domingo, 22 de julho de 2012

Avoando

Becos sem saída - Pedaços da carne

I
baitasar
O Manualdo se parece com um pássaro tranquilo que vive avoando, flutuando quieto por cima dos dias, pairando indiferente com seu jeito acanhado em tudo que é cidade e janela. Cabelos muito lisos, muito escorridos, acompanhados de um farto bigode. Missioneiro. É sempre o mesmo homem quando acorda todo apaixonado e preocupado com os suspiros da mulher — Minha preta, o que foi?
—        Ta tudo bem, meu bugre.
—        Minha preta, em pé de pobre é que o sapato aperta.
—        É bem isso... é bem isso...
—        Eu não quero lutar pelos mesmos vícios do homem branco. — aproxima da Cariciosa até se grudarem como uma pequena concha. Olha a argola no dedo, distintivo natural dos amantes que não sai sem deixar sua marca do pacto feito por palavras de amor. Sente a maciez das suas pernas nas mãos. Achega com os lábios um lamento suspiroso e quente na nuca da amada. O pequeno tremor da sua voz faz chegar um arrepio na dona do seu coração. Outro beijo no ombro a faz gemer, arrastando lentamente as intenções das palavras para as virilhas carnosas e macias — Tua falação dormida das coisas me assusta.
—        Por que, meu bugre? — Eu não consigo entender...
—        Querido, tenho sonhos estranhos. — enquanto cochicham, a sua mão esquerda, única em liberdade de uso, a outra se enfiou por baixo do corpo da esposa - segura com firmeza a carnuda redonda e nua - desliza dos bicos até os pêlos, passa pelo umbigo, ora para cima ora para baixo, pêra por cima ou pêra por baixo, até a polpa ficar doce — Sonhos bons?
—        Muito lindos... derreto toda.
—        Conta estes sonhos... — agora, os dedos param nos velos e continuam a dar voltas, enrolando e desenrolando, não precisam seguir para lugar algum, ficam ali, flutuando naquele mar encrespado de fios penitentes. Os pedaços da carne do corpo vão ganhando vontade própria, uma perna enrolada por cima e a outra esticada por baixo — Esquece, tudo ideia do pensamento caído no sono.
—        Dormir e depois criar os miúdos. — Mais nada... — muito no gosto enfia os dedos e se ergue. É hora de preparar para os empilhamentos na Cariciosa. Nestas horas da manhã, lembra alguns ensinamentos do Ogum — Guri, o trabalho é meio de vida e não de morte.
—        Amorzinho...
—        O que é minha preta? — Adoro ficar assim, feito tua mulher...
—        Minha preta... — é isso, o encantamento chega pelas mãos, pelo gosto e o cheiro das umidades derramadas, mas ele se deixa devorar de verdade quando ela brilha de vontade no escuro embaciado, o encantamento entra pelos olhos — Não te segura, vem todo... — bem no tempo de levantar. É bem isso que sente, por não sair da cama e deixar um pouco do muito de si, por ali, nas carnes prontas da sua preta.
Sai com perfume e gosto da Cariciosa, ela lhe encanta o resto do dia. Lembra como gosta de segurá-la entre as mãos, enquanto sente entrando com sua assombração naquelas carnes tão novas. O vai-e-vem dos seus quadris. As cadeiras carnudas dela sempre provocando suas vontades de botar as mãos em alvoroço. Montar de garupa. Depois, ele entre suas pernas abertas e prontas para ele. Molhada de escorrer por sua boca. Gosta de se deixar crescer nela. É um avivamento de enamorar das carnes, como pegar nas mãos antes de abraçar, olhar os seus olhares antes de beijar e se deixar encantar.
Passou todo o dia de hoje na empilhadeira, saboreando sua mulher — Adoro olhar em teus olhos, assim... bem dentro de tu.
—        Entrego tudo em mim, quando me vem tão tarado.
—        Isso, isso, sou um homem estatelado. — não basta olhar aquela mulher, precisa abraçar com as mãos. Sentir com as mãos-cheias da cobiça derretida. Escorrida. Experimentar o gosto do atrativo com a boca. Descobrir a cada vez, quanto da vontade de comer e beber consegue experimentar. Prolongar. Demorar. Provar do aroma. Esvaziar e encher. Regalo sem fim. Ele se promete para o paraíso — Hoje, essa guria me recompensa, nada vai ser na pressa.
