Becos sem saída - Pedaços da carne
II
baitasar
Espero que nenhum anjo ou demônio ouça o Manualdo, vá
que o levem a sério. As bobagens precisam ser tratadas com a importância que
não têm: nenhuma. Ele só deve ter uma preocupação: acostar-se em
casa. Avançar entre o ruído e o silêncio serenamente. Tenho vontade de lhe
gritar para não levar a vida tão a sério, afinal ninguém sairá vivo dela. Ou,
errar é humano, mas colocar a culpa em alguém, então, nem se fala. Acho que não
sou um bom conselheiro e o Manualdo não está com jeito de esperar
aconselhamento — Vá se foder! — Filho-da-puta!
Vê no adversário o sorriso da vitória. Um pequeno
acesso de satisfação no inimigo. Retribui o aceno com o mesmo gesto obsceno de
antes. As mãos suadas. O inimigo desconhecido se perde das vistas. A outra
bicicleta se perde no anoitecer, lá para frente. Pedala com fúria — Idiota!
Manualdo deixa a própria raiva escapar. Ele reduz seu
ritmo de movimentos com as pernas e busca o equilíbrio da respiração. Precisa
de ar. Ordena ao coração que se acalme. O suor lhe escorre pelas costas. A
testa molhada inunda seus olhos. Tudo fica embaciado a sua frente. As pernas
pesam toneladas. Os braços amortecidos não dão mais conta da direita e da
esquerda. Os dedos se torcem agarrados na empunhadura do guidão. Mantém o olhar
fixo na linha que termina o céu de um quadro de luzes e buzinas. Dores lhe vêm
abaixo das costelas. Logo à frente, se apresenta a crista arredondada de uma
colina. Passa pelo corpo extenuado uma vontade suprema de desistir. Morrer ali.
Pedalando como um herói anônimo do povo pobre, enterrado como um indigente de
sonhos desconhecidos. Idiota, não bastasse morrer nesta estrada sem nome e ser
injuriado por estar atrapalhando o tráfego, iria deixar os carinhos da
Cariciosa para os atrevimentos de um sujeito qualquer — Maluco, continua a
pedalar, depois que se morre só resta estragar em mau cheiro!
Manualdo segue falando e pedalando na ladeira de
baixo para cima, ele gastou as energias mais do que devia naquela corrida de
insanidade. Tem delírios de quem pedala exausto, imagina seu enterro de herói,
a viúva e as crianças todas de preto, inconformadas, talvez seu nome virasse
nome de algum beco da vila... não, eu também acho que não — Herói de pobre é
bandido, é o único que ajuda e se importa.
Faltam poucos metros para chegar à parte mais elevada,
já está quase desistindo e apeando do selim — Um dia vamos prestar contas desta
vida. — somente mais alguns metros, uma das pernas encolhe, a outra estica, no
esforço de empurrar aquela alavanca com o pé, um depois do outro
— Gosto
de pensar que vou morrer de velhinho, amarrado pelos braços da Cariciosa. — sobe
do selim e pedala em pé.
Procura forças para seguir empurrando a bicicleta com os
pedais, um desce e o outro sobe
— Empurra,
empurra... — ordena para as pernas, para o corpo, para a alma — Já chego, minha
preta.
Atinge ao topo. Lá de cima vê as luzes da vila. A sua
vida está lá embaixo. Desde que aquela estrada de asfalto cortou-os no meio, a
vila Boa Esperança, se vê as voltas com as mortes por atropelamento. As gentes
dali estão ficando estendidas com cobertura de jornais. Mais uma sina. Destino
de gente que anda a pé. Morrer nos atropelos dos carros. Agora, precisa
controlar as vontades malucas da sua máquina de se despencar penacho abaixo.
Homem e mecanismo com ânsias de chegar. Perde os freios — Senhor, o que me
resta acontecer? — a velocidade aumenta — Calma Manualdo, pensa!
Leva a botina na roda da frente. Sente a roda que
gira gira gira sob o aperto da botina. O seu corpo estremece. Os braços firmam suas
mãos na direção, os dedos retorcidos são como pinças de aço, despenca ladeira
abaixo. Vem na memória o cruzamento das ruas que lhe espera logo à frente. Lembra-se
de rezar. Desiste. Enfia a botina com toda sua força. Máquina e homem param.
Uma imensa carreta lhe cruza o caminho, assovia e revira a aragem na sua
passagem
— Seu
bobo, quase que não me chega! — é a sua mulher de amor que lhe chega pela
abanação das palavras, saídas de sussurros assustadiços com a demora da sua
chegada. Bugre burro, se essa história fosse história de livro, talvez o
escrevinhador colocasse na vontade de salvar ou não salvar, mas na vida não tem
jeito, precisas carregar tuas coragens e embaraços.
