Maria Firmina dos Reis
Cantos à beira-mar
Dedicatória
À memória de minha veneranda mãe.
Minha Mãe! – as minhas poesias são tuas.
É uma lágrima que verto sobre tuas cinzas! Acolhe-as, abençoa-as para
que elas te possam merecer.
Debruçada sobre o teu peito, embalde, oh! minha mãe, – no extremo
da dor, e da aflição procurei inocular o calor do meu sangue nas veias onde
o teu gelava-se ao hálito da morte!... verti lágrimas de pungente saudade,
de amargura infinda sobre a tua humilde sepultura, como havia derramado
sobre o teu corpo inanimado.
A dor era cada vez mais funda, mais agra e cruciante – tornei a harpa, – vibrei nela um único som, – uma nota plangente, saturada de lágrimas e
de saudade...
Este som, esta nota, são os meus cantos à beira-mar.
Ei-los! É uma coroa de perpétuas sobre a tua campa, – e uma saudade
infinda com que meu coração te segue noite, e dia, – é uma lágrima sentida,
que dedico à tua memória veneranda.
Se alguma aceitação merecerem meus pobres cantos, na minha província, ou fora dela; – se um acolhimento lisonjeiro lhes dispensar alguém;
oh! minha mãe! essa situação esse acolhimento será uma oferenda sagrada, – uma rosa desfolhada sobre a tua sepultura!...
Sim, minha mãe... que glória poderá resultar-me das minhas poesias,
que não vá refletir sobre as tuas cinzas!?!...
É a ti que devo o cultivo de minha fraca inteligência; – a ti, que desper
taste em meu peito o amor à literatura; – e que um dia me disseste:
Canta!
Eis pois, minha mãe, o fruto dos teus desvelos para comigo; – eis as
minhas poesias: – acolhe-as, abençoa-as do fundo do teu sepulcro.
E ainda uma lágrima de saudade, – um gemido do coração...
Guimarães, 7 de Abril de 1871.
Maria Firmina dos Reis
Oh! minha mãe! oh! minha mãe querida,
Que vácuo n’ alma – que cruel soidade!
Deixa que lance sobre o teu sepulcro
A roxa c’roa de imortal saudade.
Fraco tributo: – mas no imo peito
As eduquei com amargurado pranto;
Hoje as esfolho perfumosas, tristes,
Ao som cheiroso do meu pobre canto.
Uma lágrima
Sobre o sepulcro de minha carinhosa mãe.
E eu vivo ainda!? Nem sei como vivo!...
Gasto de dor o coração me anseia:
Sonho venturas de um melhor porvir,
Onde da morte só pavor campeia.
Lá meus anseios sob a lousa humilde
Dormem seu sono de silêncio eterno!
Mudos à dor, que me consome, e gasta.
Frios ao extremo de meu peito terno.
Ah! Despertá-los quem pudera? Quem?
Ah! campa... ah, campa! Que horror, meu Deus!
Por que tão breve – minha mãe querida,
Roubaste, oh morte, destes braços meus?!!...
Oh! não sabias que ela era a harpa
Em cujas cordas eu cantava amores,
Que era ela a imagem do meu Deus na terra,
Vaso de incenso trescalando odores?!
Que era ela a vida, os horizontes lindos,
Farol noturno a me guiar p’ra os céus;
Bálsamo santo a serenar-me as dores,
Graça melíflua, que vem de Deus!
Que ela era a essência que se erguia branda
Fina, e mimosa de uma relva em flor!
Que era o alaúde do bom rei – profeta,
Cantando salmos de saudade, e dor!
Que era ela o encanto de meus tristes dias,
Era o conforto na aflição, na dor!
Que era ela a amiga, que velou-me a infância,
Que foi a guia desta vida em flor!
Que era o afeto, que eduquei cuidosa
Dentro do peito... que era a flor
Grata, mimosa a derramar perfumes,
Nos meus jardins de poesia, e amor!
Que era ela a harpa de doçura santa
Em que eu cantava divinal canção...
Era-me a ideia de Jeová na terra,
Era-me a vida que eu amava então!
Oh! minha mãe que idolatrei na terra,
Que amei na vida como se ama a Deus!
Hoje, entre os vivos te procuro – embalde!
Que a campa pesa sobre os restos teus!...
Como se apura moribunda chama
À hora extrema da existência sua:
Assim minha alma se apurou de afetos,
Gemeu de angústias pela angústia tua.
E não puderam minha dor, meu pranto,
Pranto sentido que jamais chorei,
Oh! não puderam te sustar a vida,
Que entre delírios para ti sonhei!...
E como a flor pelo rufão colhida
Vergada a haste, a se esfolhar no chão,
Eu vi fugir-lhe o derradeiro alento!
Oh! sim, eu vi... e não morri então!
Entanto amava-a, como se ama a vida,
E a minha eu dera para remir a sua...
Oh! Deus – por que o sacrifício oferto,
Não aceitou a onipotência tua!?!...
Vacila a mente nessa acerba hora
Entre a fé, e a descrença...oh! sim meu Deus!
Estua o peito, verga aflita a alma:
Tu me compreendes, tu nos vês dos céus.
Vacila, treme... mas na própria mágoa
Tu nos envias o chorar, Senhor;
Bendito sejas! que esse pranto acerbo,
É doce orvalho, que nos unge a dor.
Lá onde os anjos circundam, dá-lhe
Vida perene de imortal candura:
Por cada gota de meu triste pranto,
Dá-lhe de gozos divinal ventura.
E à triste filha, que saudosa geme,
Manda mais dores, mais pesada cruz;
Depois, reúne à sua mãe querida,
No seio imenso de infinita luz.
continua na página 184...
Cantos à beira-mar - Dedicatória
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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