segunda-feira, 2 de julho de 2012

Mocotó


Becos sem saída - Só saio morto
I
baitasar

Esse guri Manualdo tem um jeito muito diferente de se resolver nas indecisões dos outros. Acanhado. Próprio da roça. Jeito ingênuo de sabido. Índio atravessado de fazer o que cisma. Rápido de ir e mais ligeiro de voltar, vai num pé e regressa noutro. Não tem disposição de desistir, nem de ficar dando voltas em redemoinhos de vento. Parece que cresce na direção contrária aos demais.
O jeito roceiro do moço sente a falta de chão pra meter a enxada. A ausência do roçado lhe faz culpa de utilidade. Asfalto e concreto se apoderam da terra, lhe amornam o coração e aumentam a devoção. Por conta disso, fica de juntar panelas e bacias em desuso. Vez que outra, encontra algum vaso com serventia atirado pelo chão do mundo. Recolhe e leva para a sua horta suspensa. Tem a bacia dos temperos. Iguarias de realçar o gosto da comida. Num balde amarelo, sem as alças, cultiva uma pequena laranjeira entre pimentas vermelhas. Enfiada em outro balde tem a babosa, toda espinheta e cheia de poderosos jeitos de curar. O vaso de barro maior sustenta a terra da jovem pitangueira. Tudo mantido num canto do chão cimentado. Algumas suspensas por arames ficam erguidas do chão. As mais leves de peso estão presas nas paredes da sua casinha. Outras recostadas na cerca de separação do vizinho de lado. O campo de plantio do Manualdo está num crescendo de encher os olhos de satisfação. O amor-próprio da laranjeira e da pitangueira está pedindo mais espaço de terra, mas, por enquanto, vão ter que se virar assim. Estão albergadas na espera de tempo da maioridade
—        Meu bugre desavergonhado, essas plantas precisam de lugar de mais buraco e chão.
—        Minha preta, já tenho outro lugar pensado ali na praça.
—        Então leva pra lá essa plantação.
—        Tenho na vontade essa coisa de cheirar mato na volta da casa. — ela lhe explica que a mãe tem feito queixa de enguiço
—        Minha preta, é provisório. — ele sabe que a sogra tem problemas de pisar na terra com os pés descalços, parece que as memórias lhe sobem pelo garrão, tenta se colocar no lugar da outra, lembrando do que precisa esquecer — deixa comigo, eu falo com tua mãe.
—        Faz esse teu resguardo lá pela praça, Manualdo.
Nas conversas de amanhecer com o sogro e a sogra, diz que tá no desejo de plantar alguma coisinha ali na praça, mas que por agora quer servir um mocotó ao seu modo. Maria Memória lhe retruca que mocotó é mocotó, não existe jeito muito diferente de fazer. De qualquer maneira oferece o fogão das lenhas para o cozimento. O bugre se diz agradecido, mas prefere fazer no jeito antigo. Fogo de chão
—        Jeito de escravo — diz para a Memória.
Naquela noite, a filha da Memória puxa conversa, enquanto o Manualdo não cai direto em sono entranhado e desmedido, ela se bota a rezingar
—        Meu bugre, mocotó engorda...
—        Minha preta, mocotó não engorda, quem engorda é você.
—        Manualdo!
—        Minha preta, não se pode comer demais. E barriga carregada de gente é mais rápida no aumento das partes, minha preta.
A inventação da gravidez vai se chegando perto do fim. A hora da parição fica na pequena distância do alcance dos olhos e da imaginação, os receios vêm juntos. As mãos endurecidas do bugre de fretes, burro das cargas, aproveitam para acalmar e acarinhar. O bugre olha pra Cariciosa, lembra-se dos conselhos do velho pai — Filho... mulher e chita cada um acha a sua bonita. — sente dó de si mesmo, não pode lhe dizer que achou a sua mulher, nem fazer gabação de orgulho — A minha preta enche as medidas.
—        Tenho vontade dos carinhos.
—        Amo as tuas carnes, minha preta.
—        Eu também gosto das tuas, mas tenho medo...
—        Eu também, eu também. — ficam enrolados. Um no outro, um do outro, como duas conchas encaixadas. Delicadas. Assanhadas. Baixinho. Sussurrando. Gemendo. Querendo. Derramando amor. O coração do guri faz tremer a cabeça do pai. Repousam escutando o filho. Aquelas batidas fazem repetição. Mãe, pai e filho estão ligados. Os três se aproveitam daquela quentura humana para dormir.
No sábado, pela manhã, Manualdo vai à carniçaria buscar a canela do boi, a lingüiça, a carne de charque, o mondongo. Tem a companhia do Ogum. Enquanto espera na fila olha pelo vidro do balcão das carnes. Na sua vez, reclama e quer desistir de comprar
—        Seu Dormêncio, tá muito caro!
—        É a danada da aumentação dos preços. – o bugre reclama do mistério de aumentar do dia pro outro, um mistério que parece bicho de sete cabeças. O carniceiro põe culpa no petróleo
