Becos sem saída - O nascimento
III
baitasar
Naquela
madrugada, Ícaro enfeitava o seu tropel. Apenas o som das suas patas marcava o
chão de terra batida. Faiscavam pelo caminho. Pelo seu dorso erguido se podia
ver o orgulho do bicho. Estava em missão especial, todo alindado em importância
de uso.
Manualdo
olha para a noite estrelada e avista a Lua, índia de muita sabedoria e força.
Não pergunta se foi o tempo certo de semear plantação de gente na barriga da
sua Cariciosa, pede que aquela índia brilhante - e velha - dê as forças para
sua criança andar e ajude nas horas de nascerem os dentes. Ela clareia os
caminhos de buracos e abismos, olha por todos e não reclama do esquecimento. Ele
sente vontade de contar histórias que ouviu no seu tempo de ser criança, sabia
que havia esquecido os costumes, os cantos e as danças. Nhãnderú lhe chamava
pela atenção com aquelas lembranças. Sentiu vergonha dos mais velhos que
ensinam a cultura do seu povo. O bugre prometeu que numa noite dessas em que
ela brilhasse pendurada faria uma fogueira com o filho. E sentado perto do
fogo contaria histórias de onça, cobra. Falaria da alegria e da tristeza, do
bicho-homem e de assombração. Ensinaria sua criança os costumes dos índios, o
respeito à tradição, aos mais velhos e as palavras, elas significam muitas coisas
ao mesmo tempo
— Vamos, Ícaro! alegria de pobre é só por
um dia, então, que seja hoje!
— Isso guri, acelera o tropel. — a
tropeada seguia pelos ecos das ruas vazias, tristes pela falta de gente, ninguém
para ver a elegância daquele cavalo de pobre, ninguém para se mostrar. Estacionaram
na porta da emergência e foram entrando nas correrias com a Cariciosa nos
braços — Não acredito, chegamos ao hospital das maternidades! — o tumulto das
pessoas esperando para serem atendidas e os gritos de dor das que já estavam em
atendimento, não era o melhor lugar para chegar com a afobação de nascimento. O
enfermeiro colocou Maria Cariciosa em cadeira de rodas — Não precisa...
— Não discute com os médicos.
— Trás minha mala, Manualdo.
— Eu entro junto. — Não pode, senhor. — o
caminho da portaria da emergência até a sala de pente-fino, onde Maria
Cariciosa esperava os procedimentos, era um pequeno quadro de indignação e
desprezo com as gentes sem dinheiro. Na bilheteria de entrada, Manualdo encheu
a papelada com sua letra deformada, lentamente desenhada e com muita
dificuldade de se acomodar nas linhas. Numa hora destas sente a falta da
escola, que por certo, ensinava de escrever certo por linhas tortas o bugre com
mania de escrever torto por linhas retas. A escola tem perseverança, só desiste
do que é ruim. Ele é que desistiu da escola. Tinha que carregar essa culpa por
todo o resto da vida. Por isso escrevia o que murmurava ou dizia em voz baixa, apenas
para ter o que escrever.
Esticava
pescoço e pés para ver sua Maria. Tanto papel inútil. Queria estar por lá,
segurando a mão da sua preta. Quando conseguiu retornar dos papéis de
internamento a sua Cariciosa já desapareceu naqueles labirintos brancos. Olhou
para os lados procurando algum lugar para sentar, estava tudo coalhado com o
sofrimento das pessoas. Reconheceu que a sua agonia era menor. Elas gemiam e
seguravam alguma parte do próprio corpo, tentavam a sua maneira aliviar a
própria dor.
Manualdo
reconheceu o enfermeiro que empurrou a cadeira da sua mulher — Como está a
minha esposa? — Quem?
— A preta prenhe em tempo de parir... — Quem?
Ela está bem... — na maior parte das vezes, as pessoas só querem algum
conhecimento da observação do doutor, o coração tranquilo permite que vivam
mais sossegadas — Posso ver a Cariciosa? — Por enquanto, não pode entrar.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, ela está apenas esperando hora de
nascer. — Demora? — Cada uma tem o seu tempo.
— Está tudo bem? O senhor tem certeza? — Sim.
— ele se deixou cair sentado em um banco de madeira, levava a mala no colo. Mas
estava atento, observava com reparo os gritos de espera, nenhum é da sua Maria.
Ele não iria relaxar, olhava no seu redor, estava preso no curral daquelas
paredes brancas, é isso, as pessoas sabem onde nascem, mas não sabem onde
morrem. Despertou daquela preocupação inútil e se deparou com Ogum
— Seu Ogum... volta pra casa.
— Fico mais um pouco.
