Becos sem saída - Só saio morto
I
baitasar
Esse guri Manualdo tem um jeito muito diferente de se resolver nas
indecisões dos outros. Acanhado. Próprio da roça. Jeito ingênuo de sabido.
Índio atravessado de fazer o que cisma. Rápido de ir e mais ligeiro de voltar,
vai num pé e regressa noutro. Não tem disposição de desistir, nem de ficar dando
voltas em redemoinhos de vento. Parece que cresce na direção contrária aos
demais.
O jeito roceiro do moço sente a falta de chão pra meter a enxada. A
ausência do roçado lhe faz culpa de utilidade. Asfalto e concreto se apoderam
da terra, lhe amornam o coração e aumentam a devoção. Por conta disso, fica de
juntar panelas e bacias em
desuso. Vez que outra, encontra algum vaso com serventia
atirado pelo chão do mundo. Recolhe e leva para a sua horta suspensa. Tem a
bacia dos temperos. Iguarias de realçar o gosto da comida. Num balde amarelo,
sem as alças, cultiva uma pequena laranjeira entre pimentas vermelhas. Enfiada
em outro balde tem a babosa, toda espinheta e cheia de poderosos jeitos de curar.
O vaso de barro maior sustenta a terra da jovem pitangueira. Tudo mantido num
canto do chão cimentado. Algumas suspensas por arames ficam erguidas do chão. As
mais leves de peso estão presas nas paredes da sua casinha. Outras recostadas
na cerca de separação do vizinho de lado. O campo de plantio do Manualdo está num
crescendo de encher os olhos de satisfação. O amor-próprio da laranjeira e da
pitangueira está pedindo mais espaço de terra, mas, por enquanto, vão ter que
se virar assim. Estão albergadas na espera de tempo da maioridade
— Meu bugre desavergonhado, essas
plantas precisam de lugar de mais buraco e chão.
— Minha preta, já tenho outro
lugar pensado ali na praça.
— Então leva pra lá essa
plantação.
— Tenho na vontade essa coisa
de cheirar mato na volta da casa. — ela lhe explica que a mãe tem feito queixa
de enguiço
— Minha preta, é provisório.
— ele sabe que a sogra tem problemas de pisar na terra com os pés descalços,
parece que as memórias lhe sobem pelo garrão, tenta se colocar no lugar da outra,
lembrando do que precisa esquecer — deixa comigo, eu falo com tua mãe.
— Faz esse teu resguardo lá
pela praça, Manualdo.
Nas conversas de amanhecer com o sogro e a sogra, diz que tá no desejo de
plantar alguma coisinha ali na praça, mas que por agora quer servir um mocotó
ao seu modo. Maria Memória lhe retruca que mocotó é mocotó, não existe jeito
muito diferente de fazer. De qualquer maneira oferece o fogão das lenhas para o
cozimento. O bugre se diz agradecido, mas prefere fazer no jeito antigo. Fogo
de chão
— Jeito de escravo — diz para
a Memória.
Naquela noite, a filha da Memória puxa conversa, enquanto o Manualdo não
cai direto em sono entranhado e desmedido, ela se bota a rezingar
— Meu bugre, mocotó engorda...
— Minha preta, mocotó não
engorda, quem engorda é você.
— Manualdo!
— Minha preta, não se pode comer
demais. E barriga carregada de gente é mais rápida no aumento das partes, minha
preta.
A inventação da gravidez vai se chegando perto do fim. A hora da parição
fica na pequena distância do alcance dos olhos e da imaginação, os receios vêm
juntos. As mãos endurecidas do bugre de fretes, burro das cargas, aproveitam
para acalmar e acarinhar. O bugre olha pra Cariciosa, lembra-se dos conselhos
do velho pai — Filho... mulher e chita cada um acha a sua bonita. — sente dó de
si mesmo, não pode lhe dizer que achou a sua mulher, nem fazer gabação de
orgulho — A minha preta enche as medidas.
— Tenho vontade dos carinhos.
— Amo as tuas carnes, minha
preta.
— Eu também gosto das tuas,
mas tenho medo...
— Eu também, eu também. — ficam
enrolados. Um no outro, um do outro, como duas conchas encaixadas. Delicadas.
Assanhadas. Baixinho. Sussurrando. Gemendo. Querendo. Derramando amor. O
coração do guri faz tremer a cabeça do pai. Repousam escutando o filho. Aquelas
batidas fazem repetição. Mãe, pai e filho estão ligados. Os três se aproveitam
daquela quentura humana para dormir.
No sábado, pela manhã, Manualdo vai à carniçaria buscar a canela do boi,
a lingüiça, a carne de charque, o mondongo. Tem a companhia do Ogum. Enquanto
espera na fila olha pelo vidro do balcão das carnes. Na sua vez, reclama e quer
desistir de comprar
— Seu Dormêncio, tá muito
caro!
— É a danada da aumentação
dos preços. – o bugre reclama do mistério de aumentar do dia pro outro, um
mistério que parece bicho de sete cabeças. O carniceiro põe culpa no petróleo
— E o que a gente tem com
isso?
