É apenas o primeiro, faltam 199 outros dias
A novata
baitasar
Acho que os meus colegas de escola conheceram a vila através dos vidros fechados do carro. Chegavam e saiam no carro do papai ou da mamãe. Nenhuma surpresa. O meu itinerário foi parecido até o portão da escola.
No horário combinado o carinha da disciplina baixava a porta de ferro da rua, e aí, para entrar na escola, somente pela portaria da secretaria. Mais burocracia, mais controle. Campainha. Esperar na portaria. Explicações para a porteira.
Lá, na praça do recreio, cercada por prédios e árvores, os reencontros continuavam. Eram muitos, ainda somos muitos,
(Eh, aí, Gustavo?) (E aí, dos meus?)
É o Dalton, aluno do terceiro ano do médio, que chegou cumprimentando o Gustavo. São meus colegas de turma. Estudamos na mesma sala de aula. São uns famosos metidos. Não é um aperto de mãos, mas um pequeno encontro de atitude, com um pequeno soco encurtado de mútuo consentimento. Ritual da tribo. Os dois não sentam. Ficam observando as meninas e falando de maneira aborrecível, pelos subterrâneos da badalação. Usam o mesmo estilo de cabelo arrepiado, fixado com gel e o gênero mamãe sou fortão. Muitos músculos à vista. Quando não estão exercitando os braços fazem exercícios mascando chicle. O Gustavo observa tudo por trás dos óculos de sol Valentino, na cor marrom. Só usa acessórios de marca. Ele parece um acessório de marca. Não é que o sujeito tenha que ser franzino e feio, como eu, para ser classificado como um ser humano razoável, mas o cara pensar sua vida a partir de braços e corpo fortão é idiota,
(Vocês não acham?)
A calça de abrigo espaçosa contraria a camiseta apertada. Olha em redor com disposição de destruir e devorar. Examina e analisa os territórios. Procura aliens, mas as caras já são todas conhecidas. Ali, iniciam a demarcar seu território de autoridade. No plano físico dos atletas embolotados, sujeitos como eu não têm a menor chance com essa raça de esteróides. São de outro planeta. É bordoada certa e falta de ar se tiver que sair correndo. Tenho certeza que esses dois na menor impaciência mudam de cor e ficam verdes.
Sêzar continuava observando. Não tinha muitos métodos de chegar naquela galera, ou qualquer outra, além da certeza do descuido e o receio de ser ignorado, mas o seu medo mesmo era da caspa e das espinhas. Para o garoto parecia que toda caspa do mundo dos aborrecentes descamava em sua cabeça como escamas de peixe, brancas e graúdas. As espinhas e a acne terminaram por acabar com a sua vida social. Lembra que elas começaram nas costas e nos ombros. Ficava se espremendo, enquanto aquelas pequenas manchas foram subindo pelo pescoço até tomarem conta do rosto,
(Como foi nas férias, Dalton?) (Tudo bem!) (Olha aquela ali.) (Quem?) (A Cândida.)
Esses são o Gustavo e o Dalton, no mesmo momento, fazem um sinal com as sobrancelhas na direção da Cândida.
Lá está ela.
Tenho boas e más notícias. A boa novidade é que ela é muito boa. E a má é que ela é muito má. Pra mim é esquisito que tanta perfeição tenha alguma maldade. A beleza por si só é a bondade descida como um manto de inocência. Um anjo angelical. É natural o bonito ser bom e o feio ser ruim, se faz mal para os olhos faz mal para o coração. Adoro contos de fada. A beleza existe para nos salvar da morte.
A feiúra faz mal para os olhos e para o estômago.
Alguém tão feio não tem amigos e os amigos que tem são falsos.Eu sou feio, acho que não existe nenhum homem feio... feliz
Espero que vocês me entendam, tentem pelo menos, eu não acredito que as pessoas possam gostar dos feios. Gente esquisita dá medo. O monstro fabuloso e enigmático disso tudo é que a teoria do belo e do feio não se aplica com essas meninas. São bonitas à perfeição, mas metem medo de arrepios. Os desvios servem para confirmar a regra geral, são belas e feras,
(É lindinha.) (É menina muito parceira. Sei que posso contar com ela a qualquer hora.)
