sábado, 23 de julho de 2011

I - Memórias

Éramos o cardápio
Primeiro dia

baitasar

Sêzar não dormia, vigiava os medos que lhe roubavam o sono dos olhos.
Não tenho como desatar minha sombra de mim mesmo, nem tenho como deixar de ir até minhas memórias. Abrir o diário daquele menino franzino e assustado com a tosse, o chiado, o aperto no peito e a charada para respirar. Folhar as páginas dos beijos que nunca deu e sempre sonhou. Todos ácidos como casca de laranja. Esse é o gosto do desobedecido da vontade. Desistido da cobiça. Inerte. Este era eu. Fugi daquele garoto e não sei onde fui parar. Esse é o problema de fugir sem um plano, sem um rumo. Escapar por escapar.
Sêzar não dormia e escutava as vozes que expulsavam o silêncio dos ouvidos, esbugalhavam seus olhos e descosturavam sua boca, para oferecer à escuridão o mais pavoroso dos gritos. O grito do silêncio completo. Calado.
Sêzar dava-se aos fantasmas. Mudo. Debatia-se de um lado ao outro e o suor do seu corpo frágil banhava o catre de todos os seus medos. A puxação do ar o deixava exausto. Os sonhos de Sêzar não caminhavam despreocupados, tinham os braços retesados, balançavam firmes ao lado do corpo. Músculos duros para serem exibidos.
Sêzar tinha medo de morrer. Já sentou tantas vezes, em seu leito, ao lado do esgotamento, que já via naquela senhora uma moribunda cansada dos próprios horrores. Aborrecida de levar consigo as memórias de outra criança. Teve vez que ela pediu calma, levou a mão à testa do guri, o ar entra e a barriga sobe, o ar sai e a barriga desce,
(Só estou cumprindo ordens.)
Sêzar não tinha memórias do vivido. Ele não se oferecia à vida. Ele não vivia além de ficar escondido. Aquele corpo frágil era o esconderijo, aqui dentro ele podia mais do que fazia. O seu mundo de fantasias.
No quarto há uma cama, sobre a cama um homem e sobre o homem um menino com medo. Assustado com os ventos e a vizinhança das almas de um outro mundo, também impossível. Pareceu por aqueles dias que nada lhe seria possível. Encolhido na escuridão respirava boca abaixo. Com o peito inchado como uma pomba procurava o ar que não podia ver, mas que estava ali na sua volta. Sentia os respingos que chegavam aos pulmões doloridos. Rezava pelo milagre de respirar por todas as frestas do seu cadáver de menino.
O menino engolido pela aragem gasosa, submetido comprimido ao ar livre, não tinha aparência nem voz e não dormia. Acreditava que dormindo a brisa lhe passava despercebida e o amanhã lhe viria em atropelos. Preferia ver o tempo se arrastando. Ficava em vigilância quieta, recostado à cabeceira em cinco travesseiros, enquanto os anos, os dias e as horas rolavam de um lado para outro, boca abaixo, aos trancos e barrancos. O puxamento do ar.
Naquela cama tinha um menino e sobre o menino corria um rio teimoso que dormia em movimento. Suas águas escuras repousavam represadas, mas se debatiam até que a estrela-d’alva anunciava a nova oportunidade às margens da via láctea leitosa. E para Sêzar um novo dia nascia velho e invisível. Quieto num canto, cheio de travessuras. E só quando as águas do rio transbordavam da represa corriam por artérias e veias até o mar, e ali, cumpriam o seu destino de transportar vida aos oceanos. Da guimba para o maior que retornava ao menor, através das chuvas alimentadoras das suas nascentes.
Naquela cama tem um homem que conhece cada uma das estrelas daquele rio lácteo. E sobre aquele rio tinha um barco que não dormia. Não queria que o tempo lhe passasse despercebido – por isso navegava rio abaixo e acima. Tinha medo dos lugares que davam passagem e entrada por terra. Não gostava das cavernas.
Naquela cama vazia tinha um menino que ainda não sabe se acordou, mas já vai de um lugar para outro, enquanto a escola o espera. Desesperança.
Os medos foram guardados em pequenas caixinhas. Precisava manter o controle. Arquivo morto de Sêzar.
Repetia para si, olhando para o pequeno espelho,
(Este ano promete.)
