sábado, 19 de julho de 2025

Massa e Poder - A Malta: As Formações Humanas dos Arandas

Elias Canetti

A MALTA

      As Formações Humanas dos Arandas

     Ambas as lendas tratando de antepassados que acabamos de conhecer foram extraídas do livro de Spencer e Gillen sobre a tribo dos arandas (chamados por eles de “arunta”). A maior parte dessa famosa obra é dedicada à descrição de suas festas e cerimônias. Dificilmente se poderia ter uma ideia exagerada da multiplicidade destas. Particularmente notável é a riqueza de formações que os participantes constroem no decorrer dessas cerimônias. Trata-se, em parte, de formações que conhecemos muito bem, porque conservaram seu significado até os nossos dias; em parte, porém, são cerimônias que nos desconcertam por sua estranheza. O que se segue é uma enumeração sumária das principais dentre elas.
     Em todas as atividades secretas, que se processam em silêncio, a fila indiana figura com frequência. Os homens partem em fila indiana para buscar suas churingas sagradas, escondidas em cavernas ou em outros lugares. Caminham, talvez, uma hora até atingirem sua meta; os jovens que participam dessas expedições são proibidos de fazer perguntas. Quando o velho que os comanda deseja explicar-lhes alguma coisa — certas formações na paisagem relacionadas às lendas dos antepassados —, ele se serve da mímica.
      Nas cerimônias propriamente ditas, atua em geral um número bastante reduzido de protagonistas, os quais, caracterizados como antepassados de um totem, os representam. Na maioria das vezes, esse número é de dois ou três; com frequência, reduz-se a apenas um. Os jovens formam um círculo, dançam em torno deles e emitem determinados gritos. Esse girar em círculo constitui uma formação bastante frequente, sendo constantemente mencionado.
     Em outra ocasião, durante as cerimônias do engwura — o acontecimento mais importante e solene na vida da tribo —, os jovens deitam-se no chão, enfileirados sobre uma elevação pequena e alongada do terreno, ali jazendo mudos por um certo número de horas. Esse deitar-se em fileira repete-se com frequência, tendo chegado, em certa ocasião, a estender-se por oito horas: das nove da noite às cinco da manhã.
     Assaz impressionante é uma outra formação, bastante mais densa. Os homens juntam-se num denso amontoado — os velhos no centro, os jovens à borda. Essa formação semelhante a um disco, na qual todos os participantes se comprimem uns contra os outros, põe-se a girar numa dança por duas horas inteiras, cantando sem cessar. A seguir, dispostos ainda da mesma maneira, sentam-se todos, de forma que o amontoado permanece tão compacto quanto antes, quando estavam todos de pé; os homens, então, seguem cantando, por mais umas duas horas, talvez.
     Por vezes, os homens postam-se de pé em duas fileiras, uma defronte da outra, e cantam. — Para a cerimônia decisiva, que põe fim à parte ritual do engwura, os jovens formam-se num quadrado e, acompanhados dos velhos, partem para o outro lado do rio, onde as mulheres e crianças os esperam.
     Essa cerimônia é bastante rica em detalhes, mas, no âmbito de nossa enumeração, centrada unicamente nas formações, há que se mencionar sobretudo um amontoado no chão, formado a partir da reunião de todos os homens. Três velhos, carregando juntos uma imagem sagrada que representa o saco que continha as crianças dos tempos primitivos, são os primeiros a cair, cobrindo com seus corpos a imagem, a qual, na realidade, mulheres e crianças não podem ver. A seguir, todos os demais homens — isto é, principalmente os jovens, a cuja iniciação tal cerimônia se presta — precipitam-se sobre os três velhos, jazendo todos juntos no chão, num amontoado desordenado. Não se vê mais coisa alguma; do amontoado salientam-se somente as cabeças dos três velhos. Permanecem todos deitados por alguns minutos, quando, então, todos tentam levantar-se e desembaraçar-se. A formação de tais amontoados no chão ocorre também em outras situações; essa é, porém, a ocasião mais grandiosa e importante mencionada pelos observadores.
     Nas provas de fogo, os jovens deitam-se sobre galhos ardentes, mas, naturalmente, não uns sobre os outros. As provas de fogo transcorrem de maneiras bastante variadas. Uma das mais frequentes realiza-se como se segue: os jovens vão-se para o outro lado do rio, onde, divididas em dois grupos, as mulheres os aguardam; lá, elas avançam sobre eles e os cobrem de uma chuva de galhos ardentes. Em outra oportunidade, a longa fileira de jovens posta-se defronte à fileira de mulheres e crianças; as mulheres dançam, e os homens lançam vigorosamente ramos em brasa por sobre suas cabeças.
     Por ocasião de uma cerimônia de circuncisão, seis homens, deitados no chão, formam juntos uma mesa. O noviço deita-se sobre eles e é operado. O “deitar-se sobre o noviço”, pertencente a essa mesma cerimônia, já foi mencionado no capítulo anterior.
     Se se procura por algo como um sentido nessas formações, talvez se possa dizer o seguinte:
     A fila indiana expressa a peregrinação. Seu significado na tradição da tribo é enorme. Diz-se frequentemente que os antepassados peregrinaram sobre a terra. É como se, um atrás do outro, cada um dos jovens tivesse de seguir as pegadas dos antepassados. A natureza de seu movimento e o silêncio encerram o respeito perante os caminhos e metas sagradas.
     O girar ou o dançar em círculo figura como um amuralhamento das representações que se desenrolam em seu centro. Elas são protegidas de tudo quanto é estranho e exterior ao círculo. São aplaudidas, rendem-se homenagens a elas e toma-se posse de tais representações.
     O deitar-se em fileira poderia constituir uma representação da morte. Nessa disposição, os noviços permanecem totalmente mudos, e, por muitas horas, nada se mexe. Súbito, então, eles se levantam de um salto e estão novamente vivos.
     As duas fieiras, dispostas uma defronte da outra a m de que interajam, exprimem a divisão em duas maltas hostis, sendo possível que o sexo oposto substitua aí a malta inimiga. O quadrado parece ele próprio uma formação para a proteção de todos os flancos; ele pressupõe que se esteja caminhando em ambiente hostil. Conhecemo-lo bastante bem em nossa história mais recente.
     Restam, então, as formações verdadeiramente mais densas: o disco dançante, repleto de homens, e o amontoado emaranhado no chão. O disco, precisamente em seu movimento, constitui o exemplo extremo de uma massa rítmica — uma massa tão densa e fechada quanto possível, na qual não há lugar para mais nada, a não ser para aqueles que a ela pertencem.
     O amontoado no chão está a proteger um precioso segredo. Ele indica que se quer encobrir e reter alguma coisa com toda a força. Num tal amontoado, acolhe-se inclusive um moribundo, prestando-lhe assim, pouco antes da morte, uma última homenagem. Ele é muito precioso para sua gente, e, tendo-o ao centro, esse amontoado lembra aquele dos mortos.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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