sábado, 2 de julho de 2011

Machucava outros filhos


Tortura Nunca Mais

baitasar

O irmão da Maria Cariciosa estava em pé, na cozinha. Maria Memória colocou a visão do filho nos olhos, suplicava qualquer palavra para acalmar seu coração. Mas os filhos são assim, auto-suficientes para adormecer o coração da mãe. Têm poucas palavras, são econômicos, falta-lhes a solidariedade das filhas. Duros com as nuances da vida, crescem e secam para o colo materno.

O jovem Supimpa, novo nas ordens de polícia, caminhou até a mãe e retirou a pasta preta das suas mãos. Saiu. Memória permaneceu sentada. Imobilizada pela serenidade muda do filho. Apenas, sua perna esquerda, apoiada na ponta do pé, balançava como um tique nervoso, herança da sua avó. Para cima, para baixo. Era o jeito de a velha ninar os filhos e netos.

O polícia retornou sem a pasta. Fez sinal de silêncio com o dedo indicador. Sentado, se debruçou sobre a mesa. O aprendiz do ofício de atormentar falava do tal Beijamim, Mãe, esse sujeito sonhava com essa merda de homem novo, isso não existe, Meu querido, o amor não consegue desistir da vida simples, Mãe, essa gente é perigosa, tudo comunista. Ela também não gostava dos comunistas. Gente perigosa. Não queria o filho envolvido com esses pervertidos. O seu medo estava carregado com a esperança, mas pressentiu que a morte era inevitável, Esse filho-da-puta não se incomoda com tapas e pancadas.

Maria Memória pediu aos Orixás que o tempo parasse, assim, seu guri ficaria longe daquilo tudo. Ali, na cozinha da sua casa. Protegido. Sentiu medo do palavrório do filho. Sentiu vergonha, Mãe, estamos em uma guerra. Não queria chorar, mas o filho estava crescendo mais que o coração, desorientado do seu colo, um jeito atormentado e desgovernado de viver e morrer, Meu filho, se tu acostuma com coisa ruim, acaba gostando, É isso, mãe, o filho-da-puta gosta de apanhar.

Passou a viver com aquela dor, o seu filho não era o surrado, machucava outros filhos, Mãe, ele foi muito arrogante, Por que, meu filho, Procurou confusão, Como assim, Ele só precisava responder com jeito, exagerou na petulância, Estou sonhando um pesadelo, meu filho. Aquele guri carregava o cheiro do seu leite e pensava que já se tinha feito homem, Mãe, a senhora faz juramento sobre o que vai ouvir, Sim. A mãe decidiu entre a curiosidade e a fatalidade de não poder perdoar.

O Beijamim foi adormecido na pancada.

Levou soco na barriga, as mãos atadas às costas. Mais tapas na cara, babava sangue. O surrado fechou os olhos, a boca e o sentido de escutar. Aquela imobilidade coberta de sangue escorria pelas paredes azulejadas em esmeraldas frias mudas cegas, derramava o rastro vermelho sob o pisoteio indiferente do socador. Mais socos, choques, odores de suor, mijo que escapava, mais fome, Mãe, o sujeito tentou fugir e me deixar apenas o corpo, uma engrenagem biológica sem valor. Não permiti, queria ouvir seus devaneios, Meu filho, Mãe, para o delegado Calçacurta, o nosso País precisa de mais formigas trabalhadeiras, organizadas, ordeiras, altruístas, gente que respeita a autoridade dos seus superiores. Eu concordo, mãe... mais formigas e menos cigarras, Precisava ouvir do filho-da-puta onde estava o ninho das cigarras.

Maria Memória chorava pelo filho que perdeu, mas estava ao alcance das vistas. Derramava as lamentações do canto fúnebre, não mais veria o filho, Mãe, o sujeito suportou cordas, banhos de água gelada, afogamentos, insônia desacordado, tocos de cigarro, choques elétricos, borras e urina na cara.

O jovem aprendiz olhava a mulher humilhada pela dor, Quem é você, Sua mãe, Não tenho mãe.

Indiferente faz falação do fim destinado ao espancado. As imagens estavam ali, na cozinha, a voz do filho desconhecido doía. Ela levava as mãos aos ouvidos. Não era o seu filho, Mãe, o filho-da-puta apanhava como um negro e virava as costas, Chega, a mãe grita para um filho que não tem mais ouvidos para ela, Perdi o controle e a caceteação veio abaixo, o corpo nu na minha disposição, paulada a paulada, a luz de lua cheia dos holofotes me cegava.

Parou de falar, pareceu tomar fôlego, Olhei pelo canto do olho, a platéia estava toda ali, não podia decepcionar, ninguém recuava, nem o tal Beijamim.

O suor do batedor escorria nas lágrimas do homem terra e a sua boca fechada. O grito inacabado não vinha, foi sufocado. Bateu descontrolado como jamais ousou fazer. Alucinado. Cego, O filho-da-puta quase me faz reprovar, Reprovar no quê, Esse puto era a minha presa-cobaia.

Maria Memória não podia mais parar, Que história é essa de preso cobaia, Depois das aulas com projeção de slides, sobre torturas, precisamos demonstrar na prática, Nos presos, Em quem mais haveria de ser, Meu Deus, O pilantra me enfrentou na frente dos outros alunos, não podia deixar passar o desrespeito, Chega.

O preso Beijamim saiu do Porão, cárcere subterrâneo úmido sombrio, no embrulho do pão amarrotado, no lixo jogado ao acaso, Maria Memória... essa é a última vez que conversamos sobre isso. O filho da mãe aprendeu a ser mais intolerável que o tirano severo. Formou na própria carne o ódio e o desprezo pelos fracassados, os presos acorrentados. Bate mais, sempre mais.

Como em um desencanto encantado de dor, a Memória ouve pedidos de socorro que em tempo algum foram reconhecidos, índios, negros, índias, negras, pobres, escravos, meninos das ruas, escravas, meninas das calçadas, mulheres surradas, violentadas, prostitutas, homossexuais, desempregados, famintos, sem-terra, sem-teto, retirantes, desempregadas, famintas, todos abandonados em silêncio. Deixados pelo caminho, pequenos pedaços de acácia queimando pelo sustento do endinheirado, abastado de tudo. Até as cinzas.

Maria Memória ficou encolhida num canto da sua gaiola, enquanto olhava seu pássaro engaiolado.

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