quarta-feira, 27 de julho de 2011

Suas peças bucais são grandes e fortes


Formigueiro
baitasar
São dezesseis horas de outra tarde de muitas tentativas solitárias e algumas frustrações. O sinal de término já soou pelos prédios. As formigas se dirigem em fila à sala dos passos perdidos, com geladeira, fogão a gás, forno, pia, cafeteira, paredes adornadas por armários e quadros de avisos, restos de todos os dias.
Olho novamente para o relógio. Quero confirmar-me existindo, não posso, o tempo me desfaz. Sinto-me insuportavelmente vazia. Saio da trilha. Hoje é mais uma terça-feira. Certamente, já estarão quase todas falando alto e escolhendo os mais variados produtos no “mercado persa”, que se transforma esse prédio. Tudo acontecendo entre cafezinhos, chás, bolos, pipoca e chimarrão. Sinto a ansiedade de fazer diferente uma única vez. Desaninhar. Sair da fileira e ficar por conta própria.
Antes de entrar, passo pelo pequeno briquitar instalado no corredor, em cima da fórmica verde. Ao fundo, as paredes avermelhadas de tijolos à vista, os tijolos quando são queimados ficam avermelhados, as formigas quando são queimadas morrem, aqueles tijolos sustentam muitos cartazes em homenagem a memória dos índios que são avermelhados, mas não parecem queimados, foram exterminados
(Nunca vi um índio de verdade.)
Caminho entre balcões, desviando e me esquivando, apenas um descuido e tudo acaba. Sim, estou preocupada. É o momento de olhar, enquanto indagam preços e tomam cafezinhos, o lanche, as guloseimas, para alguns e algumas como eu, é o momento de fumar. Acendo um cigarro. Dou mais uma espiada, conversam e brincam, tendo ao centro o nada; observo os círculos de um grupo para outro, muita aleivosia quando não estamos em fileiras, mas desordenadas.
As palavras pulam e repenicam em todas as direções, não se fazem na discussão, não se alimentam e não têm fome. Preferem das folhas os galhos. Perdidas entre pedras e raízes. Duas mortes. Tragédia. Enfim, o show vai continuar e retorno para a passagem estreita e longa do mercadinho.
Sei que não estou inteira, nem pela metade. Minha vontade é reencontrar o olhar penetrante daquele macho alado, além do caminho coberto pelo intervalo apertado das compras, tomado de mercadorias, um lugar alheio às confidências infecundas, que não dão frutos. Sempre conversamos sobre livros, trocamos idéias, falamos sobre as coisas da vida, do destino, da morte; enquanto fala, meu pensamento viaja tentando vislumbrar segredos, penetrar neste seu mundo escondido como em uma caverna. Não o encontro. Termino meu cigarro e entro no abrigo, parece ser mais seguro.
Alguns trocam sempre as mesmas folhinhas. Não as suporto ― as folhinhas. Outras comem ou silenciam, muitas jorram adjetivos e outros, como o macho alado, lançam-se pacientemente a salvar este mundo, acreditando que é possível.
A voz do Marko, o tal macho alado, vem ao longe, envolvendo meus pensamentos. Não consigo me colocar na discussão, fico alheia. A consciência pesa por deixar Marko sozinho. Ele se recusa participar da fecundação.
 São anos vivendo a partir de diferentes espaços, cozinhas, salas de aula, banheiros, sindicatos, dormitórios, partidos político, jardins, diretórios acadêmicos. Certamente, poderia contribuir, como muitas vezes o faço, mas hoje me sinto insuportavelmente vazia, insurgentemente trágica. Saio para re-fumar
(Ah, finalmente, o vejo!)
exclamo quase sem disfarçar minha ansiedade. Sorrimos
(Achou a minha trilha?) (Já conheço todas as conversas e motivações que acontecem ali.)
diz, enquanto o olhar aponta o abrigo.
Abraço seu sorriso, seu olhar, seu modo de falar, o repertório de sua ternura, sua reticência. O chamam de anti-social, um recluso casmurro
(À qual sociedade deveria você se integrar, a qual destino deveria me entregar?)
Quero ser o alimento, tua comida, tua sede, e ser bebida aos goles, por tuas mãos em minha pele, me salvando de toda essa confusão que é viver, salvando-me da vida. Dá à recordação... tuas mãos, boca, cheiro, que será tudo nosso
(Quanta tentação fugir agora.) (Fugir é o apetite violento a não resistir.)
Resisto. Mudo o rumo da minha voz para impor silêncio
(Como será que me vê, patrão ou joão, senhoria ou maria?) (Com benevolência.)
Outro sorriso e alguns passos para o lado, toma em silêncio o seu chimarrão.
Concordo que a benevolência, clemência e compaixão situam a nossa natureza, determinam as fronteiras do nosso viver coletivo, mas não basta. Não preciso de mais respostas nem de mais perguntas. Acendo outro cigarro, procuro minha paz, mas continuo solidária e em luta comigo mesma, entre ir à colônia ou acompanhar-me sozinha.
Termino meu cigarro, não, ele é que termina comigo aos pouquinhos. Censuro-me.
O macho alado reaparece tomado de decisão, tocamos as antenas e sinto que chegou o momento da fecundação. Voamos. Fui escolhida como uma nova rainha. Ele foi escolhido para me acompanhar no vôo nupcial. Suas peças bucais são grandes e fortes. 

Nosso abraço é definitivo. 
A reprodução é feita.
Pouco a pouco, perco as asas. Sou levada para o berçário, serei tratada como a nova rainha. Ele sabe que está proibido de entrar no formigueiro. Fica pelas trilhas solitárias
Olho em seus olhos, as antenas vibram
(Valeu à pena?)

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