Descartes
baitasar
Afinal, vou passear. Estou radiante, adoro passar à noite fora.
Em minha juventude viajei muito, convivi com pessoas de diferentes culturas. Quis aprender fora da escola, no mundo. Já faz muitos tempos que não durmo fora de casa.
Essas sacudidelas do andar apressado da Amargadavida me incomodam. Sou puxado da sacola. Estou em suas mãos. Tenta me ler enquanto analiso seus lindos olhos verdes. Arrisco-me pelos cantos das páginas, observo que estamos em uma parada de ônibus. Anoitece e à noite são muitas as possibilidades. Sinto um leve desconforto, não chega a ser medo, mas um arrepio premonitório.
A gôndola do asfalto chega e sou colocado dentro da sacola. Dou um profundo suspiro de alívio. Descuidada, esquece de fechar o zíper. Subimos. Estamos sacudindo e empurrando. Amargadavida paga sua passagem e supera a roleta de controle com uma pequena ajeitadinha de quadril. Ela tem umas larguras desajustadas para aquelas ultrapassagens.
Não há lugares de assentos livres, estão todos ocupados. Vamos em pé. Outra parada, mais empurrões e apertos. Continuo me espichando pela fresta do zíper, vou espiando com atenção e minúcia a nossa volta.
Um homem franzino e com cabelos grisalhos fica ao nosso lado, ele quase não alcança o corrimão aéreo. Um sujeito de óculos, com ar de professor universitário, passa pela roleta, com certeza está muito incomodado com a falta de assento livre, caminha pelo corredor com a cabeça dobrada para frente. O tal professor é maior que a gôndola. Enfia a cabeça na escotilha de entrada do ar fresco. Os ombros pateteiam com o corrimão.
Lá na frente, antes da roleta, uma velhinha fala mal de um rapaz que parece dormir, finge que parece caído no sono
(Foi-se o tempo da cortesia.) (Como é? Desculpe!) (A cortesia com os velhos e mulheres...) (Tá bem, tá bem!)
O rapaz levanta e o seu lugar é ocupado pela senhora do xingamento, com seus cabelos brancos e ralinhos. É isso aí, se a boca não bota no mundo, as coisas não acontecem. Todos aplaudem a velinha. Palmas, gritos e assobios. O rapaz permanece em pé, imóvel. Olhando para frente pelo vidro do motorista. Apenas respira. Os cabelos longos e desalinhados. A jaqueta de couro. Uma tatuagem, tenho certeza que esse carrega alguma tatuagem. Um desajustado. Mas, enfim, o lugar de sentar é da velhinha.
O motorista olha pelo seu retrovisor interno. Tem cara de poucos amigos e nenhuma paciência.
Outras paradas mais passageiros. Na última estação, o recolhimento dos passageiros foi estranho porque o cego viu o ônibus, mas o motorista foi cegado pelos enlatados. Quando a lata de sardinhas iniciava a continuação da viagem, o cego bateu com desespero sua bengala na lataria do ônibus. O cobrador das passagens gritou para o motorista
(Para, para! Tem um cego querendo subir!) (Cego?)
(É... um cego!) intercede a mesma velhinha
(Lugar de cego é em casa.) resmunga o condutor oficial daquele carregamento de gente
Aciona os freios e somos empurrados para frente. Retomamos o equilíbrio e ficamos imobilizados pela inércia da gôndola. O privado da vista recolhe a vareta guia e sobe. Vai se enfiando e passando. Chega ao lado do franzininho e da Amargadavida
(Esse ônibus passa na praça dos pedalinhos?) (Vai até a Boa Esperança, responde minha carregadora) (Obrigado.)
Enquanto muitos são empurrados pela porta traseira, para dentro, alguns são despejados pela frente, em seus lugares de descida. Os compartimentos do ônibus estão com uma grande lotação. O motorista manobra o ônibus e o cobrador, as pessoas
(Por favor, minha senhora, dá um passinho pro lado, libera o corredor.) (Eu não posso fazer nada, tem mais gente que lugar.) (Mas senhora...) (Não tem o que fazer!)
(Eu preciso arrancar o ônibus da parada e os passageiros precisam subir.) (O que o senhor quer que eu faça?) (Se a porta não fecha o carro não se mexe.) o motorista tem razão e não tem.
Os passageiros entram e se acomodam com dá. Todos querem entrar, seguir e chegar. Vão empilhados, enquanto alguns saem em pequenas gotas. Aqui atrás, o destino não é diferente. Vamos sendo amassados em silêncio. Na última fileira de bancos, bem atrás, vão sentados numa só poltrona três meninos. Três irmãos quase gêmeos. Bonitinhos. O garotinho do meio parece um tanto esquisito, cara de choro, com uma cor amarelada. O mais velho cochicha algo para o guri. Sinto pena deles. Mantenho uma vigilância a distância daqueles miúdos
(Deu motora, pode fechar a porta!) (Vamos si’mbora!)
Vou espichando pelo fecho aberto. Está um sufoco aqui na algibeira. Muito alarido nas conversas miúdas. Encontrões e puxões e suor. Desculpas. O grandão não tem jeito de parar em pé. Cansou de ficar enfiado no alçapão do teto, agora, está curvado sobre um passageiro careca sentado. O desconforto dos dois é constrangedor. Não tenho o que dizer. Sinal de parada para o ônibus, mas pelo ar desanimado da Amargadavida não nos compete abaixar do cavalo de rodas.
O arranca e para segue consumindo o tempo da nossa resistência. A cada parada um número geométrico de passageiros sobe, enquanto a conta dos que descem é pequenina. Nunca vi disso, só entram e entram. Creio que o funcionário dirigista da gôndola testa o limite de lotação das sardinhas na mesma latinha. As crianças são puxadas ou empurradas por suas mães. Os suores de todos se misturam e produzem um só cheiro. Um só perfume de passageiro. Cada centímetro é disputado aos empurrões de lá pra cá e daqui pra lá. Naquela amassadeira esqueci os meninos. Já passaram duas paradas desde minha última vigilância de cuidados. Quando voltei minha atenção o garotinho do meio debruçou atrás do último banco e vomitou. Não preciso dizer do meu espanto e desassossego. O pestinha jogou todo o estomago ali atrás. O cheiro típico das porcarias saiu pela boca e começava sufocar
(Abram uma janela, por amor de Deus!) (Tá frio.) (Frio uma merda, abram as janelas!) (Preciso de ar!)
Os pés se pisam enquanto as bundas empurram.
O grandão deita sobre o careca e com sua mão imensa, num só golpe, abre a merda da janela. Olhares de alívio, ninguém reclama. Ele é muito grande. Mas o pior está vindo. Quando a bacia dos vômitos desce a ladeira, embica à frente, e os restos do pestinha se espalham entre os pés dos passageiros. Descem a ladeira do assoalho se misturando aos sapatos e chinelos. Tudo está irrespirável.
Outra parada, o desânimo avança sobre o cardume comprimido. Um gordo muito gordo sobe. O suspiro de espanto é de todos
(Não para mais.) (Toca em frente.) (Tá lotado, motora!)
O volumoso atravessa sobre um ou dois velhinhos, mas não vai além dos degraus acima da porta. Ninguém imagina como ele vai passar. O cobrador recebe a passagem e aguarda. O volumoso nem tenta, ele sabe que falha. O cobrador combina ajudar. Tudo acertado... Eles tentam e falham. A conversa entre ambos é rápida
(Desço por aqui?) (Por mim, tudo bem, mas tem que liberar a porta.)
As pessoas estão assustadas.
Volto os olhos para os guris. Lá estão eles, agem como se aquele caos de cheiros fosse inevitável. Vejo que Amargadavida está com ânsias. Rogo aos deuses que ela não seja outra vítima de vomição. Já ouvi causos de gente que vendo sangue desmaiam ou sendo picadas pelas agulhas de injeção perdem os sentidos da consciência. Faço torcida para que nenhum passageiro dê prolongamento às náuseas por descontrole do estômago.
Lá da frente, vem a voz barulhenta e arrastada do motorista, impertubável como deve ser o grito desesperado de todo líder, direta, obedecida sem qualquer contestação
(Pessoal, estou sem farol de luz, na frente do carro, as lâmpadas não estão acendendo.) (O quê?) (Preciso apagar a luz dentro do carro pra enxergar lá fora!) (Ta brincando?) (É um trecho pequeno, logo adiante dá pra ir com o que tem de iluminação nas ruas.)
O caixão fúnebre fica às escuras, vamos lentamente sendo levados por dentro das trevas. Só espero que o motorista não esteja tão cego como a gente aqui atrás
(O que é isto?) (O que foi?) (Passaram a mão na minha bunda!) (Quê palavrório mais chulé.) (Não foi na bunda de alguém, foi na minha!) (Quem foi o filho-da-puta?) (Gente, por Deus, vamos se respeitar!) (Mãe, eu to com medo...)
Dou uma olhadinha e parece que o guri agora vomita o seu medo
(Mauro, toma conta do Ricardo.) (Ta, ta... saco.)
O nome do guri vomitador é Ricardo, tem um bonito nome esse do estômago de leão. O maior é o Mauro, grande e feio, guri espinhento. O nome do outro com cara de brabo não deu pra descobrir.
Amargadavida tinha se colocado no final do corredor dos passageiros, perto da porta de descida, mas o chão vomitado e a iminência de pisotear aqueles restos põem em fuga a professora e a mim. Vamos para o meio do carro aos empurrões e pedindo desculpas. O fedor pisoteado está insuportável, a escuridão constrangedora e a falta de espaço desesperante. Paramos junto aos bancos onde viajam uma jovem, muita bonita, sentada no lado da janela, ao seu lado, na poltrona do corredor, vai uma senhora cochilando. Pouco a pouco, a velha vai relaxando a cabeça para o lado, até que se recosta no ombro da moça. A jovem sacode os ombros e a senhora cai do travesseiro. A velha está caída de sono, se recompõe, mas no embalo da viagem retorna ao ombro amigo e torna a babar.
A confusão e os resmungos continuam, enquanto o volumoso arrisca seguir em frente. Não consegue nem se virar, mas aos empurrões e amassamentos vai repassando um por um os passageiros daquele cárcere sobre rodas
(Esse motorista não gosta de velho.) (Minha senhora, não é isso.) (Ë isso, sim, o senhor empilha as pessoas aqui dentro!) (A senhora é uma chata, e quer saber? Vá se queixar ao bispo!)
Nem bem terminou de resmungar e a bolsa da velhota subiu acima da cabeça dos demais e desceu certeira no motorista. Juro que ali, naquele ínfimo instante, pensei
(Se a moda pega, lá na escola...)
Por sorte, naquela escuridão, ele vinha lentamente subindo a ladeira. Por isso, e só por isso, o susto não foi maior. O chofer do coletivo encostou o ônibus no meio fio da calçada, desligou o motor, acionou o freio e desceu. Nenhuma palavra, apenas desceu e saiu caminhando. As mãos enfiadas nos bolsos, sem qualquer despedida ou aviso. Não olhou para trás, não houve um até breve. Continuamos pendurados olhando para o homem. Ele parou, acendeu um cigarro e continuou seu andamento. Desapareceu. Ficamos ali de portas fechadas. Quietos. O tempo começava a tomar volume de peso.
Naquela escuridão de urubus nada se via além do realce dos relâmpagos. Parecia estar juntando uma tempestade àquele pequeno caos. Ao longe uma faísca no céu e sobre as cabeças um trovejar ensurdecedor
(Mãe!) (Rogério... fica quieto.)
Bem conhece o gato as barbas que lambe, só mesmo a mãe para saber qual dos filhos lhe pedia socorro, a quem apontar suas preces
(Ave Maria, cheia de graça...)
A porta da frente estava aberta, mas impedida de passageiros. Sem chances de fuga. O big grande está colocado em pé. Olhamos para o cobrador das passagens, ele encolhe os ombros como se tudo aquilo nada tivesse a ver com ele. Os demais continuam serenos. Na verdade, todos acham que o chofer da baleeira brinca e já volta. Algo como ir até a esquina pra esfriar a cabeça. Tomar um cafezinho ou contar até dez, a tentativa de evitar o falado que deveria ficar calado. O tempo daquela inércia começa a tirar do lugar os nervos, aos poucos, uns antes que outros, percebem que tudo aquilo não é brincadeira, ele era um desertor. Acabara de abandonar o direito de ir e vir dos passageiros. O motorista se demitiu e ficamos abandonados nas trevas
(Uma desgraça nunca vem só.) uma voz de homem, no meio do silêncio tímido flutua entre todos os passageiros
(Um abismo chama outro.) do outro pontal do ônibus outra se eleva
Merda, eles estão assustando as pessoas.
Quanto a mim, sabia que o passeio estava sendo interrompido. E aquela aparente calmaria estava precipitando um desastre. Ninguém sabe quem, nem donde, mas todos ouvem
(Peidei!) (Meu Deus!) (Eu preciso sair!) um pequeno empurrão...
O desespero invade a todos como uma turba de madereiros a florestas. De repente o espaço reduzido fica insuportável, as sardinhas fechadas e enlatadas incontroladas. As árvores derrubadas, arrancadas pela origem. O empurra pra lá e de volta pra cá, começa. É luta corporal. Ninguém é de ninguém. As portas fechadas. As pessoas empuxando e amassando. Gritam e pedem socorro. O desgoverno cresce. Amargadavida parada no meio do corredor do ônibus é atropelada de todos os lados, mas se mantém em pé, aplica todos os truques e técnicas de escapar e resistir aos seus alunos. Tanto treino não foi em vão. De mais a mais, naquela escuridão, ninguém vê o que atinge nem mesmo sabe quem lhe ataca. Parece terra sem lei e sem motorista.
A jovem do ombro babado desfere um soco na senhora babona e passa por cima da nocauteada. Pula e arrasta seu corpo pelos bancos, sobre os passageiros. Quer a porta de saída. Quando se dá conta que tudo está fechado, grita. Chama por socorro, enquanto com um dos pés amassa o pescoço da senhora babona de sangue. Não vê mais nada, só quer fugir.
Lá na frente, o gordão cai sobre alguns velhinhos, junto a sua queda escuto nitidamente outro sonoro peido. Esses não escapam. Não se ouvem pedidos de ajuda. A porta de trás está lacrada pelo volume do homem.
O cobrador das passagens assiste ao descontrole pela sobrevivência, ali do seu lugar privilegiado, sentado e com a mão no nariz. As pessoas que passam pela passeio público param, pedem que todos se acalmem. Ninguém ouve. O tempo de falar já acabou. O grisalho franzino some sob os pés dos passageiros. Amargadavida vê o homem e tenta um movimento de auxílio, mas recua. Não pode perder o seu terreno conquistado. Volta a se manter em pé com cotoveladas e empurrões. Olha em seus olhos, o sujeitinho afunda naquele oceano de pés. Vê quando pisam uma, duas, três vezes, no franzino. O homem submerge sem um grito.
Lá atrás, os meninos pularam para detrás dos últimos bancos e ficam entrincheirados entre as poltronas e a casca de lata das sardinhas. Pelo menos as criancinhas estão a salvo. Terão um futuro.
Quem viajava sentado ficou soterrado pela avalanche humana. Os choros, os gritos e as lamúrias são de todos e de ninguém. O funcionário do ônibus saiu do seu assento de público privilegiado, passou por cima do gordo e chegou aos controles. Abriu a porta de saída. O grandão ergueu uma das mãos e acionou a saída de emergência. Na confusão ninguém percebeu o sangue que se lambuza nas pessoas e assentos.
Um a um, vão deixando aquele compartimento de tortura.
As sirenes da polícia já eram ouvidas. Os primeiros que saíram foram estendidos pela calçada. Um coletivo de insanidade, nem mocinho nem bandido.
As crianças choram, a mãe grita desesperada.
Os guris são os últimos.
A senhora babona e o senhor franzino ficaram.
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