sábado, 16 de julho de 2011

A batida do martelo ficava forte e o prego rasgava as carnes do fundo

Dormia deitada de bruços ao seu lado

baitasar

Supimpa não tinha muitas idéias para encontrar o seu criador, Na dúvida, desça ao inferno, lembrou o aconselhamento do delegado Calçacurta. Decidiu ir até o Porão. Os acontecimentos estavam de pernas para o ar. Nada fazia sentido. Aquela manhã não parecia existir. Lá estava o pesadelo e o torturado, ele.

Quando chegou no inferno foi impedido de entrar nas sombras. Os portões macabros estavam fechados para o torturador. Abotoados como um uniforme impecável. Lá dentro, o inferno engolia corpos em fornos, fuzilaria ou quedas no mar. O fim da linha onde todos devem descer. Campo de concentração organizado na clandestinidade, a morte era a única possibilidade, O que está acontecendo, Não sei, apenas ordens, De quem, Não sei, ordens são ordens, Porra meu, eu preciso entrar, Não vai dar, Então chama quem pode autorizar, Ta louco... essa hora, Merda, eu preciso entrar, Não dá. 

O aprendiz de polícia tentava, na medida da sua força, entrar nos confins da crueldade. Lugar que guarda à destruição. Foi interrompido aos empurrões. Depois de dominado, levado para dentro. E para dentro significava para baixo, para sempre, ninguém escapava do inferno. Entrou. A truculência é vencida de um jeito ou de outro, mesmo quando na aparência a porrada controla o nosso medo. Supimpa estava no Porão.

Aquele que torturava foi levado para a sala do delegado Calçacurta. Estava escoltado por três homens que não lhe dirigiam palavras ou olhares, subiram as escadas até o consultório no primeiro andar. Encontrou o mentor sentado, atrás de sua mesa nua de papéis, despida de qualquer lembrança de humanidade, Delegado, o que está acontecendo, Isso rapaz, não está no meu costume.

Rompeu com o mundo da sua aparência, então, desapareceu mais um desaparecido. Viu a morte da sua gente amassada pela humilhação e seduzida pelo medo. As palavras eram rasgadas da carne. Manualdo assinou, e nunca soube que assinou. Eram coisas insignificantes do próprio torturado. Viu o subscrito da irmã num contrato de trabalho para colaborar com a Segurança Nacional. Ela declarava que seu irmão Lamparina era ligado a grupos subversivos. O aprendiz não tinha mais que obedecer, Por que estão fazendo isso com a minha gente, Caíram porque são subversores, Isso é alguma piada, Coisa séria, Da onde tiraram isso, Investigação, Minha mãe odeia os comunistas, Tudo disfarce.

Supimpa percebeu que o outro lavava as mãos com o sangue da sua gente. Estava sozinho naquela simulação de fazer de conta, Começou com esse tal de Manualdo, O que ele fez, Se meteu com gente da pesada, O quê, Receptou objeto de uma gente que estamos monitorando. E tem mais, ele confessou que começou aquela coisa de esburacar a praça.  

Começava a sentir o medo do jogo que lhe escapava das mãos, E daí, E daí, nada. Depois da coisa se movimentar e soltar os guardiões, você sabe como funciona, não tem volta, E a Maria Memória e o Ogum...

O delegado fez gesto de impaciência, Esses a gente não tem aqui, Ei, ei, sem embolação, é a minha mãe e o meu pai, Opa, opa, o seu pai é outro, É, mas esse cara foi o meu pai, quando o Virgílio se mandou, De qualquer jeito, eles não estão com a gente. História mal contada, mas quem quer ouvir.

Uma coisa o Supimpa aprendeu com o delegado, além de socar ele mente, mas não vai admitir. Muda o rumo da conversa, E a minha irmã... e o Manualdo, O que têm eles, Quando vão sair, Esses a gente precisa que eles assinem alguns papéis, O que eles precisam assinar, Nada demais, leva alguns dias, vai depender deles, Deixe comigo esses papéis, eu os convenço, Não dá, hoje faço acompanhamento da falação de outros presos.

Ele sabia que as certidões da morte já estavam assinadas, agora precisavam de tempo para as feridas cicatrizarem. A conversa ficava na posição de encerrada. 

Saiu dali disposto a procurar o destino da mãe e do pai emprestado. A vigilância foi relaxada. A certeza da impunidade. O pistoleiro-filho saiu do prédio sem guarda-costas. O chefe dos pistoleiros sabia que a Segurança Nacional existia para confundir e acobertar. E o filho sabia onde vasculhar.

Tocava a campainha nervosa, Você..., Vamos continuar de onde paramos, Entra.

A mulher desvestida deu um passo atrás e o rapaz entrou. Andava descolorida de roupas nas ausências do marido. A pele branca, as formas sem exageros, os pelos do monte revoltos, Ia depilar o entranhado das virilhas, Eu continuo...

