Homem não mija em pé
baitasar
A história do circo de horrores, narrada em minhas memórias, com seus suplícios, confissões, revelações e covardias, agitam os lados das folhas do livro, e com muita insistência retorno os gritos e lágrimas daqueles que não vi, mas estão por aqui e ali, não tenho como fugir, é assim mesmo, o pesadelo é uma busca reclamando prontidão permanente no costume das pessoas.
Tarefa cotidiana.
Sou as páginas do livro terminado e insatisfeito, descubro, nesta pescaria de vocábulos e fonemas, um novo jeito de ler ouvir sentir, uma nova maneira de chorar sorrir gritar silenciar, isto não tem fim. No pescador das letras, vejo um encantador dos sentidos que as palavras assumem, enquanto se lançam e recolhem na rede em forma de texto.
No final, somos a pescaria, jamais seremos um deus encantado com a possibilidade de gaiolas. Nenhum deus é ingênuo, negam que buscam honra e glória para si. Mas não têm piedade, condolência. Empenham foder com a paciência humana, enjaular, separar, tomar pela doma a alma, a dignidade. A jaula é invenção dos deuses do dinheiro.
O dinheiro é invento do homem-deus que deseduca seu próprio domador, só quer honra e glória para si. Simples, assim. Matam pelo prazer de matar pelo dinheiro.
Tenho medo por mim, mas sinto orgulho de haver sobrevivido para contar esta pequena história de amor, interrompida de maneira tão selvagem e aborrecível pelos medíocres prendedores.
O domador de gente.
O delegado Calçacurta era um enjaulador cativo da hierarquia e regulamentos rígidos. Não tinha a figura imponente do militar, mancava e não enxergava tão bem, mantinha um sorriso afável serviçal manhoso, sem traços de descaramento. Esse manco domador tornou-se um funcionário regulado pela burocracia com a ambição do poder. O burocrata miserável que tem ouvidos por tudo, zela pelos corpos nas intrigas mantendo o pé no pescoço das suas vítimas. Jamais se viu nele algum esforço para se parecer um mancador normal.
Num tempo de mais tranqüilidade e menos abuso, seu maior esforço pessoal foi decidir sentar para mijar. Urinar-se, desde então, tornou-se um momento de segredo às portas fechadas, segurança nacional, o mancador desacostumou-se de fazer o serviço em pé.
O passo seguinte foi obrigar os subordinados de armas seguirem sua doutrina para mijar. Jamais em pé, nem segurando com as mãos. Sempre sentados, higiênicos, Homem que é homem não mija em pé, mas agachado.
Assim, as tropas eram dele, das suas vontades, e menos dos generais.
Ele tinha o próprio circo.
Todos eram homens fortes, bonitos e fiéis, massa-bruta corpulenta preparada para o defendimento das pessoas com juízo de justo valor e donas das riquezas do anfiteatro de lona. Homens e mulheres que foram sendo aprontados no tempo, dentro da própria trama que os sublimou ao poder. Gente que matou por prazer.
Mas o socador de carnes é o menos importante, sim, filho-da-puta, mas não tem vida própria, é recriado por medos. E as pessoas benfeitoras parecem cansadas de saber das suas atrocidades e maldades. Sabem, mas andam distraídas com as próprias desventuras. Preferem romances melados ou a superação das dificuldades com ajudas brilhantes, os métodos de refinamento particular. Escondidas. Afastadas da realidade que disputa o poder de mandar, preferem amansar a pimenta com açucaradas colheres de sopa. Por enquanto, ficam entretidas com o relaxamento.
Quero falar dos livros. Preciso falar de mim.
Imagino as pessoas marcadas pelos signos da escrita, autografando e causando pensamentos, arrasando e dinamitando conceitos, opondo-se as idéias e opiniões totalitárias, num debate de intenções imagens sonhos bons e ruins, minhas ilusões com minhas desilusões. Tudo nem é tão bom, nem o nada é tão ruim.
