sábado, 2 de julho de 2011

Ninguém ressuscita do Porão


AI – 5

baitasar

O jovem polícia continuava sentado. Mãe e filho acomodados na cozinha. Ela assustada. Imaginava com medo, tudo que o filho não disse e pode ter feito, Meu filho... conta o que está acontecendo, Não posso, mãe, Aquieta o coração da tua mãe, Não dá. Ele nervoso. Acariciava os nós dos dedos esfolados. Não tinha como começar. Não tinha como falar.

Maria Memória preocupada com os silêncios do filho. Conhecia o guri, ele não abria a boca depois da ordem dada. Decidiu que iniciava sua própria investigação. Depois do café, Supimpa foi para o sono. Por descuido dele e vontade de bisbilhotar dela, encontrou o que procurava. A pasta de couro preto aberta, sem a tranca da fechadura. Abriu o que queria ser aberto.

Encontrou papéis carimbados como confidenciais. Eram recortes de jornais. Pensou que as respostas estavam em suas mãos. Não hesitou. A decisão já havia sido tomada pelo guri. No início, lia constrangida.

( não existem, nestes dias de submissão a ditadura militar, apenas, entocados por suas ideias, um homem ou uma mulher revoltados, somos muitos, amotinados, lutando contra o autoritarismo, com nosso sangue e dor. Os jornais não emprestam sua voz aos inconformados, estão com medo ou foram comprados. Só podemos confiar no povo. Adormecido. Os canalhas percebem a nossa fraqueza, nos socam em farelos, evocam o cheque em branco da Defesa da Segurança Nacional e submetem a vida das pessoas a personalidade doente e criminosa do Estado sanguinário. O povo está alienado )

Um tal Beijamim assinava.

Não entendeu muito bem aquelas palavras, mas estava no bom rumo da verdade, precisava ler com a clareza dos olhos e o juízo apreensivo. Fuçava na pasta, não sabia o que procurava, mas queria descobrir onde o filho se metera.

(os rebentos de musgos, gente que se multiplica em desatino por não saber o que lhes acontece, seguem guiados como cegos, pelos folhetins informativos, jornais cúmplices. Os poderosos vivem inconformados com a possibilidade de um mundo conduzido pelo povo. Gente comum. Negam voz ao povo, mas Giovana grita por Beijamim. Ela é a mulher filha, a mulher mãe, a mulher terra, a mulher tudo.
—        Beijamim, por andam os companheiros e as companheiras que se diziam prontos para as mudanças do velho para o novo, em reuniões secretas, combativas e intermináveis?
—        Minha querida Giovana, eu os vejo por aí, desconfortáveis.)

A mãe lia sem entender. Precisava saber se tudo aquilo era coisa ruim. Enquanto esperava pelo acordamento do guri, percebeu que estava sentindo o mesmo desconforto daquela noite de anúncios no rádio. Tantos anos passados e a mesma aflição. Precisava lembrar de rezar para o padre santo, pedir intervenção dos seus orixás. Essa era uma guerra que a mão não enfrentava sozinha, convocava o auxílio da outra. Uma dotada de sensibilidade e a outra feita de habilidade, juntas eram uma blindagem maciça.

Ela rezava e a memória desafogava do esquecimento. O silêncio invadiu sua cozinha. Voltava até aquela sexta-feira, tantos anos atrás. Estava entusiasmada com a feijoada das boas-vindas. Energia redobrada. Foi até sua vizinha para os convites. Tudo decente e rápido, Bom dia, Bom dia, No domingo vamos fazer feijoada, É, É... e vocês estão convidados, Não sei, preciso falar com meu marido, Vizinha... vocês serão muito bem-vindos.

Aquele dia passou rápido, sem maiores sustos. A noite chegou e a Memória acomodava as crianças no sono. Revistou os cantos e recantos, enquanto escutava as suas músicas no rádio, O que seria de mim sem esse companheiro. Ouviu o locutor, naquela sua boa voz, anunciar uma das suas músicas preferidas, Agora, para as nossas ouvintes, um samba-canção de 61, da autoria de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, na voz de João Dias... Perdão Senhorita. Memória não se conteve e cantarolava junto. Adorava João dias. Fez coro ao cantor, Perdão senhorita se o amor de repente aconteceu...

Num súbito de susto e estremecimento a programação da rádio é interrompida. Começa a tocar o Hino Nacional. Ela estaciona junto das paredes mornas do fogão de pedra, Ué... o que é isto, Boa noite. Uma voz grave e pausada, definitiva, anuncia o discurso do Excelentíssimo Ministro da Justiça, O Presidente da República Federativa do Brasil, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e considerando que a Revolução de 31 de março de 1964...

Maria Memória perde sua atenção daquele falador tão sisudo. Ela está alegre. Convencida da bondade das pessoas. Solidariedade. Fraternidade. Família. Batuque. Deus. Mas aquela voz a persegue, tortura seus ouvidos, O Presidente da República, no interesse Nacional, poderá decretar a intervenção... Deus, ela só quer ser feliz, alguém cale essa boca e toque sua canção, O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio... Deus, ela confia em você, faça alguma coisa, Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a Segurança Nacional... Deus, ela não sabe disso de habeas corpus, ela é negra, passe para o lado dos perdedores, Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus... Deus, não a abandone, ela conta com você, O presente Ato Institucional entra em vigor, nesta data. Revogadas as disposições em contrário. Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República... Deus, cale-se, você não está entendendo nada.

A voz cala e o Hino Nacional retorna. Maria está assustada. Continua parada junto à fornalha de barro. Não chama pelo marido. Está sozinha. Fica em silêncio, talvez nem descubram que eles existem.

A rádio volta às canções.

Olha para os lados. Respira aliviada. Nada mudou para Maria. Foi apenas um susto. Recomeçou o zelo cuidadoso e desconfiado na pasta do Supimpa.

O filho acordou do sono.

Ela pergunta sobre os papéis, Mãe ninguém ressuscita do Porão, deixa os mortos em paz.

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