Não respondeu. Caminhava lentamente. Ia à sua frente, cinicamente acobertada pelo desejo. Não olhava, mas sentia o olhar do manco cravado nas suas carnes. O único estrago era a sua perna manca, mas quem se importa com tamanhos de pernas. Sentia-se despida. Deitou na cama e entregou o pincel do Calçacurta. O aprendiz cobriu com espuma os pelos da sua gula. Movimentos de delicadeza deixavam o pincel escorregadio, molhavam com os sabores da baba espumante. Alongava os pelos com o pente do torturador em uma das mãos e, armado com uma pequena tesoura, cortava-os próximo a carne. Ficavam arrepiados. Raspou a virilha direita, depois a esquerda, enxotava a lâmina pelos desvios, pequenos atalhos, até ficar satisfeito com o alinhamento perfeito das curvas, Acabou, Ainda não...

Enfiou a cabeça e as pernas de Clara consentiram, lambendo-a com vulgaridade e força, como alguém que se apoderava e não compartilhava esperanças. Apenas abriu as calças para libertar o seu prisioneiro. Tornou a enfiar a cabeça entre as pernas de Clara, agora, até o fundo, Pergunta se quero ser a sua puta, Quer ser a minha puta, Eu quero ser a sua putinha, sem-vergonha!

A batida do martelo ficava forte e o prego rasgava as carnes do fundo, Come a sua puta! Meu Deus, que delícia!

Supimpa acordou do silêncio. A mulher estava morrida em sono. Dormia deitada de bruços ao seu lado. Ergueu-se e ficou espigado com suavidade. Recolheu-se para dentro das suas roupas, sussurrando alguma prece sobre todos serem loucos. Desceu nas sombras até o buraco enterrado no chão. O porão dos arquivamentos particulares do Calçacurta, com seu cartório de aço. Uma sala sem aberturas e dezenas de arquivos guardando histórias de terror. O salvo-conduto do delegado. 

Estava isolado do restante do clandestino, uma sala vazia de curiosos. Não sabia por onde começar. Eram muitos arquivos e muitas pastas. Os arquivos da mãe e da irmã estavam ativos, passavam nas mãos dos interrogadores, mas acreditava que poderia encontrar alguma coisa. Um antídoto para a burocracia indiferente e assassina. 

Começou pela letra M, mas nada encontrava em Maria ou Memória ou Manualdo. Foi até a letra C de Cariciosa. Nada. Diabo, não sabia o nome de casada da irmã. Lembrava que a mãe nunca desfez o casamento com o pai. Silva. Esse era o nome que deveria procurar. Estava na gaveta onde se encontrava a letra S e começava sua procura, Santana, Soares, Souza, Santos, Saraiva, Silveira, Sobrinho, Silva... Achei. 

Pegou a primeira pasta e leu em voz alta, Ana Rosa Silva, não conheço. Passou para a pasta seguinte e a voz ficou presa, atravessada na garganta, Virgílio Silva, não pode ser. 

Abriu a pasta e lá estava seu pai. 

Leu os autos de interrogatório e qualificação do processo por razões políticas, Arrastado dos meios ferroviários por envolvimentos sindicais. Leu mais alguns trechos do relatório, O tal Virgílio, mas também conhecido por Valter, Vini, Valtão e Venâncio, caiu chegando no ponto, Quem mais caiu, A amante, uma tal de Ana Rosa, É soldado, Pelo jeito, só deita com o negão, Por que trouxeram a carga, Usamos a carne dela pra fazer a língua do negão amolecer.

Pula alguns trechos do relatório, descrição de tormento que bem conhece, O tal negão ferroviário apresenta desfiguramento total da cara, Senhor Delegado, acho que o negão já era, Respira mal e cospe mais sangue do que o doutor pode impedir, Parece que não tem mais osso completo.

Leu algumas linhas de observação do púbere agente Calçacurta, se iniciando nas técnicas da porrada, acrescentadas ao dossie, Tenho afirmado que os nossos homens precisam de um curso com os gringos sobre essas modernas técnicas de tortura. Se quisermos ter sucesso nessa guerra, temos que deixar num segundo plano esse desperdício de informações que cada morto, por excesso de zelo da nossa gente, deixa de fornecer. Tenho visto que as torturas psicológicas intercaladas com choques elétricos desmontam a maioria das resistências. Sugiro um grupo de estudos para que métodos científicos sejam estudados e usados com urgência. Não podemos desperdiçar informações nesta guerra surda de interrogatórios. Vale lembrar que estamos intensificando nossas ações repressivas e um número crescente de subversivos tende a procurar ações armadas.

O jovem espião não conseguiu desviar os olhos daquele dossiê com sentença de morte para o seu pai, Pessoal, foram com muita força, Calçacurta, aqui na senzala não tem medida, E a mulher... a Anastácia do preto, Vocês sabem como fazer, É só dizer, Tirem a pele e acabem com a tristeza dos dois, Com marcas de enforcamento, Os detalhamentos deixo na sua decisão.