Pensar a leitura como uma atividade que tem muito ou tudo a ver com a subjetividade do leitor, não só com o que o leitor sabe, senão também, com o que ele é existindo, é pensá-la enquanto uma experiência, enquanto formação. É pensar a leitura como algo que nos forma ou deforma ou transforma, que nos constitui e nos desafia naquilo que somos, ou que pensamos ser ou que cobiçamos tornarmo-nos. A leitura, portanto, não é só um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real e um chegar ao porto do mundo não real, não se reduz a um meio para adquirir conhecimentos, mas é algo que nos faz ver o que somos. Seria uma relação entre alguém que lê e seu outro, o texto, a pessoa, a situação, o objeto, ou seja, a relação com o texto. Esta relação tem uma condição essencial, que não seja de apropriação senão de escuta. Na escuta se está disposto a ouvir o que não se sabe, o que não se quer, o que não se necessita, a perder o pé, a deixar-se arrastar por aquilo...
Sou interrompido nesta digressão psicanalítica, mãos nervosas me separam das prateleiras. Vou para o monte dos rejeitados. Mercadoria desusada. Negam minha pretensão de passar às mãos de outras mãos, infinitamente, a aflição do isolamento.
Chegaram com o propósito de fazer um inventário de salvação, manter os maus longe de si e das prateleiras. E assim, começa o bem me quer mal me quer. Não somos nada além de livros recostados uns aos outros. A prontidão não é apenas um sinal de alerta dos soldados, mas o nosso jeito de repetir que isso, nunca mais, nunca mais. Penso em empreender alguma das fugas narradas em mim. Estou emburrado.
Não estou pronto para o destino silencioso do esquecimento, não estou pronto para o envelhecimento.
O diagnóstico é definitivo, estou envelhecido, tenho páginas amareladas, mofadas – isso é mentira – fonemas desatualizados. Preto no branco e branco no preto, não tenho figuras ou cores. Meu conteúdo não basta, minhas aparências são de antigamente. Foi decretado o final do meu ciclo de mostrar-me.
Uma senhora me agarra. Coloca seus olhos desanimados em mim e lê, Brasil: Tortura Nunca Mais. Ensaia abrir-me, mas desiste, Isso já acabou. Sou jogado na pilha dos descartes, abandonado como tantos audaciosos em cova rasa. Descartados do acervo.
Minhas páginas se alvoroçam nervosas rebeldes. O denunciado em mim está tão perto e as senhoras me julgam desusado. A vida não se faz obsoleta. As histórias das fugas daquelas crianças não se tornaram antediluvianas, pré-históricas. O espanto e a dor vivida, naquela noite, não podem ser transformados em doença da memória. Essa agonia ainda existe, envolve todos, Atenção, soldados! Sentido!
As suas vozes pequenas ainda são ouvidas, Mamãe, Papai, Vovó, Por favor, não batam na mamãe, Larguem o papai.
O choro delas foi deixado para trás.
Depois de passado o tempo da eternidade, e a certeza que os homens maus não voltariam, os gêmeos saíram do galinheiro e recolheram as três crianças. Todos choravam, abraçados na sala televisiva. No escuro. Um agarrado ao outro. Talvez, aqueles homens voltassem com, pedindo desculpas, Foi tudo um lamentável mal-entendido. Nunca voltaram.
O detalhamento das crianças fazia doer a traição. Sabia que tinha que agir rápido. O tempo afastava as chances mais para longe. Vaporoso. Mas, antes, levar as crianças para lugar seguro. O apito do guarda da noite o fez agir às pressas.
Os maiores corriam risco de vida. As crianças também têm arquivos que precisam ser queimados. E os menores desapareceriam em adoções como brindes de bonificação, doações da boa vontade.
Quando amanheceu saiu atrás do delegado Calçacurta. Foi até sua casa. Clara o recebeu em roupas de dormir que se deixava atravessar pela luz. Tinha um acanhado sorriso nos lábios. Ajeitava os cabelos de maneira descuidada, mas sem aborrecimento. Repetiu que o marido fazia bons dias não lhe aparecia, no fim, concedeu um levantar conformado de ombros, Não vai entrar, Hoje, não vai dar, Que pena, nós poderíamos recomeçar onde paramos, Tenho urgências de falar com o delegado.
A mulher recomendou que ao avistar o sumido lhe pedisse notícias.
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