domingo, 1 de julho de 2012

Não existe bem que nunca acabe, nem barata em galinheiro

Becos sem saída - Caipiras

baitasar
Os olhos dos bem de vida cegam com tanta luz. A noite do beco sem saídas parece vazia, sem brilho. Sem alma. Os fundos da vila é chão alagadiço e fedorento, terra batida por botinas e chinelos. É beco às escuras. Lugar de gente desconfortada, desaforada e bichos de criação. Os caminhos para ir além dos valos são feitos de taboa jogada no chão. Frágeis pontes de lugar nenhum para coisa alguma. Águas podres. O único chão sem as águas escuras é o deles. Casa 18, acesso Um, beco da Servidão, na Vila Boa Esperança. O chão é seco e sem barro porque a Memória foi insistente e determinada com a feitura do cimento mais elevado. Não têm no pátio terra batida. As águas que caem escorrem para os lados, encharcam os vizinhos. Problema dos vizinhos que nas chuvas amassam o barro com os pés e nas secas engolem a poeira que lhes entra pelo nariz, cospem pitomba. Alegria de pobre é dia nublado, mas os causos nunca saem do jeito que esses desgraçados pensam, são como são e não como vocês quereriam que fossem.
Desde o primeiro olhar, nos primeiros dias de visitar a família Memória, o jovem pretendente a parente sentia o desejo da cobiça. Ficava mirando pelos olhos da adivinhação o prato feito com as galinhas do porão, mas as danadas engordavam sem jamais irem à panela. Antes, como era visita, se calava. Na nova situação de parente por casamento, já pensava influir nos destinos das caipiras carregadoras de piolhos. Cacarejavam e escarafunchavam no subterrâneo do porão. Não procuravam uma saída daquela vida de come e dorme, apenas praticavam exercícios de ficar viva, como todo bicho que não virou gente
—        Seu Ogum, antes que fujam temos que dar serventia de panela pra elas...
—        Não sei, não... Manualdo, os guris vão entristecer.
—        O senhor acha?
—        Tenho confiança de certeza.
Na casa de Maria Memória, as tarefas de alimentar as bichas de pena são dos gêmeos. Rotina que se entregam com prazer. Mas é o mais novo que se instala no porão catando piolhos entre as penosas, enfrenta o macho do terreiro que vai e vem peitudo, esporão encrespado. Esse menino demorou umas horinhas para nascer depois do mais velho. Dizem que as ideias do guri ficaram retorcidas na tardança do nasce não nasce: quando pensa não deixa pistas do que pensa.
O menino não consegue ser o depois do inicial, necessita ser sempre o primeiro. Na escola não aceita ser o segundo posto na fila. Bate, empurra, derruba e lá vai ele na fileira: o primeiro. A professorinha fica com os gritos, a coitadinha implora, xinga, reza, mas nada, só acalma quando é o primeiro da parte da frente na fila. O aleijume daquela cabeça é invisível aos olhos desatentos. Já tentaram de tudo, falta só benzedura. Enquanto a benzedura não resolve, Memória deu serviço de muito esforço e atenção aos dois, eles perseguem todo dia o mesmo protocolo, são as formalidades da Memória. Os gêmeos assumiram as obrigações dos filhos do Virgílio no galinheiro. Os mais novos permanecem ao alcance de um grito. Os irmãos mais velhos estão pelo mundo.
Supimpa recebeu convites de saindo das fardas se alistar na polícia. Aceitou. Supimpa tava nas desconfianças de não poder seguir carreira de soldado. Parece que não tem sapato de oficial preto. Decidiu que vai para as fileiras da polícia. Ali não tem muita importância a cor do pé, precisa fazer o pau cantar.
Lamparina foi para Serra Pelada à busca do ouro, repetia para seu irmão em cartas escritas lá vez que outra, que a sorte quem dá é Deus, a vida o homem procura. E ele se fora caçar seu destino.
Enquanto isso, tudo continua igual no galinheiro
—        Meninos... já serviram a ração das galinhas?
—        To indo, mãe...
—        E o teu irmão tá junto?
—        Tá!
Os gêmeos nasceram da semeadura do Ogum nas carnes da fertilidade, não são vadios nem malcriados, têm por jeito cuidar dos bichos com penas ou não. Mas o seu amolecimento verdadeiro são as galinhas no choco. Cuidam para que nada falte às chocadeiras: o conforto das palhas, a alimentação dos grãos e um bom papo para se fazer o tempo passar com mais divertimento. Contam histórias.
A contação que o Boaventura não se cansa de repetir é a história sobre a galinha dos ovos de ouro. Cuida de prevenir as suas ouvintes que aquela é apenas uma historinha de fazer o tempo passar. Não espera que as suas chocadas produzam mais riquezas que os seus ovos amarelinhos e os pintinhos. O Carabino, na sua vez, desfia a história do patinho feio. Sempre inicia que vai relatar uma história de patos e cisnes, mas que diabos, todos têm penas e não são assim tão diferentes. Seria o mesmo que não poder contar as histórias do negrinho do pastoreio para os meios branquelas. E assim, a cada vez, acrescenta um detalhe esquecido da vez anterior.