—        E o que a gente tem com isso?
—        Calma guri, não é com lambança que se pega onça...
—        Mas Ogum, o que a canela do boi tem com esse petróleo?
O carniceiro Dormêncio Tortos ajeita a manga da camisa branca daquele seu braço mais curto, herança da família dos Tortos. Não tem respostas boas, as ideias das respostas não são boas, o cortador com cutelo está mais preocupado em talhar aquela maldita manga que volta e meia lhe fica pendurada
—        Meu rapaz, o preço da carne sobe a cada vez que desce do caminhão.
—        Não acredito, seu Dormêncio.
—        Pois me acredite... o paleteador desce do caminhão com uma aba nas paletas é um preço, quando sobe no caminhão e vem com a outra peça de carne... já é preço maior.
Os dois ficam se olhando sem entender quem dá ordem de mudar tão rápido. Parece que dinheiro pouco é fumaça, desaparece no meio dos dedos. Por conta das suas conversas de amizade com o açougueiro, compra tudo no crédito. A tradição na família dos Tortos é vender fiado pra gente da casa, esses pagam melhor que os bons de dinheiro, isso já vem desde o tempo da bodega do avô Demêncio, que afundou junto com a ilha de Madalena
—        Se não tem jeito no preço a gente leva um pouco menos... vê quanto deu, seu Dormêncio.
Da carniçaria vão ao mercadinho, lá encontram a batata, o aipim, o feijão branco e o queijo ralado, também são dados na confiança, até o próximo sábado. A companhia do Ogum lhe indica os melhores pedaços e porções. Privilégios da idade. Ogum se aproveita das conveniências da juventude do Manualdo e deixa o bugre carregar as compras, discursa sobre as vantagens do boi da canela grossa e as desvantagens do boi da canela fina. Vem pelo caminho ensinando como limpar as partes menos conhecidas e procuradas do chifrudo
—        Escaldar e esfregar sumo de limão na dobradinha pra tirar o cheiro da bosta.
—        Fica melhor de ver e sentir esse aroma.
—        O que não mata engorda, guri.
Quase na chegada, o velho lembra que a goela não pode ficar seca. Faz discurso que mocotó precisa de um bom vinho de acompanhamento, uma coisa depende da outra
—        Tenho sobras de um garrafão...
—        O que fazer? A gente amarra o burro onde o dono manda.
Depois encarregam os meninos de encontrar lenha. Todos, ali na vila, estão a cada dia mais descuidados. Atarefados. Relaxados com o próprio lixo. Tudo se encontra nas ruas. Em seguida de duas viagens a provisão de tocos e gravetos é boa, mas não é abundante. Precisam encomendar lenha cortada, seca e na quantidade de confiança pra terminar o serviço do cozimento do mocotó. O braseiro é importante do início ao fim da infusão. Recebem a notícia que não entregam a lenha em confiança, pagamento à vista. A gentalha da vila não tem boa fama
—        Paciência...
—        Calmo é o nome de um boi velho... — o rapaz não se conforma, vai ser preciso fazer a compra no outro sábado, na próxima sexta-feira sai o pagamento da quinzena. Ogum teima que com aquela lenha já fez muito sopão, mas a cautela do Manualdo prevalece — precisamos de mais lenha.
—        Panela que muito ferve, o sabor perde.
—        Deixa pra mim, Ogum. — planos adiados para o próximo domingo. Passam o restante da manhã pelos cantos das duas casas, protegidos daquele frio e umidade que anuncia mudanças no tempo. O vento do minuano não aparece e o domingo fica com sabor de arroz carreteiro com carne moída de segunda categoria, sebo à vontade e alguns pedacinhos de osso moídos juntos. Isso tudo com a limonada açucarada da Cariciosa. Estão por baixo da passagem de um dia lento e sem novidades.
Na tarde, todos comem moscas e tomam chimarrão, reunidos na frente do televisor. Um calor ameno se chega por conta do fogo brando mantido na fornalha de ferro e chaminé. Cada um, na sua vez, levanta e joga um toco ao fogo. Os gêmeos brincam de contar as frestas nas paredes, buracos onde a luz se enfia pra dentro e o ar aquentado se desfaz como a fumacinha do cigarro do Ogum
—        Meu nêgo... precisamos encerrar com as lenhas e usar fogão de gás.
—        Deixa nascer esses curumins que vêm por aí.
—        O que tem a ver uma coisa com outra coisa?
—        Eles tem barriga grande...
—        Pecado de dizê.
—        Não vamos desviar o olho, deixa tudo isso se passar.
—        Menino, vai lá e coloca lenha no fogo. — o Boaventura se ergue e aviva o fogo, com um pequeno graveto em brasa repõe chama no toco do pai.

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Leia também: 
13 - Não existe bem que nunca acabe, nem barata em galinheiro 

15 - No panelão do mocotó

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