sexta-feira, 8 de julho de 2011

Minha preta, que belas tardes tive

A noite chegou

baitasar

O dormente estava revestido de botas para invadir e destruir com suas passadas e pisadas a vida brotada por todos os lados, assim, ia e vinha das suas incursões pelos capões da vila.

Seguia comigo em uma das mãos e a térmica com a água quente na sacola, às costas. Procurava uma timbaúva, árvore que se prestava à fabricação de canoas.

Perseguia pista denunciada por um caboclo pardo, na cadeira do dragão, Está tombada lá, por forte temporal. Entrou mato adentro, eu o seguia aos puxões, ele queria que eu apontasse a timbaúva, Eu nunca vi essa tal árvore, Mentira do safado.

Eu sonhava. Ele delirava. Eu mantinha os olhos fechados e acompanhava meu corpo parado. Reconhecia o hálito de socador daquela vila com seus capões de mato e corvo. Ele cheirava a gordura de toucinho e mascava fuma.

Manualdo roçava a própria face, como se estivesse enxugando um pequeno pingo, um tudo-nada, vindo lá do olho. Sentiu necessidade de olhar nos próprios olhos. Um brilhante, como uma estrela pela limpeza e energia, o outro apagado, nadando em lágrimas, fazendo refletir melhor, com sua tristeza, ao olho-estrela.

Enquanto viajava em sonhos, escutava os corvos e os hipócritas, aduladores encontraram a timbaúva. A árvore fora tombada pelo forte temporal. Estava subjugada no chão.

Os homens e as mulheres também tombam por fortes temporais, mas têm o desejo mediando o que vem depois do vendaval. Precisam decidir se continuam tombadas até serem cunhadas para sempre ou se levantam a mão indignadas, Eu não concordo, Não concorda com o que, seu merda. Mais socos, mais choques. Manualdo cuspiu o sangue que o diabo pisoteou.

Nem sempre correr riscos amansa a vida.

Manualdo se lembrava do pequeno hotel da Laurinha, uma senhora forte e decidida, que comandava sua pensão só para rapazes. A especialidade na pensão Dona Laurinha eram os deliciosos bolinhos de arroz banhados em óleo fervente, numa enorme bacia. A dona da pensão perdera a formosidade de boa e gostosa, se tornara pesada em excesso e comida. Mas não perdera o jeito com os bolinhos.

Certa vez, o bugre estava cansado de procurar colocação de emprego, voltou no meio da tarde à pensão. Sabia que no jantar dona Laurinha iria servir os bolinhos de arroz, Hoje, pego os bolinhos bem quentinhos.

Chegou no tempo de espionar a dona Laurinha em banho de assento na bacia dos bolinhos. Ao sentar no bacio, afundava todas as partes impudicas. Era a nudez completa na hora da lavagem.

Aquilo que os olhos não veem, o coração não sente e a barriga se enche satisfeita. A bacia dos banhos de assento acertava no gosto da fritura dos bolinhos.

No serviço de servir a refeição, os bolinhos estavam ali, quentinhos, fumegantes, o Manualdo na fila.

A nossa gula é insaciável.

Faz parte das lendas da vila, o piadístico popular sobre seus ricos, Que mau cheiro, O que, Você está cheirando mal, Só por dentro.

A vila não resistiu e junto com a senhora pesada foi comida. Estrangulamento pelas mesmas mãos que se uniam em prece. Garras misericordiosas que se ofereceram para proteger. Não existiu colheita além do uso que deram à senhora gorda. O ânus de uma ventou com força, enquanto outra soltava com alarde pela boca o ar do estômago. Ninguém se atreveu ficar próximo nem permanecer longe, É o fim, Nunca termina, Cus-de-galinha.

A nossa vida instintiva, se olhada pela cadeia alimentar, é solitária.

Os velhacos infames olham aos pobres, não como gente, mas gado que engordam e matam para o próprio sustento. A fé tem fome, os jornais têm apetite. Juram à mentira, negam a verdade. Fazem as contas e fazem de conta.

Não houve combate, nem temporal, apenas que a timbaúva não se manteve em pé.