Mas quando pode tal qual o Supimpa, Carabino, o gêmeo mais velho, está mesmo é metido pelo beco jogando bola. O seu passatempo de preferência. Boaventura, o mais novo, do mesmo jeito que o menino Lamparina, está se afeiçoando, cada dia um pouco a mais que o dia anterior, com as penosas. Parece ao guri mais fácil falar e escutar com elas do que com o mundo das gentes. Não sente vontade de jogar bola, além do mais quem vai querer no time uma cabeça de vento, sem rumo certo de chute. Tanto chuta lá pra frente, como lá pra trás. Entre as bichanas foi entoando apelidos e nomes. Entre as galinhas tem a sua preferida, a Garrincha leva o seu afeto, mais que todas as outras. Talvez, porque a Garrincha, desde muito pequenina, tenha parecido mais quebradiça, com aquelas pernas em arco. Torcidas. É o seu xodó do galinheiro, que o macho das galinhas parece ignorar. O atrevido de crista carnuda nunca arrastou asa pros lados da defeituosa. Manteve distância. O caçula parece ser o único que a entende. Sente que pode ser uma boa influência para a Garrincha. Ser seu aliado. Seu protetor. Amigo de confissão. E ficam tempos e tempos conversando. Trocando segredos.
Mas como não existe bem que nunca acabe, nem barata em galinheiro, as galinhas se foram. Na semana seguinte às núpcias da irmã, chegaram os pregos pras duas peças dos combinados por casamento. As galinhas foram trocadas pelos pregos. Dias antes, os dois guris foram rendidos pelas necessidades da irmã e do cunhado. Consentiram nas trocas. As bichanas emplumadas por pregos. Os meninos sabiam que havia de ser feito algo na chegada do sobrinho. O guri ainda se mantinha escondido na barriga da Maria, mas, dia vai dia vem, não demora em se mostrar. E aquele improviso demarcado é bem melhor que o quarto-forte da mãe. Feita a casa com os pregos recém-chegados e os guris voltam a ocupar o quarto-e-sala. Sossegados. A família está em tempo de desova de crescimento.
Os meninos impuseram uma restrição
—        A Garrincha não vai...
—        Tudo bem... combinado.
E assim, o galo viu o seu harém minguar. Sobrou-lhe a defeituosa. Num dia, fartura de penas para o serviço de arpão do esporão, no outro, a tristeza de não ter escolha. Nunca irá perdoar os meninos. Levaram suas meninas. Deixaram uma caravana de pintinhos e uma galinha torta e desajeitada. Uma atrapalhada retorcida. A vida de galinheiro perdeu a graça. Parou de cantar. Emudeceu. Dias de muito, vésperas de pouco. Deu para acordar tarde do dia, quando o sol já vai alto. O emplumado vagueia sem destino, desocupado das coisas de vontade. Nada de cantar, nada de bater as asas. Sorte de uns, azar de outros.
Galinhas de menos, serviço de mais para a torcida das pernas. Vai chegar a estação de chocar os ovos. Tarefa que a Garrincha precisará dar conta. Uma carijó não há de viver só a ciscar e comer restos à moda caipira. Senão perde serventia e fica na suposição da amizade de guri. E aí, a panela de domingo é um risco, dizem que galinha velha é que dá um bom caldo. Haverá de se incumbir das novas tarefas. O diabo vai ser convencer o outro de pular em cima da torta. Cariciosa já deu opinião
—        Não tem galo ou homem que viva sem subir em cima de coisa viva, torta ou não, é questão de pouco tempo.
—        Galinha e costela, unha com ela.
—        É sem-vergonhice.
E o Manualdo que tinha nas desconfianças a serventia de tantas galinhas, se viu às voltas de agradecer a ajuda do galinheiro. Perdeu o arroz misturado com as carnes desfiadas das penosas, mas ganhou os pregos pra segurar os tapumes. Logo, começaram os preparativos para o erguimento das quatro paredes e telhado de zinco. Casa de casca. Os braços e as forças do Ogum, as ordens da Memória, a energia desgovernada do Manualdo e os carregamentos de apoio dos meninos eram revigorados com a limonada e a comida de viagem da Cariciosa. Merenda rápida. Nada falta para o erguimento da pequena senzala. E discussão tem de sobra. O tapume de uma propaganda de refrigerante foi ponto de desconcerto. Os homens queriam o refrigerante pra dentro da casa, escondido dos olhos de quem olhasse de fora. As mulheres inconformadas queriam todo anunciativo virado pra fora da casa. Escondia dos olhos de quem olhasse de dentro. Ficou pra fora, afinal, não é a casa da mãe-joana
—        Homem passa o dia na rua, não precisa ficar olhando tapumes.
As cascas coloridas ficaram engalanadas para os vizinhos. Nem careciam de pintura, já viam enfeitadas
—        Alguém lembrou de dar uma olhada no Ícaro?
Esse é o Ogum, sempre preocupado com o animal de sela, entre uma martelada no dedo e outra no prego. Ali, não tinha serventia para o Ícaro se abanando das moscas com o rabo. Permanecia amarrado por corda no pescoço e pastava tranquilamente na praça do chafariz. Vez que outra erguia a cola e o pescoço pra mirar o longe. Tinha na memória outros tempos de liberdade, outros jeitos de levar aquela vida.
Depois do escoramento da gaiola com paredes de papelão, madeira e zinco, não houve solenidade de inauguramento, a vida pede urgências. Cariciosa estufando, criando dobras onde antes se encontravam curvas. Até que a moça nem se presta pra essas coisas de desejos repentinos de comida, no meio da madrugada. São as horas acordadas que lhe fazem comer tudo que nunca imaginou que viesse a destruir com os dentes. Está esplendorosa. Ao dormir ronca a sono pleno. Quando o Manualdo assanha as mãos para os lados das coxas, percorrendo com os dedos os seus caminhos de paixão, Maria Cariciosa se incomoda com os desatinos do marido
—        Ooh, Manualdo, não vem cutucar o menino com vara curta.
O mancebo resmunga algumas incompreensões e vira o costado. A brincadeira está perdendo a graça. Mas quando a Cariciosa se crispa dos desejos da carne Manualdo se enche de cuidados
—        Amorzinho, assim pode machucar o guri...
—        Pra tudo tem jeito.
Numa destas noites de calor e insônia, com o sol ainda a estalar do zinco, os mosquitos invadindo os seus corpos suados, Maria Cariciosa desembesta de desejar comer galinha com farofa. Manualdo dorme com jeito fingido de morto. Tem medo de abrir os olhos e encontrar a determinação da sua Cariciosa. Não tem jeito, ela já está sentada na cama, emburra e empurra
—        Amor, quero comer galinha com farofa.
—        Minha preta, onde vou achar galinha com farofa? São tardes as horas da noite...
—        To mal parecida comigo... uma preta feia.
—        Minha preta tá linda de morrer.
—        Eu não quero morrer.
—        Minha preta, não chora. Ninguém vai morrer... vamos dormir.
—        Você continua lindo de morrer, com esses peitinhos que eu adoro.
—        Eu te amo.
—        Não mais, eu é que te amo.
—        Minha preta, eu te quero.
—        Mentira, eu é que amo.
—        Então, o que eu faço aqui?
—        Amorzinho, eu to com fome.
—        Tá bem...
O Manualdo dos peitinhos amados se ergue sobre as quatro patas ao sair da cama. Ao passar para o quintal quase que se enfia no balde das necessidades, o supositório infortunado vive fora do canto de uso, fede a cavalo morto. O vaso ambulante está desocupado de uso. O murmúrio resmungador do Manualdo se perde entre dentes até a cozinha da sogra. Abre a pequena geladeira de duas casas, quase oca, quase vazia de mantimento.
Dos confortos de casa, têm o colchão estendido no chão e dois bancos feitos no feitio do Ogum. As roupas dobradas com capricho são guardadas umas sobre as outras em guarda-roupa improvisado com tijolos e tábuas. Uma cortina florida separa o quarto do sono e da bagunça desajeitada, da outra parte, a cozinha com seus canos esperando por uma pia. A torneira instalada deixa escapar pingos d’água dentro de uma panela enrugada de uso, como erupções da pele. Tem a pelanca de alumínio marcada pela descamação de manchas negras, espalhadas em todas as direções. O botijão de gás jogado em um dos cantos está na espera do fogão moderno. Manualdo pensa num fogão à lenha. Cariciosa quer um fogão alimentado pelo gás com quatro bocas e chamas grandes
—        Nem pensar em coisa de lenha, já temos até o botijão.
Retorna com as lembranças pelo escuro da noite que o invade pelos olhos. Atravessa a distância de uma porta até a outra entrada como uma alma penada de cuecas, com a água e o pão. Maria Cariciosa lhe faz cara de muxoxo, mas não deixa de abocar cada farelo de pão, nem de beber até as últimas gotas. Solta o ar do estômago pela boca. Cheira a pão. Desanda no sono. O Manualdo está desmamado. Faz as contas e julga desvantagem puxar cochilo por essas horas do amanhecer. Fica de olho arregalado. Planeja dar a Cariciosa todas as carnes de galinha que ela ficar sem comer.
Já chega a hora de tirar o corpo estendido no comprido e sair para a companhia de abastecimento, empilhar caixa de legumes e verduras. Já sente um desconforto pelo lombo por conta das cargas a levantar, mas sai da cama de um só golpe. O mesmo jeito todas as manhãs. Empurra as pernas para dentro da calça e cueca. Sem camisa vai até o tanque de roupas, ao lado da casa, joga as águas frias da torneira no rosto e sente um esfriamento do corpo. Está acordado.

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