quinta-feira, 7 de julho de 2011

Comunistas desgraçados


Cala a boca!

baitasar

Sábado ensolarado, seco, frio, bem típico do clima nos pampas, sul da América Latina. A ventania do minuano não apareceu, nem a chuva, então, o sol e o chimarrão forneciam o calor e a água indispensáveis ao Manualdo. Sem eles, naqueles períodos de frio intenso, não existiria vida no bugre.

Sentado feito um lagarto ao sol, as mãos aquecidas pelo seio moreno da cuia levavam o chimarrão até a boca, um longo trago no mate. Gostava assim, quentíssimo, a ponto de estropiar novilho curioso que se aproximasse pra experimentar. Enquanto chuchava o seu mate na cuia pequena, deixou o olhar na lonjura do passado. Sentiu saudades das conversas com o pai. O seu velho de muitas histórias. Vida de menino plantador do milho, mandioca, e seus banhos no arroio. O pai nunca saiu das suas terras, não quis mudar de plantação e dono.

O mormaço do corpo sempre carregava junto um lento desfalecimento, o bugre fechava lentamente os olhos. A cuia no colo, afirmada nas mãos, não tinha perigo de cair. A chaleira de ferro com a água do chimarrão era aquecida no fogão de pedra, invencionice do bugre. Um gaúcho sem cavalo e sem botas, fugido do engenho de carne-seca, bugre cor de terra, catequizado, corpo grosso, pés grandes, vagaroso nos seus movimentos, mas de muita persistência.

Lá estava o catequizado, sonhava ou lembrava o arroio Inhacundá, os meninos pelados. Invencionice que seu pai contava. As memórias da meninice do velho.

As curvas sinuosas do arroio, a cabana humilde com o teto de telhas em canoa, tudo enraizava as lembranças no corpo do pai. O velho nunca deixou de ser o guri que foi, parecia que os cabelos se arrepiavam quando lembrava a barranca, flutuava no ar com as pernas encolhidas, os gritos de alegria, os olhos arregalados da satisfação com a vida.

O bugre lagarteava sonolento, Por São Francisquinho, protetor das terras do Inhacundá, esqueci do encontro. Acordou assustado com a lembrança do aniversário da sua Maria. Esqueceu de buscar a encomenda, Merda. Presente de aniversário tinha gosto melhor se fosse dado no dia do acontecido.

Guardou o ferramental do chimarrão e avisou, Minha preta, vou sair, Não se demora, O meu apetite está em casa. Saiu assobiando.

Foi com a andadura do apressamento, as pernas giravam como hélices, o tempo estava apertado para chegar na hora marcada, se não chegasse no tempo ficava sem o presente. Não podia perder o negócio, já tinha dado sinal de intenção, a compra tinha lhe saído quase de graça, não podia perder essa arrumação depois de tudo arranjado. Aliás, foi tudo rápido e estranho. Lembrava de comentar com o Pimentel a vontade de comprar uma bicicleta para sua esposa. Na saída dos empilhamentos já tinha um camarada oferecendo o maquinário.

Chegou.

O vendedor continuava esperando, Achei que o brother tinha desistido, É essa, Como o combinado, com cadeirinha de bebê, E a outra cadeirinha, No embrulho, É isso, ta fechado, Gostei, meu camarada, Até outro dia.

Voltou pedalando, Coitado, me sinto mal com esse negócio, vendeu por muito pouco. Enfim, cada um com seus problemas.

Quando chegou, passou pela Avó que lhe fez aceno de nenhum entusiasmo. A sogra estava em tempo de manter silêncio de conversa. As crianças falavam da lamentação que saia dos olhos da Avó, sem queixas, apenas não conseguia manter as vistas serenas. Na passagem pela tristeza dela, teve certeza que alguma coisa estava acontecendo. Manualdo sentiu no nariz que a mais velha se meteu com bebida encorpada, pareceu vinho. A língua não estava enrolada, mas o aroma saiu todo perfumado das uvas. O tempo se mostra em cada um.

Na chegada, deu um forte assovio, Minha preta, vem cá, O que é... agora, não posso, Deixa de ser chata e vem.

