terça-feira, 10 de julho de 2012

O afetuoso berço da vida

Becos sem saída - Cio da terra


II
baitasar
As primeiras noites da campana nervosa pelo enfrentamento, aos poucos, foram sendo substituídas pelo sentido do desnecessário daquele espiar cauteloso. A tropa de choque de arqueiros e artilheiros, a cada noite de inatividade, era invadida pelo despropósito do vigiamento de buracos. A razão da sua existência é o choque com as multidões desautorizadas em períodos de revoluções, revidar vaias e pedradas com tiros
─         O comandante vem exagerando... — reclama um dos soldados da tropa de elite e repressão
─         Por quê?
─         Para ele todo mundo é baderneiro.
Outro soldador se confessa enquanto ajoelha com sua metralhadora nas mãos ─ Eu bem que gosto quando vem ordem de formar para controlar o tumulto: avançar e dispersar!
─         O confronto não é bom para ninguém. — retruca o alistado mais velho, naquelas fileiras de controle. Um breve silêncio, rompido pelo mais alterado, tem os olhos esbugalhados
─         Se a ordem é ir para cima, eu vou, e sei que os caras do outro lado vão reagir.
─         A gente se machuca, as pessoas se machucam.
─         Bobagem! Sempre ando nas ruas à paisana, sei que esses indivíduos só esperam um descuido para atacar. — os demais escudeiros continuam no silêncio. Olham uns aos outros. Aquela conversa não tem razão de existir. Ordens são para cumprir
─         Um dia vai estourar uma grande bronca e nós sentaremos no banco dos réus.
Por dever de ofício respondem pelas ordens cumpridas. Prensam, apertando entre as folhas de seus escudos, corpos que nada têm além do sangue e suor derramado do mesmo jeito, cortados e amassados pela mesma mão que os trai. O povo continua a morrer do mesmo jeito.
Naquelas noites, o miúdo dos vigiamentos foi dispensado, com ordens de ficar em casa pra descanso. A sentinela civil só volta depois do caso resolvido. Sai com desconforto. Não é sujeito de preguiça, naqueles anos todos, não tem noite de falta nem quando a água do rio derramava mais que a altura do nariz. Desapareceu por algumas noites, na espera de ser chamado por necessidade de uso da sua experiência noturna. Antes tarde do que nunca. Mas o que estava por vir não carecia de mais testemunhas que os próprios paus-mandados. Aquilo que tem necessidade de ser feito é feito por aqueles que fazem tudo que lhes mandam. Querendo ou não. Aliás, pau-mandado não tem querer. As noites se vinham e se iam, as letras se enchiam nas folhas brancas do Antena
... sentindo o frio em minha casca grosseira e rude, mas com a alma em quietação, adormeço nas margens daquela água barrenta e morta, que me adorna em círculo. Estou esgotada das próprias forças (a ilha de Madalena é quem narra a história). Entrego-me às fantasias e devaneios do sono, já vou lá pelos anos de 1874, quando todos começaram a dar um sentido na ocupação dos espaços de campo e mato de mim mesma, a concubina preferida dos capitães-bocas-moles e bufarinheiros. Fui chamada ilha Taparacha, desde cedo, pelos corvos, aduladores, heróis e gado, todos medrando sob o olhar do cururu, sapo grande de pele enrugada, dissuasor, predador dos que se vêem pequenos e frágeis. Naqueles tempos, mantinha-me senhora de carne tenra e sangue novo, ainda despovoada de deterrentes, numa porção de matos e terras com água por todos os lados. Vivia ilhada e revestida de vegetação rasteira ao modo campeiro, selvagem e alagadiço, bem antes dos dias de vir a ser povoada por matas construídas de concreto e medidas até a borda de pelejadores e mães ruidosas. Gente florescida como os musgos, nas umidades dos casebres de madeira apodrecida, aprisionadas como pregos enferrujados, ocupa áreas invadidas de meus autênticos senhores