Manualdo acordou deitado sobre um colchão. Continuava nu e encapuzado.

A cuia e o chimarrão não estavam por perto.

Tinha os braços e os pés amarrados. Presos ao pescoço. Entre os dedos dos pés sentiu que lhe colocavam pequenos panos. Ouviu seus torturadores combinando às próximas tarefas, Vamos testar à chinesa, Essa eu quero ver, Vem... me ajuda. Molharam seu corpo por diversas vezes, para que a descarga elétrica tivesse mais efeito. Os choques se sucediam... uns fortes, outros fracos, Esse fica louco ou cura a epilepsia.

Manualdo não soube mais quando era dia ou foi noite.

Então, decidiu contar seu tempo de cativeiro. Os dias eram destinados aos suplícios maiores. As noites eram mais breves. Dias longos com noites curtas.

Num dia qualquer, daqueles destinados a surras e sevícias, algo diferente aconteceu. Pela primeira vez, alguém lhe dirigiu a atenção de conversa, Meu Deus, quanto sofrimento nesse homem. Manualdo até que tentou abrir os olhos, Quem é o senhor, Coitado, assim esse jovem..., O senhor pode ajudar a Cariciosa, Posso, Por favor, o que essa gente quer, A timbaúva, Não sei, Você sabe, Nunca vi essa árvore, Viu, você sabe que é uma árvore, Mas eu nunca vi, Rapaz, agindo assim não posso ajudar sua gente, Mas eu não sei, Você sabe, Não sei, Então, lavo as mãos, Por favor, espere, Adeus.

O barulhento seco da porta fechando, a absoluta escuridão e silêncio, trouxeram o terror aos pensamentos do Manualdo.

Chorava por ele e pela Cariciosa, Minha preta, ainda estou aqui, vivo... por favor, fique viva. Pouco a pouco, foi esquecendo-se de si mesmo e dirigiu suas preces à mulher, aos filhos. Sentiu uma imensa e insuperável saudade. Era o único nativo embarcado num daqueles navios negreiros, que retornavam à África, talvez, encontrasse a todos por lá, expulsos desta terra. Arrancados desta gente, desmembrados dos sonhos. Acorrentados, sem nenhuma saída que voltar.

O dia recomeça.

Os torturadores chegaram alegres e falantes, Hoje, ele vai conhecer o pau-de-arara.

Atravessaram uma barra de ferro entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos do torturado. Ficou suspenso entre duas mesas, o corpo matado e pendurado, apenas alguns centímetros do chão.

O primeiro eletro-choque foi dado por um telefone de campanha do exército, com dois longos fios. Um terminal foi ligado na chicha e o outro num dedo do seu pé. Recebeu descargas sucessivas até perder os sentidos da inconsciência. O doutor foi chamado e fez a assistência. Reanimou Manualdo e atestou que ele estava pronto. Um dos torturadores, já impaciente com a demora e tantos cuidados, carregava um tubo de borracha e o enfiou na boca do massacrado.

Derramava água pelo tubo. Outra descarga elétrica obrigou Manualdo a respirar. A força entrou pelo ânus e saiu pela chicha. O afogamento foi inevitável, Minha preta, me faltam todos os pedaços... somos felizes juntos, tudo me faz falta no fim da tarde e no amanhecer.

O doutor foi chamado, novamente, Ele ainda está vivo, Vou examinar, Podemos continuar, Acho... que sim, Vamos descobrir do que esse é feito por dentro. Enfiaram os dois fios desencapados dentro do ânus, Agora vai ser pelo cú, Hahahahahaha...

O seu próprio sangue foi o que pode derramar.

A noite chegou.

Cerrou os dentes. Ficou calado, Minha preta, que belas tardes tive, que cheiros de amor esfreguei em mim, as tuas cores róseas, as umidades e a paixão entregue por tua taça derramava as borbulhas do gozo, que belas tardes carrego em mim.

Esqueceu que podia gritar.

O seu ódio estava vestido pelo silêncio.

Antes de saírem para o intervalo, cada um dos torturadores chutou a cabeça do Manualdo.

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