terça-feira, 19 de julho de 2011

O matador perna-de-pau

Os chifres e o rabo pegando fogo

baitasar

Já houve uma ilha chamada Madalena. Afundou num dia de muita chuva, discursos, orações de reza, ameaça dos comunistas e reforma das terras sem plantar.

Madalena não suportou a pressão das águas de março, as missas, o senso comum das famílias de bem e o martelar ritmado dos coturnos.

Uma sombra que cegou o pensamento. Ninguém podia discordar. Quem desobedeceu foi levado para o desaparecimento. Não estavam para brincadeiras, Comunistas, filhos-da-puta!

Não havia comunistas na ilha mais que os dedos de uma das mãos.

Os depravados de lá, continuaram por aqui, mais safados do que nunca. Não foram afogados, não foram desaparecidos, nunca foram honestos com a vida.

Os mortos de fome continuaram morrendo todos os dias, mas renasciam. Foram feitos de musgos.

As putas estavam mais jovens, tudo estava começando mais cedo.

A vida ficou mais colorida com a televisão. Não imaginava como viveram sem o tubo de imagens, antes da televisão. Se a gente pudesse imaginar antes de inventar.

Os livros precisavam vender mais que serem lidos. E a escola continuava escolhendo mártires para justificar a falta de apetite para educar.

Como não há bem que não acabe, nem mal que para sempre dure, os milicos de coturno e a infantaria dos tanques voltam para os quartéis. Foi uma marcha lenta e gradual, arrastada, como um exército que retorna sem triunfos, lambendo suas feridas.

Os sintomas do navio afundando são os ratos. Não submergem junto. As ratazanas graúdas e miúdas da burocracia influente se preparavam para os novos-velhos tempos.

Sanguessugas filhos-da-puta, que a Caldeira de Pedro Botelho lhes deixe ficar com o cú na mão e com os chifres e o rabo pegando fogo.

Esses sempre se sujeitaram por migalhas.

Tudo foi sendo desfeito para parecer que nada houve. Ditadura (não, governo revolucionário), tortura (perdoar e esquecer são virtudes), mortes subterrâneas (essa gente não morreu, fugiu).

As ratazanas se apropriaram da memória, devoraram a ingenuidade, enquanto o tempo da ferrugem roia a ponte do passado de gritos e torturas.

Foi nesse clima que o perneta Lamparina regressou. O homem da perna-de-pau veio dos matos, barros e malária. Nenhum ouro do garimpo. Matador que se alugava e, na conjuntura dos tempos, em calmarias de matança.

Se parecia com um fantasma que não acreditava num outro mundo sem mortes e sofrimentos.

Mascate da cegueira.

Oficialmente, vendia lentes usadas na frente dos olhos. Serviriam para corrigir a visão e o cego enxergar o que pensa que vê, mas não enxerga. As lentes mostravam o que o sujeito queria ver, então, ele via.

Outro dia, andava de mala na mão, já cansado de vir para cá e lá. Parou numa bodega de estrada com cancha de bocha.

Pediu comida.

Recebeu um prato com macarrão cozido, escoltado por moscas, feito cachorrinhos de estimação. Esqueceu as moscas. O macarrão fumegava, ele não comeria sem os vapores da quentura. Macarrão frio era como servir o sermão dos padres que esfriam os vapores do corpo. Não se submetia aos sermões requentados. O perneta tinha para si, que o sentido da vida está no aroma das carnes perfumadas e roliças.

O cigano perna-de-pau foi um canalha que não resistiu à tentação de ser homem que não prestava. Era assim, nem todos sabiam, mas pouco iria adiantar saber ou não do seu pouco caráter, se enganavam quando precisavam de um favorzinho.

Foi um matador com falta de perna e com sono. Dormia pouco, mesmo assim, só com um olho. Treinou um olho a ficar sempre aberto. Nunca piscava com o olho da realidade. O outro fechava e sonhava que matava. O pai.

Tinha a voz parecida com a do pai. Um dia desapareceria como o pai.

Sentia cólicas. Queria encolher as pernas até se parecer um fruto do girassol.

Os lembramentos ocultos eram restos da memória escondida que não podia lembrar. Não sabia como encontrar o pai escondido.

No tempo da imaginação se inventa outra vida.

O Socador, o Desconfiado e o Manco estavam parados na única saída. Correr ele não correu, seus colhões eram de verdade. Ficaram na distância de um bafejo dos pulmões, Onde está o papai, Quem, O come-come da mãezinha e da vizinha, Não sei.

 O Socador ergue o menino pelo pescoço. Os pés se afastaram do chão e o hálito de pólvora invadiu sua garganta. A voz daquele maldito chegou sussurrando e resvalando por seu ouvido. Teve vontade de mijar naquela cara repugnante deformada, a mijada que não deu escapava pernas abaixo, Onde ele está, esse era o Manco, Fala ou a mãezinha vai dar um passeio, Calçacurta, to precisando da escrava preta. Riam e batiam os chicotes pelo chão.

O menino Lamparina não respirava.

Naquele tempo pequeno de olhar e não entender ou perceber de qualquer jeito, o menino não pode desculpar o pai que tava de coisa com a vizinha. Por isso, quando aqueles homens chegaram juntos, a resposta estava na ponta da língua, Ali.

O seu dedo apontava o esconderijo do pai. As súplicas da vizinha emudeceram.

E a mãe que não chegava.

O perna-de-pau matador fechou o malotão e saiu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário