segunda-feira, 16 de julho de 2012

Bondade não custa favor

Becos sem saída - O nascimento



III
baitasar
Naquela madrugada, Ícaro enfeitava o seu tropel. Apenas o som das suas patas marcava o chão de terra batida. Faiscavam pelo caminho. Pelo seu dorso erguido se podia ver o orgulho do bicho. Estava em missão especial, todo alindado em importância de uso.
Manualdo olha para a noite estrelada e avista a Lua, índia de muita sabedoria e força. Não pergunta se foi o tempo certo de semear plantação de gente na barriga da sua Cariciosa, pede que aquela índia brilhante - e velha - dê as forças para sua criança andar e ajude nas horas de nascerem os dentes. Ela clareia os caminhos de buracos e abismos, olha por todos e não reclama do esquecimento. Ele sente vontade de contar histórias que ouviu no seu tempo de ser criança, sabia que havia esquecido os costumes, os cantos e as danças. Nhãnderú lhe chamava pela atenção com aquelas lembranças. Sentiu vergonha dos mais velhos que ensinam a cultura do seu povo. O bugre prometeu que numa noite dessas em que ela brilhasse pendurada faria uma fogueira com o filho. E sentado perto do fogo contaria histórias de onça, cobra. Falaria da alegria e da tristeza, do bicho-homem e de assombração. Ensinaria sua criança os costumes dos índios, o respeito à tradição, aos mais velhos e as palavras, elas significam muitas coisas ao mesmo tempo
—        Vamos, Ícaro! alegria de pobre é só por um dia, então, que seja hoje!
—        Isso guri, acelera o tropel. — a tropeada seguia pelos ecos das ruas vazias, tristes pela falta de gente, ninguém para ver a elegância daquele cavalo de pobre, ninguém para se mostrar. Estacionaram na porta da emergência e foram entrando nas correrias com a Cariciosa nos braços — Não acredito, chegamos ao hospital das maternidades! — o tumulto das pessoas esperando para serem atendidas e os gritos de dor das que já estavam em atendimento, não era o melhor lugar para chegar com a afobação de nascimento. O enfermeiro colocou Maria Cariciosa em cadeira de rodas — Não precisa...
—        Não discute com os médicos.
—        Trás minha mala, Manualdo.
—        Eu entro junto. — Não pode, senhor. — o caminho da portaria da emergência até a sala de pente-fino, onde Maria Cariciosa esperava os procedimentos, era um pequeno quadro de indignação e desprezo com as gentes sem dinheiro. Na bilheteria de entrada, Manualdo encheu a papelada com sua letra deformada, lentamente desenhada e com muita dificuldade de se acomodar nas linhas. Numa hora destas sente a falta da escola, que por certo, ensinava de escrever certo por linhas tortas o bugre com mania de escrever torto por linhas retas. A escola tem perseverança, só desiste do que é ruim. Ele é que desistiu da escola. Tinha que carregar essa culpa por todo o resto da vida. Por isso escrevia o que murmurava ou dizia em voz baixa, apenas para ter o que escrever.
Esticava pescoço e pés para ver sua Maria. Tanto papel inútil. Queria estar por lá, segurando a mão da sua preta. Quando conseguiu retornar dos papéis de internamento a sua Cariciosa já desapareceu naqueles labirintos brancos. Olhou para os lados procurando algum lugar para sentar, estava tudo coalhado com o sofrimento das pessoas. Reconheceu que a sua agonia era menor. Elas gemiam e seguravam alguma parte do próprio corpo, tentavam a sua maneira aliviar a própria dor.
Manualdo reconheceu o enfermeiro que empurrou a cadeira da sua mulher — Como está a minha esposa? — Quem?
—        A preta prenhe em tempo de parir... — Quem? Ela está bem... — na maior parte das vezes, as pessoas só querem algum conhecimento da observação do doutor, o coração tranquilo permite que vivam mais sossegadas — Posso ver a Cariciosa? — Por enquanto, não pode entrar.
—        Aconteceu alguma coisa?
—        Não, ela está apenas esperando hora de nascer. — Demora? — Cada uma tem o seu tempo.
—        Está tudo bem? O senhor tem certeza? — Sim. — ele se deixou cair sentado em um banco de madeira, levava a mala no colo. Mas estava atento, observava com reparo os gritos de espera, nenhum é da sua Maria. Ele não iria relaxar, olhava no seu redor, estava preso no curral daquelas paredes brancas, é isso, as pessoas sabem onde nascem, mas não sabem onde morrem. Despertou daquela preocupação inútil e se deparou com Ogum
—        Seu Ogum... volta pra casa.
—        Fico mais um pouco.