— Amigo, não tem necessidade. A nossa
menina está nos atendimentos e a Memória há de querer saber alguma notícia. — foram
caminhando até o estacionamento onde o Ícaro ficou ancorado. Estavam nas
despedidas quando o carrinho do Cristurano - aquele que leva e busca na troca por
compromisso de voto - entrou cantando os pneus na curva. Esse fica assim o
tempo todo, pra cá e lá, espalha na vila que faz o trajeto por bondade, mas é
pura bobagem porque bondade não custa favor. A conta sempre aparece em tempo de
votação, os coitados dos necessitados de carona ficam naquilo de uma mão
lavando a outra — Mas o que é isso?
— É o Cristurano da carona caritativa.
— Mais um coitado que o ambulante
transporta. — ficaram espiando o que se sairia dali, daquele carrinho aterrissando
no estacionamento cheio das pressas. Com certeza mais um desgraçado precisado
de atendimento de urgência, gente encurralada pela pobreza e o olho vivo do
dono do boi magro, perdidos que perduram na existência entre a cruz e a
caldeirinha — É a Memória, Ogum!
O tempo
e o alarido pararam observando os dois homens que enfiaram os olhos para os
lados do carrinho de fantoches. Correram para o carro dos transportes
clandestinos, não era invenção, estava acontecendo de verdade — Calma, calma,
tragam uma maca!
— Não precisa... — resmungou Maria Memória
— Uma maca! — tornou a ordenar Ogum
— Uma cadeira é suficiente. — Seu Ogum, a
moça ta entregue... — Obrigado, amigo. — o motorista da ambulância dos votos para
o seu Cristurano fez a sua despedida da cena, o teatro seguiria agora com
outros atores. Suas obrigações eram de carga e descarga. Funciona como um
animal de estimação que lambe as feridas do dono e abana o rabo para as visitas
— Muito tenho que agradecer ao seu
Cristurano.
— Ele lhe conversa em outra ocasião menos
nervosa. — pronto, mais dia menos dia viria essa conta da compensação. Uma enfermeira
chegou com a cadeira, não parecia mais preocupada que os médicos do postinho da
Samdu, olhou para a Maria Memória e apontou para o Ogum — O que está acontecendo?
— Não vê pelo tamanho da barriga?
— Calma! Senhor... — Calma uma ova, o meu
filho não vai nascer sentado na portaria!
— O senhor precisa passar na portaria e
fazer a baixa da sua senhora.
— Onde é isso? — a mulher enfermeira lhe
aponta o longo corredor das paredes brancas. Ogum junta suas coisas dentro da
sacola e se despede da mulher, ela já está nas vias de fato para fazer nascer
esse outro - não sabiam muito do nascediço - que viesse o que tivesse que vir —
Já volto, minha preta.
— Vem comigo, meu nego.
— Já volto, minha preta, já volto. — o dia
foi chegando, assim como a paciência de uma mãe de boa vontade. Nos arredores do
prédio dos nascimentos não tinham galos cantando, eram outros tempos, o movimento
dos carros de boi, carros de praça e machibombos desapareciam por aqueles mares
e oceanos de asfalto. Na chegada do clareamento da noite era quando tudo
acontecia.
O jovem
olhava para o clareamento e pensando no Nhãmãndú, o irmão Sol, evocava a sua
presença para o fortalecimento das Marias. Entrou nos labirintos de branco para
responder o chamado da Maria — Ela está muito nervosa e grita pelo senhor, na
força toda do pulmão. — o pai futuroso levava escondido nos lábios um suave
assovio, para disfarçar os nervos que estavam todos atacados. Olhava com olhos
de patrão para o relógio, o serviço da empilhadeira não ia esperar pelo
nascimento do filho e outro haveria de assentar na sua cadeira de amontoar. Não
tinha o que fazer, sabia que precisava ir para o emprego — Onde posso lavar as
mãos?
— Não há necessidade, é só tempo da
mãezinha se acalmar.
— Mas eu gostaria... — Tá bem, venha por
aqui. — entra por outra sala de vidros. Passa por um corredor cheio de pequenos
quartinhos, fechados por cortinas. Lá de dentro ouve gemidos e imploração de
socorro. Atravessa outra porta e vê a sua Maria deitada. Ela tem as vontades de
gritar, e grita — Onde tu tava, Manualdo? — ele pede que se acalme, aquele
berreiro estava assustando o menino. Ela obedece e ouvem o silêncio. Pela
primeira vez, desde que chegaram, estão juntos
— Acho que deixam ver o nascimento do teu
filho. — Isso... não vão deixar.
— Me sinto melhor assim... juntos.
— Por enquanto eu vou ficando, amorzinho.
— ele necessitava ficar por ali mais que a Cariciosa precisava dele. Todo
nascimento deveria ser com o pai e a mãe juntos, esperando e fazendo nascer — Não
tem mais ninguém? — Foram para o lanche.
— Não se preocupe, o doutor do plantão disse
que está tudo no controle.
— Isso é enganação... ninguém veio me ver,
nem médico nem padre.
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Leia também:
20 - Atrás da cruz, se esconde o diabo!
22 - As lágrimas alagavam
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