— Calma guri, não é com
lambança que se pega onça...
— Mas Ogum, o que a canela do
boi tem com esse petróleo?
O carniceiro Dormêncio Tortos ajeita a manga da camisa branca daquele seu
braço mais curto, herança da família dos Tortos. Não tem respostas boas, as
ideias das respostas não são boas, o cortador com cutelo está mais preocupado
em talhar aquela maldita manga que volta e meia lhe fica pendurada
— Meu rapaz, o preço da carne
sobe a cada vez que desce do caminhão.
— Não acredito, seu
Dormêncio.
— Pois me acredite... o paleteador
desce do caminhão com uma aba nas paletas é um preço, quando sobe no caminhão e
vem com a outra peça de carne... já é preço maior.
Os dois ficam se olhando sem entender quem dá ordem de mudar tão rápido.
Parece que dinheiro pouco é fumaça, desaparece no meio dos dedos. Por conta das
suas conversas de amizade com o açougueiro, compra tudo no crédito. A tradição
na família dos Tortos é vender fiado pra gente da casa, esses pagam melhor que
os bons de dinheiro, isso já vem desde o tempo da bodega do avô Demêncio, que
afundou junto com a ilha de Madalena
— Se não tem jeito no preço a
gente leva um pouco menos... vê quanto deu, seu Dormêncio.
Da carniçaria vão ao mercadinho, lá encontram a batata, o aipim, o feijão
branco e o queijo ralado, também são dados na confiança, até o próximo sábado.
A companhia do Ogum lhe indica os melhores pedaços e porções. Privilégios da
idade. Ogum se aproveita das conveniências da juventude do Manualdo e deixa o
bugre carregar as compras, discursa sobre as vantagens do boi da canela grossa
e as desvantagens do boi da canela fina. Vem pelo caminho ensinando como limpar
as partes menos conhecidas e procuradas do chifrudo
— Escaldar e esfregar sumo de
limão na dobradinha pra tirar o cheiro da bosta.
— Fica melhor de ver e sentir
esse aroma.
— O que não mata engorda, guri.
Quase na chegada, o velho lembra que a goela não pode ficar seca. Faz
discurso que mocotó precisa de um bom vinho de acompanhamento, uma coisa
depende da outra
— Tenho sobras de um garrafão...
— O que fazer? A gente amarra
o burro onde o dono manda.
Depois encarregam os meninos de encontrar lenha. Todos, ali na vila,
estão a cada dia mais descuidados. Atarefados. Relaxados com o próprio lixo.
Tudo se encontra nas ruas. Em seguida de duas viagens a provisão de tocos e
gravetos é boa, mas não é abundante. Precisam encomendar lenha cortada, seca e
na quantidade de confiança pra terminar o serviço do cozimento do mocotó. O
braseiro é importante do início ao fim da infusão. Recebem a notícia que não
entregam a lenha em confiança, pagamento à vista. A gentalha da vila não tem
boa fama
— Paciência...
— Calmo é o nome de um boi
velho... — o rapaz não se conforma, vai ser preciso fazer a compra no outro
sábado, na próxima sexta-feira sai o pagamento da quinzena. Ogum teima que com
aquela lenha já fez muito sopão, mas a cautela do Manualdo prevalece — precisamos
de mais lenha.
— Panela que muito ferve, o sabor
perde.
— Deixa pra mim, Ogum. — planos
adiados para o próximo domingo. Passam o restante da manhã pelos cantos das duas
casas, protegidos daquele frio e umidade que anuncia mudanças no tempo. O vento
do minuano não aparece e o domingo fica com sabor de arroz carreteiro com carne
moída de segunda categoria, sebo à vontade e alguns pedacinhos de osso moídos
juntos. Isso tudo com a limonada açucarada da Cariciosa. Estão por baixo da
passagem de um dia lento e sem novidades.
Na tarde, todos comem moscas e tomam chimarrão, reunidos na frente do
televisor. Um calor ameno se chega por conta do fogo brando mantido na fornalha
de ferro e chaminé. Cada um, na sua vez, levanta e joga um toco ao fogo. Os
gêmeos brincam de contar as frestas nas paredes, buracos onde a luz se enfia
pra dentro e o ar aquentado se desfaz como a fumacinha do cigarro do Ogum
— Meu nêgo... precisamos
encerrar com as lenhas e usar fogão de gás.
— Deixa nascer esses curumins
que vêm por aí.
— O que tem a ver uma coisa
com outra coisa?
— Eles tem barriga grande...
— Pecado de dizê.
— Não vamos desviar o olho, deixa
tudo isso se passar.
— Menino, vai lá e coloca
lenha no fogo. — o Boaventura se ergue e aviva o fogo, com um pequeno graveto
em brasa repõe chama no toco do pai.
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Leia também:
13 - Não existe bem que nunca acabe, nem barata em galinheiro
15 - No panelão do mocotó
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