Hoje, chega depois do Ogum. Os dois saem juntos na
madrugada da manhã, mas nem sempre retornam no mesmo tempo. O horário de chegada
ao patrão é controlado pelo relógio do ponto. Os dois sempre registram sua
presença nos empilhamentos um seguido do outro. O horário de chegada em casa é
controlado pelo aquecimento das virilhas e a fome do estômago. Nos últimos
tempos, Ogum tem ficado para um dedo de prosa e outro de cerveja com os amigos.
Manualdo também tem convite de comparecimento, mas agradece e vai para casa,
talvez, outra noite. Por ora, as razões para ir são maiores que as razões para ficar
— Eu chego sim, minha preta, o nosso casamento é destino.
Desce pra examinar os freios. Nenhum reparo é
possível sem o ferramental. Por agora, lá embaixo, o caminho é liso e sem
desigualdades. Desce o final da ladeira caminhando ao lado da bicicleta. Lá
embaixo, volta a subir no selim. Decide seguir com moderação nos gastos das
suas forças. Lentamente move os pedais da máquina. Mais um pouco e os caminhos
de asfalto se irão em
frente. E ele terá que entrar nas aberturas de terra. Chão
batido e esburacado, logo abaixo da estrada asfaltada. Entradas e saídas da
vila. Falta pouco para o desvio de rota. Afastamento do mundo civilizado e
começo do submundo dos escolhidos para a miséria.
Engraçada a vida dessa gente que lê, escreve e faz
lei de plantar árvores para casar e descasar, mas não pensa em nenhuma lei para
acabar com a miséria. Acho que já estão tão acostumados com a pobreza, todos os
dias separam moedas para jogar nos chapéus estendidos, ficam anestesiados.
Penitência caridosa.
Eu mesmo já passei por muitas mãos e muito tempo de
contemplação acomodado nas prateleiras, recostado em espera. Todo miserável
está em estado de hibernação, esperando que alguém lhe estenda as mãos para ler
dos seus sonhos e decepções. Entender a razão da sua existência. Um jeito de
compreender a compreensão. Um prato de comida quente. Estão fodidos — Sem
queixumes, Manualdo... sem queixumes. — repete para si mesmo.
É isso mesmo rapaz, calma, que Deus está do teu lado.
Caminha com o credo na boca. Aprendeu, desde sempre, que caminho começado é
caminho meio andado e que precisa trabalhar. O seu chefe, Cícero, fica lhe
repetindo — Rapaz... trabalho não enriquece, mas recheia a mesa.
É isso que lhe basta, saber da sua gente alimentada.
Alguns metros à frente, ele vê uma aglomeração.
Diminui a tempo de assistir o inimigo caído ao chão. O antagonista mal-criado da
bicicleta, o sujeitinho com pressa. Passa pelo lado e quando os olhos se cruzam
repete as obscenidades. Ergue o punho fechado da mão esquerda e deixa o dedo
indicador e o mínimo esticados. Como a imitar um par de chifres. O outro lhe
devolve um olhar de ódio — Cara feia é fome...
— Filho-da-puta!
— O
castigo faz o doido ter juízo.
Manualdo saboreia o momento, segue pedalando enquanto
não tira os olhos do ciclista tombado. A bicicleta se vai numa direção e os
olhos se ficam fixo no caído. Sabe que sorri, quer sorrir. Uma vingança
desnecessária e inútil. Não tem tempo de ver o poste que está no seu caminho.
Bate com todas as vontades. Rola pelo asfalto. Ouve as buzinas e os freios. Vê
os faróis. E lá do outro lado lhe chega o sorriso do inimigo — Estamos quites, fodido
de merda! - agora, parecendo bastante reconfortado.
Quando Manualdo chega à casa dos seus amores, carregado
pela carroceira Marijoana, a camisa colorada toda rasgada, os braços mordidos
pelo asfalto, mancando em um dos pés, todos já se preparavam para as buscas — Gente,
trouxe na garupa coisa que é de vocês.
— Manualdo!
— grita a esposa do acidentado. Todos correm assustados para fora das cercas da casa, querem ver o guarani
— Estou
bem, minha preta. — O que aconteceu, Mari?
— Não
sei, Maria, encontrei esse no chão, todo escalavrado.
— Estou
bem, estou bem...
Maria Cariciosa chora nas maiores vontades. As
crianças assustadas também se põem a derramar choro atrasado — Ei! Pega aqui a tua bicicleta.
— Deixa
que eu pego. — a carroceira passa para o Ogum uma bicicleta toda retorcida
— Amorzinho,
o que foi isto? — A bicicleta ficou assustada.
Ele narra a sua aventura, enquanto calcula seus
prejuízos. Continua justificando as escoriações pelos braços, nas mãos e na
cara avermelhada. Fala aos quilos, muito empolgado daquelas causas tão pequenas
que quase trouxeram grandes consequências — O filho-da-puta vinha grudado em
mim...
— As
crianças, Manualdo... — ... quando ele passou gritei: passa corno!
— Amorzinho,
que coisa mais boboca, como tu sabe que ele é guampudo?
— Não sei
se é, mas era a minha vontade de gritar.
E para não tombar, para firmar-se sobre a terra precisava continuar lutando.
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27 - Receita antiga
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