sábado, 30 de julho de 2011

Obediente, aparto as pernas sem nenhum pudor


A Gueixa
baitasar
Sentado, entre aquelas paredes mornas e mortas, seu escritório de defensor privado, Algemadotira não procura, não quer desviar sua desatenção. Ele está macambúzio. Não tem ninguém para desencaminhá-lo, levá-lo para passeios em tardes ensolaradas com as pipocas e o chimarrão. Vive de conter a vontade de sair correndo.
Não existem milagres.
Escolheu ser adulto, confiar desconfiando da verdade, contar as suas histórias melhor que o concorrente. É um bom auditor de histórias, nada mais que isso, bem pago para criar no pensamento dos jurados um pretexto, uma chance à clemência
(Dr Algemadotira.) (Sim, Cogitabunda.) (Tem um pessoal aguardando para falar com o senhor.) (Manda esperar.) (Dr Algemadotira é mãe, tia, avó, irmã e o rapaz.) (É preciso que esperem, por favor.)
Quando está neste estado desatento, ele implica com todos, até ver a cor do dinheiro. Pessoas com dinheiro têm sorte, pelo menos, o enterro é mais bonito.
Lembra do enterramento de um cliente dos tempos de pobreza. O coitado morreu na cadeia da cidade. Dor no peito fulminante. Algemadotira iniciava sua trajetória na defensoria pública. Sua primeira e única derrota. Na verdade, ele não contabiliza como uma derrota, o morto nem chegou ao julgamento, foi reabilitado por essas coisas desconhecidas das bruxas e divinos. Ficou o dito pelo não dito. De qualquer maneira, a caminho do buraco no chão, o morto espatifou no plano batido e avermelhado da estrada, aquela terra poeirenta parecia carregada de impaciência para comê-lo. Fundo falso. O plantado ficou pelo chão. Os convidados se olhando sem saber o que fazer. O fundo do caixão era dessas madeiras de compensado. Cedeu e deu vexame. Miséria pouca é bobagem. Carregaram o patife nos braços até o buraco. Depois foi só jogar a terra por cima.
Vez que outra, lhe vinham esses pensamentos filosóficos e se perguntava por que escolheu esse jeito de ganhar o seu caro sustento de viver
(Não existem inocentes, todos são culpados.) repetia para si, buscava o cômodo convencimento. Para cada serviço de limpeza que era contratado, calculava a melhor a história do acusado, para então, desvendar que tudo é presumível. E a dúvida ficava entalada na cabeça dos jurados, ninguém quer fazer injustiça com as próprias mãos. Por isso, o contratam para ajustar o destino pelo justo.
Então, culpados ou inocentes pagam bem caro por sua consideração cuidadosa e instantânea, não reclamam do preço. Os miseráveis são enterrados na prisão porque não pagam os seus serviços. Quem paga tem a sua preferência e não conhece xilindró. As leis são feitas para favorecer todos, inclusive, e especialmente, os culpados.
Logo ele, rico de tanto trabalho, carregava tanta amargura. Um mundo mau que consente o cinismo espaça as pessoas da compaixão com amorosidade. Para Algemadotira, somente outro jeito de ganhar a alimentação folgada. Fica ali, sentado, com o dedo no nariz, desalinhado da própria vontade de ferro
(Dane-se o mundo) acaricia minhas pernas, tenho pernas bonitas. Sinto-o aborrecido.
Gosto quando ele está em estado comatoso, senta ao meu lado e me procura como se fosse sua gueixa. Adora as orientais, são tão silenciosas e comedidas. Fico quieta, apenas abro um pouquinho de nada as pernas. É uma abertura simbólica. Ele me entende mais que eu mesma.
Passado um tempo de cansar a espera, a dona Cogitabunda reentra, tento me recompor. Ela finge que não existo
(Dr Algemadotira, eles estão muito ansiosos) (Eles quem?) (O pessoal que está esperando.) (O que foi?) (Parece que o rapaz matou um sujeito...) (Tá, manda entrar, resolvo esse indivíduo e... chega.) (Todos?) (Todos quem?) (A família...) (Não, que fiquem vigiando, mas lá de fora.)
O fastio já não é apenas na aparência, vem junto com a falta da vontade de agradar, ser gentil. Está em estação de ficar afronhado, até se restar no feitio da fronha. Amarrotado. Enxovalhado. Amarfanhado.