Os dois musculados continuavam sob a enorme figueira que ocupa parte do espaço destapado e reservado ao trânsito dos alunos. Tudo é uma mesma paisagem de excessos. Carne retesada. O Dalton tira as suas lentes escuras Armani, que mais parecem óculos de natação, e deixa em seu olhar uma pequena nuvem de dúvida,
(Você tem certeza?) (Ela é tri!) (Entendi.) (Ih, cara! Ela não é minha mina.) (Tá, tá legal.)
A Cândida também cursava o terceiro ano do médio. Esse era o seu ano. Último ano na escola. Aposto que estava se achando no topo. Nos anos anteriores, sempre amargou alguma menina mais antiga a lhe ditar as regras. Agora, não tem pra ninguém, é a mais velha e a mais linda. As outras meninas devem respeito. Não vai deixar por menos. Usa abrigo marinho do tipo colado e não sai mais. Entre a malha e a garota não existe nada, nem mesmo o vácuo, são duas em uma. Gente, eu tenho que admitir, ela é muito gostosa. E do mesmo jeito muito perigosa. Acho que esse ano ela tá na maldade superior.
Ela e suas amigas polemidades acreditam que mandam no colégio, acho até que mandam, pelo menos nos meus olhos estreitos.
Mais adiante, bem no centro do pátio, a Cândida estava com as colegas do ano passado. Não sabem das turmas, mas fazem planos de continuarem juntas, custe o que custar. Todas têm o estilo das patricinhas da vila, tipo assim, precisando armar um barraco é com elas mesmas,
(Chega de ladaias, é tudo com a gente.) (Nada vai separar essa amizade mara que a gente tem.) (Ai! Viram a saia-blusa que comprei?) (Ai, Cândida! Não vi... que cor é?) (Ai, gurias! É rosa!) (Tenho certeza que é linda!) (Cândida!) (O que é, Leila?) (Conta comigo pra tudo, tá?) (Tá.) (Nos altos e baixos pode sempre contar comigo.) (Legal.) (Não te esquece, a gente te ama.) (Você é a amizade que qualquer pessoa pediu.) (Nossa amizade é verdadeira!) (É pra sempre.)
Essas são as meninas na firmeza e no seu apoio infinito, têm planos de fazer faculdade juntas. Não sei se conseguem. Talvez, uma escola que não precise pensar muito, dessas que se decora tudo. Elas são boas nisso, isso se não casarem antes,
(Nunca vou esquecer aqueles momentos maras que a gente teve no ano passado.) (Gurias, vocês viram?) (O quê, Pati?) (O Júnior apareceu de piercing!) (Ai! Não acredito.) (Então, fiquem na mira.)
A conversa continua animada entre as meninas. Dizem que não fazem fofoca, talvez não, mas acho que todos fazem.
A fofoca tem dono, mas ninguém aceita que faz fofoca. Nem a própria fofoca admite que seja apenas fofoca, sem importância ou despreocupada com a mentira. São os outros que fazem o diz-que-diz-que,
(Pode parar, Pati. Eu não vou ficar cuidando o Júnior.)Tudo segue o mesmo jeito de todos os anos. A novidade fica por conta dos novos cabelos ou celulares com mais toques e imagens, tudo pelo bluetooth. As redes sociais na internet. Mas, quando aquela menina dessemelhante entrou no pátio, foi complicado não olhar. Parecia ausente. Aposto que não queria estar por ali. Chegou com um caderno abraçado no peito e um estojo em uma das mãos. Uma negra contrastando com aquela blusinha branca. Meu Deus ela é linda,
(Tu é gata assim mesmo ou tu te faz?)
Pensei, mas jamais teria coragem para perguntar. Fiz minha aposta. Ela é gata assim mesmo. Seria a rainha de alguma bateria de escola de samba. Não sou penteador, mas arrisco descrever que ela está usando um coque com cachos soltos e as pontas castanhas. Não têm muitas destas por aqui. Pela olhada, todos se fazem a mesma pergunta,
(Quem é essa, Cândida?)
