domingo, 6 de julho de 2025

Cantos à beira-mar - Dedicatória

Maria Firmina dos Reis


Cantos à beira-mar

Dedicatória 
À memória de minha veneranda mãe.
      

     Minha Mãe! – as minhas poesias são tuas.
     É uma lágrima que verto sobre tuas cinzas! Acolhe-as, abençoa-as para que elas te possam merecer.
     Debruçada sobre o teu peito, embalde, oh! minha mãe, – no extremo da dor, e da aflição procurei inocular o calor do meu sangue nas veias onde o teu gelava-se ao hálito da morte!... verti lágrimas de pungente saudade, de amargura infinda sobre a tua humilde sepultura, como havia derramado sobre o teu corpo inanimado.
     A dor era cada vez mais funda, mais agra e cruciante – tornei a harpa, – vibrei nela um único som, – uma nota plangente, saturada de lágrimas e de saudade...
     Este som, esta nota, são os meus cantos à beira-mar.
     Ei-los! É uma coroa de perpétuas sobre a tua campa, – e uma saudade infinda com que meu coração te segue noite, e dia, – é uma lágrima sentida, que dedico à tua memória veneranda.
    Se alguma aceitação merecerem meus pobres cantos, na minha província, ou fora dela; – se um acolhimento lisonjeiro lhes dispensar alguém; oh! minha mãe! essa situação esse acolhimento será uma oferenda sagrada, – uma rosa desfolhada sobre a tua sepultura!...
    Sim, minha mãe... que glória poderá resultar-me das minhas poesias, que não vá refletir sobre as tuas cinzas!?!...
    É a ti que devo o cultivo de minha fraca inteligência; – a ti, que desper taste em meu peito o amor à literatura; – e que um dia me disseste:
    Canta!
    Eis pois, minha mãe, o fruto dos teus desvelos para comigo; – eis as minhas poesias: – acolhe-as, abençoa-as do fundo do teu sepulcro.
    E ainda uma lágrima de saudade, – um gemido do coração...

Guimarães, 7 de Abril de 1871. 
Maria Firmina dos Reis


 Oh! minha mãe! oh! minha mãe querida, 
 Que vácuo n’ alma – que cruel soidade! 
 Deixa que lance sobre o teu sepulcro 
 A roxa c’roa de imortal saudade.

 Fraco tributo: – mas no imo peito 
 As eduquei com amargurado pranto; 
 Hoje as esfolho perfumosas, tristes, 
 Ao som cheiroso do meu pobre canto.


Uma lágrima
Sobre o sepulcro de minha carinhosa mãe.

 E eu vivo ainda!? Nem sei como vivo!... 
 Gasto de dor o coração me anseia: 
 Sonho venturas de um melhor porvir, 
 Onde da morte só pavor campeia.

 Lá meus anseios sob a lousa humilde 
 Dormem seu sono de silêncio eterno! 
 Mudos à dor, que me consome, e gasta. 
 Frios ao extremo de meu peito terno.

Ah! Despertá-los quem pudera? Quem? 
 Ah! campa... ah, campa! Que horror, meu Deus! 
 Por que tão breve – minha mãe querida, 
 Roubaste, oh morte, destes braços meus?!!...

 Oh! não sabias que ela era a harpa 
 Em cujas cordas eu cantava amores, 
 Que era ela a imagem do meu Deus na terra, 
 Vaso de incenso trescalando odores?!

 Que era ela a vida, os horizontes lindos, 
 Farol noturno a me guiar p’ra os céus; 
 Bálsamo santo a serenar-me as dores, 
 Graça melíflua, que vem de Deus!

 Que ela era a essência que se erguia branda 
 Fina, e mimosa de uma relva em flor! 
 Que era o alaúde do bom rei – profeta, 
 Cantando salmos de saudade, e dor!

 Que era ela o encanto de meus tristes dias, 
 Era o conforto na aflição, na dor! 
 Que era ela a amiga, que velou-me a infância, 
 Que foi a guia desta vida em flor!

 Que era o afeto, que eduquei cuidosa 
 Dentro do peito... que era a flor 
 Grata, mimosa a derramar perfumes, 
 Nos meus jardins de poesia, e amor!

 Que era ela a harpa de doçura santa 
 Em que eu cantava divinal canção... 
 Era-me a ideia de Jeová na terra, 
 Era-me a vida que eu amava então!

 Oh! minha mãe que idolatrei na terra, 
 Que amei na vida como se ama a Deus! 
 Hoje, entre os vivos te procuro – embalde! 
 Que a campa pesa sobre os restos teus!...

 Como se apura moribunda chama 
 À hora extrema da existência sua: 
 Assim minha alma se apurou de afetos, 
 Gemeu de angústias pela angústia tua.

 E não puderam minha dor, meu pranto, 
 Pranto sentido que jamais chorei, 
 Oh! não puderam te sustar a vida, 
 Que entre delírios para ti sonhei!...

 E como a flor pelo rufão colhida 
 Vergada a haste, a se esfolhar no chão, 
 Eu vi fugir-lhe o derradeiro alento! 
 Oh! sim, eu vi... e não morri então!

 Entanto amava-a, como se ama a vida, 
 E a minha eu dera para remir a sua... 
 Oh! Deus – por que o sacrifício oferto, 
 Não aceitou a onipotência tua!?!...

 Vacila a mente nessa acerba hora 
 Entre a fé, e a descrença...oh! sim meu Deus! 
 Estua o peito, verga aflita a alma: 
 Tu me compreendes, tu nos vês dos céus.

 Vacila, treme... mas na própria mágoa 
 Tu nos envias o chorar, Senhor; 
 Bendito sejas! que esse pranto acerbo, 
 É doce orvalho, que nos unge a dor.

 Lá onde os anjos circundam, dá-lhe 
 Vida perene de imortal candura: 
 Por cada gota de meu triste pranto, 
 Dá-lhe de gozos divinal ventura.

 E à triste filha, que saudosa geme, 
 Manda mais dores, mais pesada cruz; 
 Depois, reúne à sua mãe querida, 
 No seio imenso de infinita luz.

continua na página 184...
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Cantos à beira-mar - Dedicatória
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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