O dia dos empilhamentos, para esse Manualdo apaixonado e rendido pelas vontades das carnes, não parece existir. Manobra os amontoamentos como a fazer amores com sua Cariciosa, sem afobação. Assobiando canção. Descobrindo a cada ajuntamento um jeito diferente de amontoar-se. Passa o dia com um vaporoso sorriso nos lábios, nada lhe tira da memória.
Até que a claridade do sol anuncia o fim daquele trabalho. Marca a saída no cartão-ponto e chega sem sustos ao estacionamento. Centenas saem na procura de suas casas. Apenas quer estar em seu teto. Lá onde encontra sua Cariciosa. Lá onde sabe que encontra os gêmeos. Lá onde é feliz. Lá onde tem a mulher que quer e os filhos que ama. Poucos conseguem o que ele tem.
Naquele ano de muitas correrias, começou a erguer suas paredes de tijolos à vista. Todas as economias foram para os tijolos e as telhas. O reboco viria em outros tempos. A cada dinheirinho que fazia sobrar: comprava areia e cimento. Nos sábados e domingos levantava paredes de maneira tímida. Mas lá estavam elas, erguidas e cobertas. Nesse tempo de construção do futuro, houve apenas uma extravagância. Não pode perder a oportunidade. Quando lhe foi oferecida uma bicicleta para comprar. Preço muito bom, quase de graça. Com ela o tempo de ir e vir do trabalho diminuiu. As distâncias encurtaram e a disposição aumentou.
Tudo roda em sua cabeça enquanto está pedalando. Devagar. Saboreando cada pensamento de amor com a sua dona. Não há pressa. Não precisa abreviar o caminho. Ela está lá, no ninho pequenino de aventura e ternura. Enquanto houver vida. E ele já chega. A cada movimento dos pedais avisa que se aproxima, sussurra ao vento — Estou chegando, minha preta.
O começo da noite vem trazendo o escurecimento e a via láctea com o brilho das estrelas se derrama sobre sua cabeça. Olha para o céu do horizonte a sua frente e se promete uma noite deliciosa de amor — Minha preta, quero abaixar as estrelas e agarrar as tuas carnes desacauteladas.
Enquanto vai pedalando não põe muita atenção no trânsito. Ruas de submissão e tortura, caminhos que o levam até sua Maria ao final dos dias. Ama extremosamente as crianças, Maria Futuro e Abelaira, mas a visão do corpo desvestido da sua preta lhe faz seguir sem pensar no caminho a ser feito: a pouca vergonha se desmancha nos primeiros carinhos, as promessas e os encontros. Leva Cariciosa na cabeça. Os braços ficam torcendo para direita ou esquerda. Apenas a rotina do cotidiano daquela bicicleta. Ela vai sozinha pelos caminhos reconhecidos. O seu espírito já está lá, com a sua Maria. A memória lhe chegou antes. Tem que fazer esse corpo chegar. Ele carrega na boca os sussurros do amor que jura para sempre. Sabe que flutua — Sai da frente, seu idiota!
—        O quê? — Deixa passar quem tem pressa, seu imbecil! — o susto do início se acomoda e aparece em seu lugar à indignação. Qual o tempo que lhe espera com tanta pressa? A bicicleta fominha por asfalto lhe roubou aquele seu tempo de sonhos. Um paraíso destruído por blasfêmias. Fecha a passagem do mal-educado — Ta com pressa?
—        To com pressa, seu tartaruga. — Sai mais cedo.
—        Até parece que não tem patrão... — ergue uma das mãos e faz um gesto desbocado, aprendido com o sogro Ogum. Dedo do meio firme e reto. O inimigo inesperado provoca uma manobra arriscada e se coloca ao lado do Manualdo. Ficam por instantes pedalando lado a lado. Mãos encrespadas no guidom. A barra de metal que comanda manualmente a roda da frente vai sendo espremida. Pernas pedalando no limite dos músculos. Ombro a ombro. Cabeça com cabeça. Coração apressado. Os desgovernos da intolerância no seu limite. A fumaça dos carros, o som das buzinas, os palavrões, a velocidade desatinada. Os olhos cheios da fúria insana e sem sentido. A boca já baba, não engole. E quando grita, cospe. Tudo contrário à razão — Parem! — é a ordem da Maria
—        Esse filho-da-puta é que começou!
—        Amorzinho, pra não acabar é melhor não começar. — o Manualdo se deixa vencer: para morrer basta estar vivo e descontrolado no trânsito das ruas. Mas tem tempo de gritar
—        Seu corno! Filho-da-puta... desgraçado... tomara que se desmanche na esquina!

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