A dúvida da Leila é a nossa dúvida. A guarda-costas da Cândida atira o olhar para a estrangeira recém chegada. A resposta despreocupada da Cândida não mostrava a borrasca que lhe vinha por dentro,
(Não sei, gurias.)
Mediu a novata dali mesmo, pensou consigo,
(Vem confusão por aí.) (Outra ladaia.)
No minuto em que se recobrou, virou de lado e com um olhar ameaçador falou num zumbido,
(Eu sigo em frente, gurias. Hoje, nada vai me abalar.)
Chegou o sinal de início das aulas. Escoava pelo pátio. O aglomerado começou seus movimentos para o anfiteatro da escola. O portão foi fechado. Todos os anos, no primeiro dia, somos reunidos para os mesmos primeiros recados. Chegamos à sala do picadeiro e sentamos nas poltronas vermelhas. Este ano, as paredes estão interessantes com as lindas gravuras feitas por irmãs da congregação Imaculada Sagrada. Gostei. É um grande salão de exposição. Um espaço para as artes sacras. Os grupos continuam montando nas selas estofadas das cadeiras de platéia. O burburinho não cessa, só faz aumentar. A aglomeração na sua maneira quer se mostrar. São assim, têm suas tribos, se vestem iguais, repetem os cabelos, piercing, jeito de falar, gírias, mas no fundo das assombrações de qualquer um, só querem atenção na perspectiva deles mesmos,
(Nós somos nós, os outros são os outros.)
Eles existem para serem observados. Eu existia para observar,
(Ta e aí, o que ta olhando?) (Olha minha cara de apaixonada!)
Com a chegada dos professores e da irmã diretora o falatório diminui até que se acomoda. O silêncio se agiganta, sobe às paredes e escapa dos nossos pés. Cresce e fica imenso. Permanecemos calados. Tudo meio a contragosto. Não tem jeito. É hora de esconder a voz e escutar. Jazemos todos aqui. Acompanhados de gente nova no pedaço. Olho na volta e não encontro a garota distante. Deixo pra lá, tem muito tempo. Depois das bênçãos e palavras de boas-vindas, chegam os avisos. A necessidade de cumprirmos os horários de chegada e saídas da escola. Nenhuma novidade. Um máximo de alguns minutos de tolerância para entrar no início da manhã. Sair mais cedo somente com autorização pessoal ou por escrito do responsável. Não esquecer a agenda de recados em casa, o cartão magnético, blablablá...
(Meu Deus, todo ano a mesma ladainha.) (Calma, Cândida. Já termina.) (Psiu.)
É o disciplinador. Sempre colocado em local estratégico, despercebido dos olhares. Prontidão permanente. Informante desinformado.
Começam as apresentações. Conhecidos e desconhecidos são oferecidos no banquete. No final, após a chamada para as turmas, a irmã diretora faz o anúncio tão esperado,
(Como todos vocês sabem, os alunos do terceiro ano são os responsáveis pelo nosso jornal. Este ano não será diferente. Espero que vocês nos presenteiem com boas edições sobre o nosso cotidiano escolar, bem como, com as notícias relevantes em nossa comunidade. Sejam bem-vindos!)
Estava iniciado o ano escolar.
Os gritos e assobios ensurdecem os ruídos daquele grande salão. Também dei minha contribuição. Joguei meu boné para o alto junto com todos os outros, mas não tão alto. Não sei assoviar, então gritava, mas também não muito alto,
(Último ano!)
Penso que não tem melhor maneira de começar o ano. É permitido o uso de boné no primeiro e último dia de aula. Fora esses dois dias, sem chance. Não passamos na bilheteria. As câmaras de vídeo não liberam a catraca para aluno de boné. Essa regra não tem discussão.
Peguei meu boné e olhando na volta. Aperto a bombinha na mão e a levo à boca. Sem dúvida estamos alegres.
