito horas: das nove da noite às cinco da
manhã.
Assaz impressionante é uma outra formação, bastante mais densa. Os
homens juntam-se num denso amontoado — os velhos no centro, os
jovens à borda. Essa formação semelhante a um disco, na qual todos os
participantes se comprimem uns contra os outros, põe-se a girar numa
dança por duas horas inteiras, cantando sem cessar. A seguir, dispostos
ainda da mesma maneira, sentam-se todos, de forma que o amontoado
permanece tão compacto quanto antes, quando estavam todos de pé; os
homens, então, seguem cantando, por mais umas duas horas, talvez.
Por vezes, os homens postam-se de pé em duas fileiras, uma defronte
da outra, e cantam. — Para a cerimônia decisiva, que põe fim à parte
ritual do engwura, os jovens formam-se num quadrado e, acompanhados
dos velhos, partem para o outro lado do rio, onde as mulheres e
crianças os esperam.
Essa cerimônia é bastante rica em detalhes, mas, no âmbito de nossa
enumeração, centrada unicamente nas formações, há que se mencionar
sobretudo um amontoado no chão, formado a partir da reunião de todos
os homens. Três velhos, carregando juntos uma imagem sagrada que
representa o saco que continha as crianças dos tempos primitivos, são os
primeiros a cair, cobrindo com seus corpos a imagem, a qual, na
realidade, mulheres e crianças não podem ver. A seguir, todos os demais
homens — isto é, principalmente os jovens, a cuja iniciação tal
cerimônia se presta — precipitam-se sobre os três velhos, jazendo todos
juntos no chão, num amontoado desordenado. Não se vê mais coisa
alguma; do amontoado salientam-se somente as cabeças dos três velhos.
Permanecem todos deitados por alguns minutos, quando, então, todos
tentam levantar-se e desembaraçar-se. A formação de tais amontoados
no chão ocorre também em outras situações; essa é, porém, a ocasião
mais grandiosa e importante mencionada pelos observadores.
Nas provas de fogo, os jovens deitam-se sobre galhos ardentes, mas,
naturalmente, não uns sobre os outros. As provas de fogo transcorrem
de maneiras bastante variadas. Uma das mais frequentes realiza-se como
se segue: os jovens vão-se para o outro lado do rio, onde, divididas em
dois grupos, as mulheres os aguardam; lá, elas avançam sobre eles e os
cobrem de uma chuva de galhos ardentes. Em outra oportunidade, a
longa fileira de jovens posta-se defronte à fileira de mulheres e crianças;
as mulheres dançam, e os homens lançam vigorosamente ramos em
brasa por sobre suas cabeças.
Por ocasião de uma cerimônia de circuncisão, seis homens, deitados
no chão, formam juntos uma mesa. O noviço deita-se sobre eles e é
operado. O “deitar-se sobre o noviço”, pertencente a essa mesma
cerimônia, já foi mencionado no capítulo anterior.
Se se procura por algo como um sentido nessas formações, talvez se
possa dizer o seguinte:
A fila indiana expressa a peregrinação. Seu significado na tradição da
tribo é enorme. Diz-se frequentemente que os antepassados
peregrinaram sobre a terra. É como se, um atrás do outro, cada um dos
jovens tivesse de seguir as pegadas dos antepassados. A natureza de seu
movimento e o silêncio encerram o respeito perante os caminhos e
metas sagradas.
O girar ou o dançar em círculo figura como um amuralhamento das
representações que se desenrolam em seu centro. Elas são protegidas de
tudo quanto é estranho e exterior ao círculo. São aplaudidas, rendem-se
homenagens a elas e toma-se posse de tais representações.
O deitar-se em fileira poderia constituir uma representação da morte.
Nessa disposição, os noviços permanecem totalmente mudos, e, por
muitas horas, nada se mexe. Súbito, então, eles se levantam de um salto
e estão novamente vivos.
As duas fieiras, dispostas uma defronte da outra a m de que
interajam, exprimem a divisão em duas maltas hostis, sendo possível que
o sexo oposto substitua aí a malta inimiga. O quadrado parece ele
próprio uma formação para a proteção de todos os flancos; ele
pressupõe que se esteja caminhando em ambiente hostil. Conhecemo-lo
bastante bem em nossa história mais recente.
Restam, então, as formações verdadeiramente mais densas: o disco
dançante, repleto de homens, e o amontoado emaranhado no chão. O
disco, precisamente em seu movimento, constitui o exemplo extremo de
uma massa rítmica — uma massa tão densa e fechada quanto possível,
na qual não há lugar para mais nada, a não ser para aqueles que a ela
pertencem.
O amontoado no chão está a proteger um precioso segredo. Ele
indica que se quer encobrir e reter alguma coisa com toda a força. Num
tal amontoado, acolhe-se inclusive um moribundo, prestando-lhe
assim, pouco antes da morte, uma última homenagem. Ele é muito
precioso para sua gente, e, tendo-o ao centro, esse amontoado lembra
aquele dos mortos.
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Leia também:
Massa e Poder - A Malta: As Formações Humanas dos Arandas
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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