Passaram alguns minutos e a Cariciosa apareceu enrolada em avental branco encardido, molhado da lavação dos pratos, secava as mãos num dos seus cantos, Feliz aniversário, Amorzinho, adorei, Assim, podemos passear com as crianças, uma cadeirinha em cada bicicleta, Adorei, te amo, Vamos experimentar.

Maria Cariciosa adorava ser mimada na surpresa.

Depois de tudo assegurado e averiguado e apertado, colocaram as crianças nas gaiolas de passageiros e saíram. Na saída do cercado, ouviram as recomendações da Avó, Cuidado com as minhas crianças, Não se desassossegue, mamã. O pequeno Abelaira ia com o pai, a Maria Futuro passeava com a mãe. Manualdo e o filho ficaram um pouco para trás.

O entardecer da luz descolorindo naquele arco-íris foi o acontecimento daquele passeio. Sem vento, apenas com aquelas cores tão fortes da passagem do outono para o inverno. O calor azulado foi diminuindo até envolver o sol em uma imensa bola de trapo vermelha, enfeitiçada. Manualdo repetia que o céu avermelha porque se envergonha das safadezas dele com a Cariciosa.

E aquele entardecer parecia ter sido encomendado. O marido olhava às carnes da mulher abocanhando o selim, bem do jeito que adorava se fazer desaparecido, a chicha bem esticada e toda dentro, sumida do próprio corpo pela ganância dos dois. Sentia os arrepios de vontade da mulher.

Resmungava entre dentes do formigamento nas virilhas que lhe subia até a língua, Pareço tarado, meu pai. O velho, por certo, haveria de ter dito, Meu filho, o bicho homem, sacramentado de esposo, não sai por aí querendo manducar a própria mulher, desavergonhado, isso é uma aberração. Não existe.

Manualdo e a família saíram da vila, foram pelas ruas de pouco uso, até chegar à praça dos pedalinhos. Deram algumas voltas no lago e seguiram o passeio nas ruas da Boa Esperança.

Retornaram antes do anoitecer.

O bugre sonhava com sua noite de amor e desaparecimentos.

Jantar simples. Arroz e feijão. O reforço da carne assada e uma salada de agrião. Serviram às crianças q-suco de laranja e abriram uma garrafa de cerveja, que a sede convidava para brindarem.

Depois do jantar, a lavação dos pratos e dos talheres. As crianças já dormiam. 

Começaram os preparativos para as promessas da noite. A luz das lâmpadas apagou e a escuridão chegou ao galope. Procuravam o lampião de querosene. Manualdo riscou um fósforo, Cariciosa ergueu o vidro do lampião, Socorro, eram gritos abafados, Socorro, os chamados pareciam ser da Avó e assustavam pelo desespero, Por favor, não. Saíram correndo. A lamparina ficou esquecida na mesa dos pratos lavados. O aniversário na luz do lampião.

Manualdo ia à frente e a Cariciosa saiu em sua perseguição, mas não tiveram tempo de muitas correrias. Caíram depois de chutar caixas colocadas na porta. Rolavam pelo chão e mãos graúdas agarraram os dois. A jovem fez intenção de gritar, não conseguiu. A mão de um dos desconhecidos a deixou muda com a violência do tapa que recebeu.

Os dois foram agarrados pelos cabelos e arrastados por sombras imensas até a casa da frente. Entraram aos empurrões, rolando na escuridão. Lanternas brilharam e cegavam. Ogum levou um pau arrebatado. Socos, cuteladas, encontrões, a cabeça soqueada contra a parede. Pegaram a Memória pelos cabelos e a obrigaram tirar toda a roupa. Maria Cariciosa agradeceu aquela escuridão, menos uma humilhação para sua mãe, Por que estão fazendo isso, Cala a boca!

Gritava a manada, dentro da casa.

Levaram a mais velha para um dos carros, jogaram a Memória deitada e nua no assoalho. Reviveu a memória do sangue que derramava e o sofrimento dos que viveram escravizados. As cores em preto e branco daqueles choros de submissão às correntes não desapareceram, ainda. O coração lhe dizia que foi jogada em navio negreiro e não voltaria mais. Não soube como ficaram suas crianças. Queria ter dado atenção de despedida. Não houve tempo.