O professor de língua portuguesa admira toda aquela algazarra de alegria, mas aposto que conversa sobre o final do ano. Acompanho seu olhar para o Eduardo, nosso professor de história. Gosto do professor Eduardo e da sua matéria de ensino. Gosto de português, mas do professor... assim, assim. Acho que poderia ser melhor,
(Quantos?) (O quê, Marcus?) (Chegam ao final do ano, com a mesma alegria?) (Não sei, Marcus. Mas não será diferente dos outros anos.) (Eduardo, a cada ano, as histórias se repetem com outros personagens.) (É assim mesmo, cada gênese deve ser educada para não repetir os nossos erros.) (E dá certo?) (Em algumas coisas sim em outras não. Os ciclos da história, meu caro amigo.) (Chega de suposições, vamos recebê-los.) (Certo! Vamos lá.)
Caminham com seus livros para suas salas de aula.
Em nossa escola, os professores permanecem na mesma sala, enquanto os alunos se desconjuntam nas trocas de horário. As salas competem ao professor e não aos alunos. Nas trocas de período a algazarra nos corredores é imensa. Alunos saem da história e se dirigem para a matemática, enquanto outros saem do inglês ou espanhol e vão para geografia,
(Adoro geografia!)
A entrada de cada sala tem o relógio-ponto. Quando chegamos precisamos passar o nosso cartão individual e marcar a presença. No segundo sinal todos devem estar em seus lugares. E o silêncio retorna. Do contrário, os atrasados e barulhentos são encaminhados ao disciplinador e seus recados para os pais. Tudo muito higiênico. Nossos pais adoram tanta organização,
(A vida é assim, meu filho. Precisamos seguir regras, pois quem não sabe o que procura...) (Já sei mamãe, nunca vai saber quando encontrar.)
Pronto, estamos em sala de aula. Cada compartimento tem câmaras de vídeo que observam os movimentos dos alunos e professores. Muitas vezes, a aula é interrompida pela voz delatora que vem de longe e chama a atenção de algum aluno mais disperso. O longo abraço da disciplina. Nos corredores o silêncio é total, brota das paredes brancas como o suor dos rostos na educação física. É inevitável. As câmaras de vídeo também denunciam qualquer animação. Os avanços da tecnologia usados para vigiar e punir.
Ainda, estamos na fase das cortesias. Um senta ali, outro levanta e vai conversar um bom dia,
(Olá, tudo bem?)
A garota desconhecida entrou no maior silêncio, mas não conseguiu ser despercebida. Todos param. Ninguém fala. Estava parada na porta, com seu coque de cachos delicados. Era isso, ela tem estilo próprio.
O destino é imprevisível? Pra uns talvez, mas não pra mim.
A Tamires se aproximou da incógnita, estendeu a mão e o sorriso,
(Oi, eu sou a Tamires.) (Oi, o meu nome é Júlia.)
Pronto, estava apresentada. O burburinho recomeça.
A Tamires mostrava o que fazer com o seu cartão-ponto e improvisava um convite,
(Quer sentar comigo?) (Pode ser... Onde?) (Aqui.)
O professor Ivan entra,
(Bom dia! Desculpem o atraso.) (Ih!)
Foi um lamento geral. Aula de química.
No final da manhã, após o sinal de término das aulas, todos se encaminham para o portão de saída. Lá fora, os carrões esperam para levar às suas casas aqueles jovens. Estudantes do Colégio da Imaculada Sagrada. Nossos pais também não mudaram, continuam estacionando seus carros em fila dupla, na frente da escola. Os demais que esperem,
(Leila, quer carona?) (Hoje, não, Cândida!) (Tudo bem, até amanhã.)
Não muito longe dali, outros alunos também estão saindo do seu primeiro dia de aula. E vamos nos cruzar pelo caminho. Todos carregam os seus livros e falam animadamente. Aguardamos o encontro. Olhamos desconfiados através dos vidros do carro.
Não aparecem. Estranho. Algo deve ter acontecido, pois não os vimos nas ruas,
(Como foi esse primeiro dia, meu filho?) (Tudo igual, mãe...)
É apenas o primeiro, faltam 199 outros dias.
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