quinta-feira, 5 de julho de 2012

No panelão do mocotó

Becos sem saída - Só saio morto

II
baitasar
A Memória ficou na vontade de reclamar que o frio não se esquenta com fogo de lenha, mas com cobertor de orelha. A lembrança que não sai pela boca, fica escondida no silêncio. Desconhecida do conhecido. O silêncio de um no outro esfria a cama. O Ogum estaciona o empenho corajoso de defender o fogo de lenha. A Memória não se cansa
—        É mais caro que fogão de gás.
—        Porque os guris tão de preguiça de sair catando graveto.
—        A picumã que sai pelas frestas do fogão se espalha rápido por tudo.
—        Falta jeito pra espertar o fogo, minha preta.
—        Esse cheiro de lenha me ataca o nariz.
O marido explica que é precisa ir aos poucos, até o ferro da chapa inchar e fechar as fendas
—        Meu nêgo, vamos comprar um usado de uso, quem sabe achamos algum, por aí?
Na madrugada seguinte, os dois homens caminham para o trabalho, em meio uma garoa fininha. Manualdo tem à cabeça protegida. Usa a mesma toca de lã daquela noite de busca e apreensão das mudas de árvores. Ogum vai embaixo do seu boné ferroviário de couro. Passam por trabalhadores da prefeitura, que vêm à praça do chafariz com máquinas e caminhões, já faz um bom tempo
—        Esses aí, o que se fazem por aqui?
—        Continuam tapando buracos. — responde Ogum.
Desviram a cabeça e seguem o próprio caminho, cada macaco no seu galho
—        É isso, Manualdo, cada qual como Deus fez.
No domingo, à noite, Manualdo fez plano silencioso de mudar o seu jeito de carregar as cargas. Agora, vai decidido. Não faz nenhum comentário com Ogum, sabe que a alma do negócio é o segredo. Quando chega a Ceasa procura seu chefe
—        Seu Cícero, eu posso manobrar a empilhadeira.
—        O consegue, guri? — o tal Cícero é homem de bom senso e justiça, mas, como todo chefe, quer todo o serviço bem feito no menor tempo
—        Claro!
—        Cuidado, meu filho, cada um pendura o chapéu onde o braço alcança.
—        Meu braço dá conta do animal, seu Cícero.
—        Como o guri aprendeu?
—        Olhando, imitando, sonhando, tenho mais uma boca chegando... o mínimo já não chega e preciso melhorar de salário
—        Sobe lá e mostra se a empilhadeira obedece... — Manualdo não acredita que foi tão fácil. Esperança. Sobe na empilhadeira como se fosse o seu trajeto diário de muitos anos. Confiança. Sentado no banco do condutor olha na sua volta e não vê mais os inimigos a serem vencidos. As cargas estão diferentes. Ele está diferente. Tem mais força para os trabalhos de empilhar e arrumar. O mundo do armazém de legumes e verduras está mudado. Em cima do banco da empilhadeira se prepara para começar as manobras, mas vem contra-ordem mandando o bugre parar. Querem que desça
—        Não vou descer!
—        Vamos Manualdo, sem problemas.
—        Daqui só saio morto! — pensa na melhoria do pagamento, na lenha, na Cariciosa, no mocotó, na criança que tá vindo por ai, na farmácia, na carniçaria. Essa história de cada um vai como Deus fez não lhe assenta bem nas ideias
—        Rapaz, fazemos isso outro dia...
—        Seu Cícero, com todo respeito, mas cada um sabe onde o sapato aperta.
—        Não vai faltar oportunidade.
—        Não saio daqui, quero fazer o teste! — todo chefe tem um chefe. O chefe do Manualdo é o Cícero e o chefe do Cícero é o Cabeleira, a bem da verdade, esse era o apelido do homem, o nome mesmo era Getúlio, e o tal já tinha pensado na vaga para outro protegido, o Gregório.
O Ogum se aproxima do diretor e repete uma história que já contara muitas vezes
—        Chefe, esse menino teve um tio que morou em zona de muito alagamento lá na vila, foi uma época de muita chuva.
—        E daí?
—        Durante muito tempo, as chuvas invadiam becos e casas, eram casas de palafita. — conheço a história, um flagelo que durava desde sempre. Nessas terras de alagação não podiam construir e fazer gente morar. Claro que a ganância desimpedida de qualquer bom senso descumpria as leis. Loteavam tudo, quase até a beirada do rio. Em época de chuva era um Deus nos acuda. Água por todo lado. Gente molhada nas cinturas e barcos subindo e descendo rios de ruas. O mais comum era encontrar cobras e aranhas flutuando nas águas barrentas. Até que chegou a ordem de construir um dique para a contenção das águas. Foi um general. Veio de avião sobrevoar as terras alagadas. Chamou o prefeito da ilha de Madalena, recém afundada naqueles aguaceiros, e ordenou
—        Manda construir o dique. — não é um mundo para qualquer aventureiro esse túmulo das boas intenções. Foram tempos difíceis de convivência popular, o chefe dos negócios públicos da província era indicado pelos generais. Até o chefe das terras da província do continente foi nomeado em gabinete. Tudo funcionava mais ou menos assim, escreveu não leu, o pau comeu. E a borracha comia solta junto com as vontades e as mãos que a empunhavam. Bastava ser cabeludo ou barbudo para o cacete descer pelo lombo. Reunião com discurso de gente em praça pública, logo era cercada pelas forças de autoridade da ditadura. A correria e a fumaça tomava conta de tudo. E assim começou a ser construído o dique. As casas que ficavam na faixa do aterramento precisavam ser removidas. Era gente chorando por todos os lados, mas não tinha muita conversa as obras tinham que avançar e acabar antes do tempo das chuvaradas. A vila mais pra dentro, mas protegida dos enchimentos do rio destrambelhado. As obras com quase tudo negociado, naquele jeito... goela abaixo, manda quem pode e obedece quem precisa. General manda e não pede
—        O que estava faltando?
—        Acertar acordo com o tio do Manualdo.
—        O homem pedia muito?
—        Nada.
—        Então, qual era o problema?
—        O velho não queria sair da terra, repetia que só sairia morto. — nesta altura da conversa o Cícero sentou nas caixas de tomate. Ogum mantinha postura em pé, causa impressão mais forte. Avança na história enquanto o cigarro vai queimando a cada baforada
—        Teimoso.
—        Já faziam cinquenta anos que o homem era o barbeiro da vila. Conheceu o Almirante Negro e fez corte de cabelo no negro
—        Quem?
—        O João Candido, herói da revolta da chibata.
—        Mas que chibata é essa, Ogum?
—        Essa ouvi do Capitão... — aqueles foram tempos bicudos para os negros, apanhavam calados nos navios brasileiros, pois no tempo da feitura do dique o velho barbeiro não queria apanhar calado
—        Capitão... mas que capitão?
—        Boca mole... do casório da Cariciosa... esquece. — o velho não cedia um nada, do mesmo jeito quando desembestava de cortar o cabelo do cliente no seu modo. A tesoura fazia submissa os seus desejos de cortar. O visitante sentado na sua cadeira se tornava o alvo de experiências e artimanhas. Bastava desembestar com o cadeirante e a tesoura ficava aguerrida e cortava sempre um tiquinho a mais da vontade do freguês. O contrário se aproveitava quando o bugre simpatizava com o cliente. Creme e loção de cheiro antes e depois, tudo para não irritar a pele do assentado. O tempo se alongava nos atendimentos do felizão.
As obras começaram de um lado e outro, parecia imitar sua tesoura de aparo, pelas pontas. Eram muitos quilômetros de extensão. A casa do velho tio do Manualdo se achava a meio caminho de um começo e outro. Chegava terra de tudo quanto era jeito: em caminhão, carroça, carrinho de mão e saco de pano. Era preciso terminar o aterramento antes das chuvas. Dizem que era a coisa mais linda de ver, dia e noite, sem parar. Com o passar dos meses o dique foi ganhando forma e fama, mas a casa do velho Bueno ainda se achava por lá
—        Daqui só saio morto... — o aterro crescendo de um lado e de outro. As máquinas se aproximando. Até que chegou o momento inevitável, nada poderia continuar sem a amputação da casa do velho tio do Manualdo
—        Daqui só saio morto!
—        Então, assim seja! — gritou um dos capatazes
—        Calma! Calma! — ordenou o chefe da capatazia
—        Vamos descansar, por hoje. — foi até o velho e convidou para uma churrasqueada
—        Ô velho, que tal um churrasco de acomodamento e paz. — o velho coçou as barbas e olhou bem dentro do olho do homem
—        Podem se vir, vamos mateando enquanto a carne assa no braseiro. — e ali, no chão da casa a ser derrubada, assaram um costelão. As brasas estalavam de quentura e o aroma da carne cozinhando andava por todos. Desanuviava qualquer mau humor. Naquela tarde, comeram e beberam nas suas vontades. Quando as brasas foram virando cinza, a cachorrada começou a cercar a carne esfriando e a bebida acabou, o velho se desculpou
—        Bom pessoal... me desculpem, mas vou descansar um pouco. Meu tempo já terminou e to com precisão da bobeada depois do almoço. — levantou e foi para o quarto. Logo do andamento de alguns minutos, todos ouviram o disparar da arma de fogo. O velho tio do Manualdo saiu morto da sua casa de barbeiro com um tiro no peito
—        Seu Cícero, esse rapaz leva o mesmo nome e o jeito do velho tio... o senhor tem cigarro?
—        O que eu faço?
—        Deixa o guri fazer o tal teste...

Naquela noite, Manualdo chega desanuviado. Teve empenho na cobiça. Está fortificado. A empilhadeira é dele. Ogum em conversa com a Memória, conta o acontecido cheio de orgulho do bugre e da própria história que contou para o chefe dos empilhamentos
—        Minha preta, é dos meninos que se fazem os homens.
No sábado seguinte, feito as compras já encomendadas, bem cedo, Manualdo começa os preparativos do mocotó. Agora, mais razão tem de fazer festejo. A subida de acomodação do bugre no emprego é causa de contentamento. O índio deixou de usar as próprias paletas para carregar e empilhar as sacas, ele usa os braços de aço e a força da máquina. Todos conversam aos gritos de alegria. Querem que os vizinhos imediatos saibam da primeira assunção dentro da família. Isso é razão de muita distração e dignidade.
As mulheres recitam o ponto em cantoria e dança, enquanto vão dando fervuras nas partes salgadas, usam fogão das lenhas. Dão fervor e trocam as águas. Fazem isso algumas vezes, até aprontar para colocar no panelão do mocotó. Esse já está fumegando com o calor incendiado dos tocos de lenha no chão. As patas estão no fervor junto com os ossos da canela. Manualdo fica empurrando lenha e mexendo no aguaceiro fervente. Não se aguenta na impaciência de escutar a água em fervura. Ogum segue limpando o mondongo, pedacinho por pedacinho. Cuidadoso. O recém promovido pede que a Memória tire a casca embarrada da mandioca e corte em fatias bem fininhas
—        Esse é dos primeiro a pegar fervura até desmanchar e engrossar o caldo. — vez que outra Manualdo pega as lenhas compradas e as racha em tiras mais finas. Reaviva o fogo de chão mais rápido. O dia já vai indo e o fogo não abranda. As partes moles do osso se soltam. Supimpa chega no tempo de pegar o batuque. Os cantos continuam pelas suas mãos. A noite chegando e o brilho do fogo iluminando a negritude daquelas mulheres e seus homens, encantamento de muita beleza. Agora é tempo do cozimento e eles se requebram e giram ao ritmo do batuque. A fervura aumenta e os giros ardem os calcanhares.
Quando a noite se completa o mocotó é servido. As mãos do Manualdo seguram a concha que mergulha e enche até derramar. Os pratos de alumínio recebem o sopão do mocotó. O cheiro das ervas verdes picadas são espalhadas sobre o líquido quente. O batuque passou, as mãos e as bocas estão no serviço de alimentação. Manualdo ergue os olhos e observa sua mulher, a sua preta está graúda de linda. Tem muita beleza. Tem ganas de falar do seu apaixonamento. Ele é um índio afortunado, um sobrevivo. É isso, os homens e as mulheres não se medem aos palmos.

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Leia também: 
14 - Mocotó 

16 - Coxas redondas e carnudas

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