Repetiram a dose com Ogum em outro camburão. Saíram com os dois.

Na casa da frente ficaram Manualdo e Cariciosa. Algemaram os dois e rasgaram suas roupas, macaco vestido é sempre macaco. Silêncio. Os donos do porrete não calavam. Os gêmeos entraram no colo. Cariciosa gritava com todas as suas forças. Enfiaram buchas de jornal em suas bocas. Sentiram o gosto da tinta  escorrendo na garganta. O ar entrava e saia descontrolado. Afogado. Os dois pareciam dois vulcões explodindo em ódio. O menino Abelaira não havia aberto os olhinhos, mas a menina Futuro vinha aos berros. Foram amontoados com a Maria Destino. Agora, os três choravam.

Os gêmeos da Memória estavam escondidos no galinheiro. Agarrados um ao outro no cárcere do chão batido. Não entendiam. Ninguém entendeu. Os bichos do galinheiro silenciaram enquanto os bichos do andar de cima gritavam ameaças.

Manualdo e Cariciosa foram empurrados frente a frente, retiraram as buchas ensangüentadas. Enfiaram os pés dos dois dentro de duas bacias com água. Com pedaços de fios ligados em um aparelhamento, aplicaram choques, Filha de peixe, peixinho é..., Cabelo ruim e bandido é sempre assim, ta na cadeia ou anda armado.

Voltaram a amordaçá-los.

Um dos homens pegou a menina Futuro e a levou até a janela. A filha ficou de cabeça para baixo, estava pendurada nas canelas, gritava, Mamã, mamã. Estendia os bracinhos, Filho-da-puta, filho-da-puta, repetiram com os olhos do ódio. O galo-enfeitado gritou com o pai e a mãe, Olhem, para cá.

Cravaram os olhos naquela mão que empunhava sua filhinha, Vocês vão dar um passeio, se não contarem direitinho tudo que sabem, a gente volta aqui e solta essa menina, mas não se preocupem se ela cair... do chão não passa.

Disse e largou a menina que caiu na direção do chão. Os olhos dos amarrados gritavam com as forças da urgência, o sacrifício das crianças rompeu seus limites emocionais, souberam que foram abandonados. Cessaram os choros. O sossego despedaçou suas vontades de resistir. Mais um choque pelos fios.

A menina apareceu nos braços de outro torturador. Entraram na casa, ele com um sorriso hiena, óculos escuros de armação dourada, um palito entre os dentes, a menina chorando. Colocou Maria Futuro junto ao irmão Abelaira e a caçula da Memória, Na próxima vez, a garotinha não terá tanta sorte.

Aos gritos e empurrões levaram os dois para o camburão, continuavam nus e amordaçados, encapuzados e as mãos amarradas. Uma pequena trégua dos gritos, tapas e choques.

Choravam enquanto o carro passeava pela cidade.

Sabiam que precisavam da voz para suplicar ajuda. Assim, amordaçados e escondidos no escuro, não foram achados pelo Deus-nos-acuda.

O silêncio foi rompido pela algazarra de muitas vozes. Alegres. Pareciam participantes do mocotó na quermesse. Pelo sopro do ar sabiam que alguma porta se abriu, Chuta, negrão, Porra, perderam mais um, Dessa vez, nem com noventa milhões em ação. Foram empurrados e arrastados até uma mesa. Manualdo foi jogado deitado de costas sobre a mesa de metal frio. Sentiu calafrios. Maria Cariciosa foi atirada deitada de barriga sobre o marido. E assim, ficaram.

O tempo inventado deixou de existir.

As lágrimas escorriam e se embaraçavam. Continuavam misturados. Vivos, por enquanto, Chega de namoro, e a Maria foi puxada para o chão. Caiu de barriga, a cabeça sangrava por mais um corte. Saiu puxada para outra sala de tormentos humanos.

No corredor passou por outras portas. Num destes momentos de lucidez, reconheceu uma voz resmungando, Comunistas desgraçados!

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