Mas as promessas do ano nunca são de verdade, apenas desejos que se repetem, enquanto nada de novo acontece. As espinhas, as pernas finas e a brancura da pele o torturavam. Tudo apontava para um grande fracasso. Mas até o fracasso seria melhor que a transparência da indiferença de todos. Na verdade, tudo seria melhor que aquele cortejo mortuário de olhares e silêncios. Sêzar ouvia aqueles pensamentos ou pelo menos achava que ouvia,
(Coitado...) (Deus me livre ficar com um aleijado assim!)
Analisava com atenção e minúcia as leis da natureza em seu corpo. Examinava a testa, as bochechas magras, o pescoço, os ombros. Jamais se vira sorrindo de verdade. Os risos do menino eram inventados. Treinados à exaustão. Tudo falso, até mesmo o ar que engolia boca abaixo,
(Quero ser outra pessoa?)
Claro, ele queria! Eu também queria. Eu consegui. E Sêzar também vai conseguir.
Coloco o creme na escova e massageio os dentes bem do jeitinho que mamãe ensinava todas as manhãs. Com os dentes de cima movo a escova para baixo e com os de baixo movo para cima. Várias vezes para cada um deles,
(Sêzar, meu filho, tenha paciência, os dentes são para sempre. Algum dia, você ainda vai me agradecer.)
Obrigado, mamãe.
Sêzar estava ansioso, acho que por isso chegou tão cedo. Não queria perder nada. Quase não conseguiu engolir o café, antes de sair. Queria abreviar o tempo e a distância. No caminho viria engolindo as pedras das ruas em passo acelerado e olhos espetados. Ansiava iniciar as boas-vindas ao primeiro dia de aula. Dispensaria a carona da mamãe,
(Mãe, sem essa. Não precisa me levar.) (Mas, meu filho...) (Mãe, eu não quero.)
Chegou de carro com a dona Nívea, mamãe motorista, justo com a abertura do portão. A mãe levou um tempo até acreditar que nem tudo que chiava era asma, mas para Sêzar havia um plano de atitudes da escola numa crise. Confiar na medicação, seguir a orientação médica e chamar dona Nívea. Sempre em estado de alerta. Sempre no nível quatro, mas pronta para subir ao nível cinco.
Foi o primeiro.
Passou pela borboleta, outros o seguiram. Finalmente, conseguiu sorrir. Um sorriso pequeno, mas uma gargalhada descontrolada para Sêzar. Foi para sua aresta ao lado do santuário da Imaculada Senhora. Dali observava reservadamente o ir e vir naquela praça de cimento e ferro. Tinham um acordo, pelo menos esse era o entendimento de Sêzar, eles o deixavam bisbilhotar e fingiam que ele não existia. Não tinha prestígio de influência. Era um nada e só lhe prescreviam pensamentos de cuidados e prejuízo,
(Não vai jogar bola.) (Meu Deus, como está cara a bombinha.)
Olho as paredes, as árvores, os bancos de cimento, os caminhos de pedra e o jardim das freiras. O tempo me invade de saudade. Logo atrás, vem o burburinho. Formigas cortadeiras, jardineiras, trabalhadoras, guardas, vigilantes, saúvas, medíocres. Tem de tudo. Vejo baratas. Os espaços se preenchem ligeiro, desordenados. Como diria o coordenador do pátio e dos corredores, tudo preenchido com indisciplina. É o jeito revolucionário da ternura. O disciplinador quer tudo certinho para manter o controle. A gurizada não quer ser controlada. Querem transformar o mundo com a ternura e a rebeldia. Virar de cabeça para baixo, fazer de um jeito diferente dos nossos pais. Mas como nossos pais. Somos nossos pais.
Chegavam e ficavam espalhados pelo pátio, esperando o sinal. Os papos eram sobre as novidades e as férias. Chegavam caminhando, correndo, de bicicleta ou de carrão.
As vozes elevam-se e saem de todos os cantos,
(E aí, parceiro...) (Nem te falo, cara!) (To preparado pra esmagar os vermes!)
As gangues alienígenas se formam espontaneamente, antigas amizades. Todos uniformizados. Os alunos com seus abrigos ou bermuda marinho, e camiseta branca. As gurias com abrigo ou saia marinha, e blusa branca. Nos dias de frio, usavam blusão vermelho. Um dos disciplinadores ficava no portão, para conferir o uniforme e os recados dos pais. Chegavam pelo portão até o pátio interno. Passavam pela catraca com o cartão magnético. Cada aluno tinha o seu cartão com foto, nome e código de barras. Ali, já ficava registrada a presença na escola. Os cartões eram distribuídos na matrícula. Bastava passar na bilheteria. Todos acomodados em prateleiras... esperando um bom prato de digestão fácil.
Éramos o cardápio.

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