Lá pelas madrugadas um nevoeiro branco e intenso desmorona sobre a praça dos pedalinhos. Tudo está branco. A praça encapota pela brancura da escuridão até próxima ao chão. A intensidade da luz que vem lá dos casarões cega os olhos que vigiam. Aqueles raios de riqueza não conseguem varar de lado a lado a nevoaça. Voltam refletidos como espelhos-sem-aço. A visão do espiador secreto está impedida. Baixa a ordem de silêncio absoluto. Olhos e ouvidos atentos. Dedo no gatilho. Isso é uma guerra. Negócios militares. Coloca de lado as folhas brancas e o lápis. Seu corpo está endurecido pela vigilância
─         Sem erros, sem erros!
A voz do Roubaefaz lhe vem às têmporas. Latejam.
Aquela escondidão branca de nevoeiro os deixa alertados. Os olhos não têm muita serventia de uso, basta fechá-los e se deixar guiar pelos sentidos da audição ou a coceira do dedo no gatilho. Estopim da falta de raciocínio. Os olhos do delegado procuram qualquer indício do inimigo. Os sonares dos ouvidos fazem a varredura do negrume esbranquiçado. Mas é no nariz que realmente confia, sente cheiro de vagabundo na distância. E ali está ele, aponta o destino do chumbo, a frente dos olhos.
Passos descuidados estão brotando dentro do nevoeiro. Ficam a prestar ouvidos. A tensão aumenta
─         Escutem...
─         O quê?
─         Quietos... — o blecaute branco é total. Nada se vê além do embaciado. A ordem de manter silêncio é levada ao limite do medo e da cobiça de agir —      Seja o que Deus quiser...
─         Alto lá! — nenhuma resposta. Aqueles passos recobertos pela neblina seguem. Não estão intimidados. Os arqueiros e artilheiros levam suas armas aos ombros. Estão em mira —  Alto lá, identifique-se!
Nada.
Tempos antes, Manualdo tomou por decisão acabar com aquela farra começada por ele e o Ogum. Uma decisão reservada. Iniciou o cultivo. A terra estava ensinando aos homens. Bastava vontade para aprender. Queremos ser fortes e poderosos, ter admiração de autoridade, mas a terra quer ser cultivada e brotada em abundância de alimentos. Não tem segredo. A vida precisa ser inventada com amor pela terra. É a mãe que se recusa desadoecer, quer ensinar. Apenas, precisa ser bem tratada. As covas sem cicatrização têm precisão das doçuras das plantações, com sentido de existência. Um modo de viver o cotidiano com amorosidade e esperança. O afetuoso berço da vida.
Manualdo tem um berçário de mudas e foi devolver a terra o arrancado. Reparar um erro covarde e imbecil. Ele carrega sua laranjeira do mato, abacateiro, aroeira e figueira brava, numa sacola de tecido. No outro bornal de pedinte leva a terra preta e mais alguns chás, que hão de acomodar o chão retorcido de cólicas. Carrega chá de bugre, capim cidró, tem também a maria-mole e a mamica de cadela. Tudo pronto. Espera a noite fechar os olhos e se mete pelos sonhos da terra. Capão de corvos e urubus. Quer devolver à terra ferida as suas raízes. Princípio da vida. Percorre o caminho a pé, por suas entranhas dilaceradas e ofendidas. Um peregrino implorando perdão pela invasão. Caminha entre as sepulturas e lembra a criancice. Mira os pés e reconhecia os trilhos entre os enterros das suas gentes queridas. Brincava entre as covas enquanto a mãe aguava flores de plástico. Ela retirava o capim das covas e com as mãos ao peito rezava fervorosamente. Chorando, ela acendia uma vela na cruz das almas. Profundamente alimentada pelas memórias revividas.
Os dedos começam de coceira. Acariciam o metal do disparador. Apenas aqueles passos. Um após o outro, sempre. O delegado Salvador Calçacurta solicita autoridade de agir ─ Antena, precisamos entrar.
─         Calma Calçacurta... calma. — O delegado resmunga que o inimigo toma as melhores posições e as nossas perdas vão se elevar. O representante da autoridade civil perguntar se ele tem sugestão de ação ─ Entrar atirando...
─         Não, só um tiro.
─         Um tiro?
─         É, apenas um tiro.