É tudo igual. As mesmas respostas e as mesmas perguntas, o advogado do diabo começa perguntando sempre do mesmo jeito, como um pai atento e interessado, mas querendo saber como irá comer a vizinha. Todos são culpados, depende da história que se conta
(O que foi, meu filho?) (Esse meu amigo, que eu matei, tomou todas as cervejas comigo, fechamos o boteco, doutor, e depois me estranhou.) (O que ele fez?) (Puxou da faca e partiu pra cima.) (De quem?) (De mim, doutor...) fácil de resolver, legítima defesa. Algemadotira já contabiliza mais uma vitória no seu quadro de medalhas
(O que você fez?) (Tirei a faca dele e dei uma facada.) (E...) (Morreu, mas eu to com a faca aqui...) (Não, você não está com a faca.) (To sim, doutor, quer ver?) (Nãoooo, você não está entendendo) é difícil lidar com a ignorância, por sorte, é uma estupidez apatacada
(O que eu faço, doutor?) (Você não está com a faca.) (Mas eu to sim, doutor) (Nãoooooooo, essa faca, pelo que você sabe, está no fundo do rio.) (Mas como?) (Você vai pegá-la, longe de mim, embrulhar numa pedra e jogá-la no rio) (Desse jeito, ninguém encontra...) (Isso, você entendeu, já iniciamos a sua defesa.) (Sim, doutor.) outro caso resolvido, se todos fossem tão fáceis
(Dona Cogitabunda!) (O que foi, Dr Algemadotira?) (Esse rapaz já está de saída, amanhã você retorna, com uma cara mais mansa e um olhar triste.) (Obrigado, doutor) (A justiça precisa levar vantagem.) (É verdade...) (A verdade nada tem com isso, ela é contingente.) (O quê, doutor?) (Nada, esquece rapaz.) e me paga.
De novo, sem entusiasmo, a solidão lhe cobra um preço alto. Nota que vem de muito esse tempo de perder as próprias forças para o desânimo. Precisa ainda ler aqueles depoimentos todos
(Cogitabunda...) (Sim, Algemadotira...) (Menina, vá para casa. Hoje, eu fico no isolamento do falatório escrito.) (O que tu procuras?) (Acolhimento e considerações para o possível de não ter acontecido.) (Querendo virar do avesso o já declarado.) (Isso mesmo.) (Boa noite, então.) (Boa noite.) sinto a dor do desperdício, toda oferecida, mandada embora
(Vá descansar.) me apronto para uma noite de trabalhos.
Já faz um bom tempo de anos, venho cogitando de mandar pregar, em algum lugar seguro, esse tal Algemadotira, mas ele sempre escapa pelas frestas dos meus dedos. Tenho dedos muito magros.
O Algemadotira me conhece pelas intimidades, tem todo tempo para ensaiar o tal escapamento pelas rachadelas da lei. Treina e exercita, e adestra, busca a perfeição, está tudo escrito, basta decorar.
Por mim, ele ficaria trancado, por muitos anos, mas isso não depende dos meus desejos. As palavras jogadas em minha sala não buscam a verdade. Eu, não acredito na verdade, só em mim. Esse tira algemas, também, só crê em si. Mas eu tenho que conviver com as razões alheias, enquanto estão se matando, e daí, trazem para mim os fatos comprovados para abalançar a sua robustidão de crime condenado ou perdoado dos pecados. Tarefa sentimentalista neurótica.
O Algemadotira copia para a memória o que lê e recita, e recita, e recita, inúmeras vezes, até se confundir com a verdade que quer contar. Está confiante, mas já aprendeu a não deixar nada ao acaso. Todos os pontos e todas as vírgulas precisam estar nos seus lugares. Pensa que a minha saúde emocional depende da sua correta orientação. Aprecia ver-me enlouquecida. Sem o uso da razão.
Enquanto relemos aquele ajuntado de folhas, ele roça levemente os dedos em minhas pernas, mecanicamente, me mantém com os olhos vendados. Gosta de me ostentar em sua mesa. Em uma das mãos conservo erguida a balança, e na outra a minha inseparável espada. Meu equilíbrio depende da minha força relutante ao seu fascínio. Anima-se em me seduzir. Para o bem da verdade processual, a mim, é difícil lhe resistir. Enganoso de aparência. O cabritismo da sua língua provoca a minha sensualidade. Exerce o tráfico das influências da carne, aceito o risco.
Enfia as mãos, já está embaixo das minhas fardagens vestais, deixa uma nota de dólar em minha cinta-liga. Seduz minhas partes, amparado na minha inexperiência com carnalidades. Sou gueixa de coração. Carne enraizada.
Obediente, aparto as pernas sem nenhum pudor.
Depois, tudo passa para o tempo do esquecimento, apenas o condenado, e aqui não se leve em consideração o culpado ou inocente,  amarga na lembrança a batida do martelo malvado... talvez, no próximo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário