terça-feira, 17 de julho de 2012

As lágrimas alagavam

Becos sem saída - O nascimento


IV
baitasar
O doutor plantonista termina o comportamento de revisão com a Cariciosa e acaba com a visitação, afinal, ainda não é hora de felicitação e serviço de acompanhamento é só no privativo — Seu Manualdo, o senhor precisa sair.
—        Já vou.
—        Fica mais um pouquinho, amorzinho...
—        Não vão deixar, minha preta. — pede que se acalme, tudo vai funcionar.
Importava que a Maria Cariciosa estava no alcance das mãos sublimes do doutor plantonista e as confusões dos trabalhos do nascimento nas mãos de Deus. Desenhou o sinal de cruz e moveu os lábios de um jeito delicado e solene, para que os dois – o plantonista e Deus - tomassem decisões de acertar para o seu filho e a sua mulher. Manualdo olhou ao redor e sentiu falta de mais ajudantes-de-ordens, mas ficou calado, não queria preocupar sua Cariciosa. Era muito nascimento em vias de nascerem com aquela dupla de plantonistas de emergência. Já estava se despedindo das rezas quando lembrou de mais uma coisinha, ficou zumbindo na orelha de Nhãnderú
—        Meu Pai, criador de tudo que existe, não deixe de vir a calhar dois nascimentos na mesma hora, o rapaz não vai saber como assobiar e chupar cana... e Deus é apenas o supervisor.  — depois das preces feitas, decidiu dar um enrolão no doutor. Foi ao banheiro. Voltou de toca e querendo arranjar-se com o tapa-boca, resmungava incompreensões de pai angustiado — Só queria saber como é que se amarra esse babeiro na cara. — ficou sem chinelos, descalço, assim mexia melhor de um lugar para outro. Fazia fingimento de médico no labirinto das camas e gemidos, desconfiava que se a segurança do hospital lhe alcançasse seria uma desgraça.
Mas já havia decidido que não ficava longe. A empilhadeira teve que esperar.
Tudo, por ali, na sala branca dos nascimentos, continuava igual. Na espera, na angústia, no medo, no amor, na vontade de tudo acabar logo, ficou ao lado da Cariciosa, aguardando qualquer garantia de que o guri estava vindo — Manualdo... — O que foi, minha preta?
—        Avisa que vai nascer.
—        Tem certeza? — Avisa, por favor.
Manualdo, segurado pela mão da sua Cariciosa, chamou pelo doutor plantonista. Um grito comedido de educação, cuidado de não enervar as outras moças no serviço de parir. Esperou o tempo necessário, ninguém apareceu. Então, fez uso do grito das matas pra assustar assombração — Doutor plantonista! — O senhor por aqui...
A sua mulher não chorava nem gritava, deixava os gritos para o Manualdo, apenas abraçava seus dedos com todas as suas forças de mãe preparando o nascimento — Doutor, acho que vai nascer... — O senhor não pode estar aqui.
—        É que já vai nascer, doutor.
—        Não, ainda leva um tempinho. — Acho que não, doutor plantonista. — o parteiro inexperiente de plantão aproxima para examinar a mãezinha, ergue o lençol e nem precisa enfiar os olhos perto da preta — Caramba, a cabeça já quase se vem vindo!
Manualdo deu um salto, ficou do lado do doutor plantonista. Olhavam a cabeça do guri se enfiando para fora da mãe. O guri ainda não havia escorrido da mãe e as lágrimas ameaçando rechear os olhos do pai — Peludo na cabeça... — O que foi Manualdo?
—        O que a gente faz agora, doutor plantonista? — os dois estão frente um ao outro, os olhos passam pelo salão das barrigas enchidas até o gargalo, prontas para estourar feito a rolha do champanhe, nenhuma ajuda nas vistas — Calma, ainda tem tempo. — Seu doutor, acho que não.
—        O senhor está sabendo alguma coisa que eu não sei?
—        A Maria me cochichou que tá sentindo o nosso bebe passando.
—        Acabei de examinar essa mocinha... — dito e feito, o doutor subiu novamente o lençol e o guri já estava desabrochando — Lá vem ele!
—        O que foi doutor? A minha Maria tá fazendo feio?
—        A cabeça está passando... — Precisa de ajuda?
—        Não. — começaram a correria com a cama e a Maria em cima, até o privativo dos nascimentos. Manualdo fingia que está sentado no muro da escola namorando a sua Cariciosa. Apalpando e apertando. Ela lhe rodeava a mão sem nenhuma xingação. Estava a acalmá-lo. Manualdo, Maria Cariciosa, o doutor parteiro do plantão médico e o guri nascendo. A vida estava chamando e se mostrando para os três. Menina danada feito lua cheia. Boa de namorar. O doutor não estava sozinho, tinha a mãe fazendo força e o pai a desenhar o sinal da cruz
—        Meu Pai Nhãndurú, criador de tudo que existe, é agora a hora do seu reforço de atenção! — estavam juntos, prontos para cantar a vida. Morriam de susto. O pai do nascendo olhava e pedia. Queria imaginar o que dizer, mas nada lhe vinha pela garganta, somente uma frase fajuta e atravancada
—        Tudo vai dar certo, isso é certo, o doutor plantonista tem sabedoria e energia. — a sua preta foi corajosa. Não desviava o olhar e ficava em silêncio, nenhum aiaiai. O pai futuroso reconhecia a dor na Maria Cariciosa, no aperto da sua mão. O aguerrido ficou se apertando com o olhar fixo na cabeça branca daquele doutor, todo de branco — Droga!
—        O que foi, doutor plantonista? — a voz saiu como se uma esfinge estivesse a devorar o coração do Manualdo, pela boca — Uma circular...
—        O que é isto?
—        O cordão do umbigo está na volta do pescoço. — rezou mais forte e pediu que aquele bom homem ficasse muito melhor, guiado pela mão do Criador de tudo que existe. O Manualdo viu, ali do lado da sua Maria, como o coração dentro da sua garganta, quando ele colocou a mão nas pernas da sua preta e fez um movimento de círculo e respirou aliviado — Pronto, tudo sob controle.
Cortou o cordão umbilical e o guri estava solto no mundo, lhe deu coragem de cantar os cantos sagrados do seu povo, adormecidos pelas línguas da cidade. Evocar os sentidos dos espíritos da alegria e da força. Ele e a sua preta tinham recriado a vida com a aprovação de Nhãnderú
—        Parabéns, o nascido é uma menina. — Tem certeza? — o médico os olhou com ternura, resignação de serviço bem feito, mais uma criança é mais uma vitória
—        Seu Manualdo, contra fatos não há argumentos. — Mas...
—        Papai... sem dúvidas, esse bebê é uma menina. — os dois voltam cuidados de atenção à deitada de parto, com as pernas dobradas e atadas na vontade de esvaziar a barriga
—        O que é, Maria? — Tem alguma coisa se mexendo... — ainda com a menina nos braços, limpando seu narizinho e boquinha, escutando seu primeiro chorinho, o doutor olhou para Maria Cariciosa que fez careta de dor. Não havia mais nenhuma confusão — Mais um?
—        Acho que sim, doutor.
—        Mais um o que, doutor plantonista? — Outro.
—        Outro o quê? — Isso mesmo, papai... tem mais um nascendo! — não havia tempo para mais preparativos, nem esperar por socorro, o doutor plantonista chamou pelo pai da guria. Os preparativos já estavam preparados — Preciso de ajuda.
—        O que eu faço? — Segura essa, enquanto trago o outro... — assim, segurando sua filha, Manualdo pensava nos imprevistos da vida e no tamanho da fome dos ajudantes do doutor. Gente pra lá de esfomeada que foi e não voltou. Graças ao Pai de tudo que existe e ao doutor plantonista com olhar de atenção reforçada, os dois filhos planejados por Nhãnderú estão chegando — Amorzinho, não existe sossego nesse nosso namoro.
—        É perfeito... — Nunca mais vou encher a barriga!
Manualdo continuava ali, em pé, segurando nos braços sua primeira filha. Olhava para sua Cariciosa que jurava não querer mais se encher de barriga, ele afiançava que era por causa do calor da hora. Com o tempo, ela mudava de ideia. Sabia que as crianças eram os presentes da vida para eles. A vontade do Pai Nhãnderú falou com eles. Combinava no espírito o que havia de vir, ocupado com um amor maior de profundo respeito. Então, era isso, pensava Manualdo, ter filhos fazem dos adultos flores com frutos. Olhava a filha e imaginava o fruto crescendo, amadurecendo até ser colhido para semear na terra outros frutos, outros perfumes — Minha filha, você é o futuro, a Maria que há de ser.
—        Tudo bem, seu Manualdo? — Perfeito... — a porta se abriu e foi como se todos os homens e mulheres de branco do mundo que foram lanchar, voltassem em correrias. A sala privativa dos nascimentos se encheu, tiraram Maria Futuro dos seus braços de pai, ainda acompanhava com o olho de pai a filha  — Cuidado com a menina!
—        Nasceu e é um menino! — O quê?
—        Papai, parabéns... esse é o guri. — A primeira machadada não derrubou o pau...
Manualdo e Maria Cariciosa se olham, o encantamento entra pelos olhos. Nenhum sorriso, nenhum desespero. Mas o carinho da paixão. Depois veio o medo, em seguida a necessidade de fazer aumentos na casa de fundos — Esse é o nosso Abelaira.
Promessas de amor. Ele ajudou os carijós a nascerem. Transbordava a vontade de chorar e vinha de um jeito sem jeito de reprimir. Gotas de água orvalhada percorreram o caminho do rosto - silenciosas e salgadas - e foram recolhidas pelas mãos da Cariciosa. As lágrimas alagavam. A mãe tinha o rosto do pai nas mãos e o pai tinha a mãe aliviada para amar.
O tempo se passou e não passa.

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