─         Vou ver como resolvo isso... — o delegado Calçacurta desliga o rádio e chama seu melhor atirador. Pelo menos não ficam mais esperando por esperar — Um só tiro.
—        Delegado... a merda é que nessa escuridão todos os gatos são pardos. — é tarde para arrependimentos, o barulho da pólvora rasga o segredo da boca da noite. O seu grito foi ouvido atrás das portas e janelas fechadas. Entrou pelas casas e se deitou nas camas dos amantes, enrolados pelos cobertores até a cabeça.
Entram no nevoeiro atrás do disparo. Encontram estendido no chão, aos pés da cruz imensa de madeira, com um tiro entre os olhos, um cavalo de miserável, sem sela, puxador de carroça. Perdido no fogo cruzado ─ Por isso, não se identificou... não fala!
─         Merda!
─         Limpem tudo, façam desaparecer o corpo.
─         Onde?
─         Façam um buraco bem grande e cortem em fatias ou joguem no mar, tanto faz.
─         Joguem no buraco da praça, dá menos trabalho.
─         Isso mesmo, defunto não enjeita cova. — e assim, foi outro desaparecido político, destes tempos de lenta transição desde o afundamento da ilha de Madalena. Assassinado por medo. Eliminado por desordem. Burocracia contra a vida.
O marido da Cariciosa espera pelo silêncio, enquanto espia por todos os cantos da praça. O tiro fez cair um corpo no nevoeiro que ficou enrolado no chão. Esperou que os homens de preto terminassem a limpeza do chão com suas vozes de comichão. Nenhum movimento nem para respirar. Nada.
Desaparecem com chegaram.
É a vez do Manualdo, na caverna maior descarrega a laranjeira de palmo e meio. Enfia por cima das raízes a terra preta. Depois, deposita em esperança de plantação o abacateiro, a aroeira e a figueira brava. Do mesmo jeito que a sua mãe, Manualdo leva as mãos ao peito e reza de maneira arrebatada. Profundamente relembrado daqueles campos de matos e capões. Naqueles tempos, a senhora de carne tenra e sangue novo, despovoada de gente, numa porção de matos e terras com água por todos os lados, vivia ilhada e revestida de vegetação rasteira ao modo campeiro. Selvagem e alagadiça. Senhora terra dos próprios destinos. A chuva chega e não para até enroscar na lama preta àquelas raízes. Quando a reza toma pousada por cansaço, a lama cobre a cova das plantas e o Manualdo. A catacumba de Madalena reclamava a sua parte daquele crime de mortes. O bugre afunda por cansaço, desliza pela lama — Eu te amo! — não, ainda não está na hora de virar árvore. Aquela voz que lhe jura amor só pode ser da sua preta. A Maria Cariciosa reclama que ele precisa voltar, eles têm muito amor pra trocar um com o outro. Agarrado nas raízes recém-plantadas faz seu renascimento da lama. O rapaz sai do aguaceiro e seu corpo molhado trilha a terra com o suor da lama.
Na manhã, seguida daquela madrugada, os curiosos, não se sabendo vindo de onde, queriam ver o milagre com os próprios olhos. As feridas gangrenadas amanheceram enraizando laranjeira de mais de metro. Abacateiro. Aroeira. A terra parou de sangrar para dentro. A planta fixada pelas raízes, ainda criança de peito, parecia se exibir com seu caule fino e espichado. Amanhecia em idade de adolescente. As folhas verdes brilhavam com os olhos esbugalhados. A magia do contentamento próprio das crianças. A notícia correu das bocas para os ouvidos no piscar dos olhos
—       Então, era isso! — exclama uma voz desconhecida, naquela acumulação de gente no amanhecimento da vida — A terra reclama sua serventia de mãe...
Alguém se agita no meio das gentes — Eu tenho uma laranjeira em tempo de plantar, já tem mais de metro e meio!
—        Eu posso trazer uma muda de araçaeiro!
—        Tenho pé de goiabeira...
Alguém escreveu certo por linhas tortas.

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Leia também: 
17 - Cio da terra 

19 - Vai nascer, Manualdo!

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