—        Amigo, não tem necessidade. A nossa menina está nos atendimentos e a Memória há de querer saber alguma notícia. — foram caminhando até o estacionamento onde o Ícaro ficou ancorado. Estavam nas despedidas quando o carrinho do Cristurano - aquele que leva e busca na troca por compromisso de voto - entrou cantando os pneus na curva. Esse fica assim o tempo todo, pra cá e lá, espalha na vila que faz o trajeto por bondade, mas é pura bobagem porque bondade não custa favor. A conta sempre aparece em tempo de votação, os coitados dos necessitados de carona ficam naquilo de uma mão lavando a outra — Mas o que é isso?
—        É o Cristurano da carona caritativa.
—        Mais um coitado que o ambulante transporta. — ficaram espiando o que se sairia dali, daquele carrinho aterrissando no estacionamento cheio das pressas. Com certeza mais um desgraçado precisado de atendimento de urgência, gente encurralada pela pobreza e o olho vivo do dono do boi magro, perdidos que perduram na existência entre a cruz e a caldeirinha — É a Memória, Ogum!
O tempo e o alarido pararam observando os dois homens que enfiaram os olhos para os lados do carrinho de fantoches. Correram para o carro dos transportes clandestinos, não era invenção, estava acontecendo de verdade — Calma, calma, tragam uma maca!
—        Não precisa... — resmungou Maria Memória — Uma maca! — tornou a ordenar Ogum
—        Uma cadeira é suficiente. — Seu Ogum, a moça ta entregue... — Obrigado, amigo. — o motorista da ambulância dos votos para o seu Cristurano fez a sua despedida da cena, o teatro seguiria agora com outros atores. Suas obrigações eram de carga e descarga. Funciona como um animal de estimação que lambe as feridas do dono e abana o rabo para as visitas
—        Muito tenho que agradecer ao seu Cristurano.
—        Ele lhe conversa em outra ocasião menos nervosa. — pronto, mais dia menos dia viria essa conta da compensação. Uma enfermeira chegou com a cadeira, não parecia mais preocupada que os médicos do postinho da Samdu, olhou para a Maria Memória e apontou para o Ogum — O que está acontecendo?
—        Não vê pelo tamanho da barriga?
—        Calma! Senhor... — Calma uma ova, o meu filho não vai nascer sentado na portaria!
—        O senhor precisa passar na portaria e fazer a baixa da sua senhora.
—        Onde é isso? — a mulher enfermeira lhe aponta o longo corredor das paredes brancas. Ogum junta suas coisas dentro da sacola e se despede da mulher, ela já está nas vias de fato para fazer nascer esse outro - não sabiam muito do nascediço - que viesse o que tivesse que vir — Já volto, minha preta.
—        Vem comigo, meu nego.
—        Já volto, minha preta, já volto. — o dia foi chegando, assim como a paciência de uma mãe de boa vontade. Nos arredores do prédio dos nascimentos não tinham galos cantando, eram outros tempos, o movimento dos carros de boi, carros de praça e machibombos desapareciam por aqueles mares e oceanos de asfalto. Na chegada do clareamento da noite era quando tudo acontecia.
O jovem olhava para o clareamento e pensando no Nhãmãndú, o irmão Sol, evocava a sua presença para o fortalecimento das Marias. Entrou nos labirintos de branco para responder o chamado da Maria — Ela está muito nervosa e grita pelo senhor, na força toda do pulmão. — o pai futuroso levava escondido nos lábios um suave assovio, para disfarçar os nervos que estavam todos atacados. Olhava com olhos de patrão para o relógio, o serviço da empilhadeira não ia esperar pelo nascimento do filho e outro haveria de assentar na sua cadeira de amontoar. Não tinha o que fazer, sabia que precisava ir para o emprego — Onde posso lavar as mãos?
—        Não há necessidade, é só tempo da mãezinha se acalmar.
—        Mas eu gostaria... — Tá bem, venha por aqui. — entra por outra sala de vidros. Passa por um corredor cheio de pequenos quartinhos, fechados por cortinas. Lá de dentro ouve gemidos e imploração de socorro. Atravessa outra porta e vê a sua Maria deitada. Ela tem as vontades de gritar, e grita — Onde tu tava, Manualdo? — ele pede que se acalme, aquele berreiro estava assustando o menino. Ela obedece e ouvem o silêncio. Pela primeira vez, desde que chegaram, estão juntos
—        Acho que deixam ver o nascimento do teu filho. — Isso... não vão deixar.
—        Me sinto melhor assim... juntos.
—        Por enquanto eu vou ficando, amorzinho. — ele necessitava ficar por ali mais que a Cariciosa precisava dele. Todo nascimento deveria ser com o pai e a mãe juntos, esperando e fazendo nascer — Não tem mais ninguém? — Foram para o lanche.
—        Não se preocupe, o doutor do plantão disse que está tudo no controle.
—        Isso é enganação... ninguém veio me ver, nem médico nem padre.

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20 - Atrás da cruz, se esconde o diabo! 

22 - As lágrimas alagavam

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