No final, leu aos sussurros os autos médicos e o veredicto, Não resistiu e provocou o suicídio. 

Parou de ler, os olhos e os dedos tropeçavam naqueles papéis amarelados. Pegou um envelope endereçado a ele pelo irmão. Uma carta que nunca lhe chegou. Leu aos goles, comeu os artigos, os adjetivos, somente lhe interessava os verbos e sujeitos, Meu Deus, o meu pai, não. 

Queria sair correndo até sumir, outra voz saída daqueles contracheques informava, O corpo foi enterrado junto com a sua conluiada Ana Rosa Silva, no cemitério municipal, indigentes subalternos. 

Pegou a pasta daquela mulher de nome Ana Rosa e a do pai. 

Fechou todos os arquivos. 

Escondeu a papelada entre o seu corpo e a roupa de polícia. Aqueles panos de polícia que reverenciou e sentia colados à sua múmia, tinham o sangue e as carnes desmanchadas do sofrimento do pai. Esse foi o plano do Calçacurta, nada de confuso, tudo feito para presentear o aprendiz com o cadáver do homem. Estava tenso. Cada movimento o prendia na contextura das mortes tramadas pelo delegado. Não havia escapatória. Até mesmo a cama do andar acima foi preparada por ele. Nada foi ao acaso.

Não tinha mais nada além da escuridão e soube que mereceu. Fez tudo que foi ordenado, deixou ele mesmo para trás. O guri que estava asfixiado pelas próprias mãos. Foi além do mandado e rasgou as carnes que lhe chegaram aos gritos, suplicando que não. Sabiam que não poderia ter gritado, era um fraco. Soberba cinismo impunidade, o manto institucional do Estado, ele era parte daqueles crimes organizados a serviço da Segurança Nacional.

Precisava sair daquelas paredes. Abriu a porta da sala dos arquivamentos, ninguém espreitava. Saiu e fechou a passagem. Caminhou pelo corredor estreito e longo, que o separava da escadaria e o rés-do-chão. Os seus passos precisavam ser enérgicos e rápidos. Subiu as escadas. 

Precisava sair daquele porão. Contrabandeava a única chance da sua mãe e irmã. A arrogância da impunidade do Calçacurta. Nas ruas, Supimpa teve muito que fazer conversar procurar. 

Foi ao cemitério municipal. Um campo de covas rasas. Procurou os registros do sepultamento de um par de indigentes, início do ano de 69. Lá está. Anotou a localização e se preparou para visitar a mansão dos mortos.

Enquanto os vivos dormiam e os mortos passeavam pelas alamedas de pedra, Supimpa voltou com a pá de escavar e os pesadelos que faziam dele o que se permitiu ser. 

Seu pai morreu por nada e ele viveu por nada. A sua alma manca assustava a lua cheia, ela puxou algumas nuvens para escondê-la, a pretura ficou completa.

No lugar marcado com xis em seu mapa, começou a escavacar. As entranhas daquelas terras mortas começaram a abrir e mostravam suas raízes de gordura e acabamento. Exibiam-se sem pressa. O homem escavador não se desesperava.

No início de maneira tímida e desconfiada, mas na medida em que o tempo passava, o suor escorria, semeando sua expiação, ele se aproximava do fim. A tensão o fez mais confiante e decidido. Até que parou sua colher de espalhar a terra. Ela tocou o madeiro do ataúde e o vozerio da canalha torturadora fez silêncio.

Não conseguiam assustar com suas ameaças. A lua cheia fugiu. 

O soldado da vidinha sacana viu o seu passado penetrado na terra. Começou a retirar o chão com as mãos. As madeiras cediam ao menor esforço, não queria destruí-las.

Com nenhum esforço retirou a tampa. Os dois corpos colocados um sobre o outro. A cabeça nos pés de um e os pés na cabeça do outro. Afastou os ossos do pé que estavam sobre a cabeça, e lá estava o seu pai, com os dois dentes de ouro na frente e acima. 

Sentou em silêncio. Não se moveu, apenas ficou ali. Ouvia os passos do pai, sentia os seus abraços de vigor e cansaço. Lembrava de todos aquelas noites de saudade, não tinha perguntas sem respostas.

As lágrimas da memória contavam tudo que ele roubou com suas torturas. 

Aprendeu que esquecer aquele homem durante aqueles anos não apagaram as lembranças. 

Era o menino Supimpa chorando.

Fechou o funeral e rezou com os joelhos dobrados sobre a terra.

Agora o pai foi sepultado.

Escreveu na cruz de ferro... sem número, Aqui dormem Virgílio Silva e Ana Rosa Silva, mortos pelos torturadores da ditadura militar...

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