sábado, 14 de julho de 2012

Atrás da cruz, se esconde o diabo!

Becos sem saída - O nascimento


II
baitasar
A vida não é feita só pela coincidência dos fatos acontecidos. Ela é medida pelo amontoamento dos jeitos de dizer sim ou não ou talvez, deixar pra lá. Bem, isso é assunto para depois, desenrolado aos pouquinhos. Mas levar a Maria e a criança desejosa de nascer para o hospital de nascimentos era urgência que já se iniciava como uma pequena aventura cheia de preparativos e coincidências.
Logo na largada, uma das rodas da carruagem ficou atolada no valo. O valo fica por dentro da vila, na frente das casas, passa como o rego da terra que se encarrega de levar com a água da chuva: cocos e xixis. Tudo se mistura e vai para o valão dos descarregos da cidade. Água negra e fedida. Nas enchentes do rio, quando a água vinha bater na cintura ou nariz, toda aquela imundice subia junto e entrava pelas portas e janelas. Desde os tempos da construção do dique que isso não acontece, instalaram bombas d’água que empurram a sujeira para o outro lado da represa. Graças ao general piedoso, mas como diz a língua do povo — A boa vontade não supre a obra porque logo ali, atrás da cruz, se esconde o diabo!
E no frigir dos ovos o valo continuava cheio, e fedido, e o Ícaro não dava conta de puxar. Todos se puseram a empurrar onde o cavalo de pobre não era suficiente. Até o vigilante do sono, aquele de pouco menos de metro e meio, se ajeitou e começou a dar encontrões
—        Um, dois, no três!
—        Acho que não vai dar...
Todos param, relaxavam os músculos. O relincho espremido do Ícaro foi aviso de advertência que o animal estava no final das forças. O Manualdo gritou nervoso
—        Merda! Claro que vai!
A Maria Memória retomou o rumo do funcionamento daquela comunidade, um punhado de algemados pelo desprezo da vida. Gente gemida, sem revoltas. Suspiros prolongados de vigário, o desespero lavado dos condenados, o sinal da cruz e uma oração de conforto sempre foram bem-vindos. Retomou o comando aos gritos. A barriga mais redonda que a lua
—        Tudo de novo, no três!
—        To pendurado nas rédeas do Ícaro...
—        No três, no três... todos empurramos e o Ogum puxa!
—        Nós queremos puxar. — eram os gêmeos querendo ajudar com as ordens de comando ao Ícaro. O Manualdo ameaçava perder a fama de índio sossegado. Não queria que o seu nervoso pulasse para os lados da Cariciosa. Maria Memória olhou para os gêmeos e os acarinhou com a certeza que o Ogum dava conta da missão
—        Deixem o pai fazer esse serviço de puxar, ele conhece o bicho pelo olho. — os gêmeos se conformaram de ficar apenas observando, tudo na vida quer tempo e medida. Manualdo fez as últimas verificações
—        Então, tudo certo?
–          E se eu desembarcar, não fica mais fácil?
—        Fica por aí, deitada...
—        Tudo bem. — a jovem mãe de primeira viagem estava assustada para descer e para ficar no seu transporte de emergência. — Já vamos desatolar! — a Cariciosa faz o sinal em cruz e move os lábios. Recomeçaram o ritual daquela vida demorada e comprida, todos em equipe de trabalho. Tem gente maldosa lamentando que o miserável só oferece ajuda ao outro quando a desgraça é muita. Coisa de quem não tem o que falar, porque, na verdade, besta é quem serve de escada para os outros subirem enquanto os pés se deformam pelas toneladas de bagaços esmagados. É isso, se um dia foi gente não tem como saber, depois de usada a pessoa é jogada fora como bagaço espremido, enrugado, vida desfeita em fiapos mirrados, secos e ressabiados. Tudo muito simples: a serventia do pobre ensinado não suja a casa do dono
—        Um, dois, três, agora! — Vamos, empurrem!
—        Puxa daí, Ogum! — Tá saindo, tá saindo...
—        Força, mais um pouquinho! — Não vai dar...
—        Vai sim, empurrem! — Vamos gente, força!
—        Isso, assim... — o jovem Supimpa se aproximou com o cabo do relho nas mãos e enfiou no rabo do Ícaro — Socorro! — Conseguimos, conseguimos! — a carruagem e sua preciosa carga estavam desatoladas. Ícaro empinou pela primeira vez em anos de abatimento e tolerância, tinha os olhos esbugalhados, relinchava com agitação e precisou ser dominado pelas rédeas, Ogum cantarolava canções de ninar, mas foi Supimpa com o cabo do relho esfolado em uma das mãos e a outra com o dedo em zombaria que fez a ameaça ao nervoso — Calma, que te repito a cena de chanchada. — todos escutam a ordem do Manualdo — Vamos para o nascimento desse guri!
—        Socorro! — O que é isto?
—        Aqui embaixo... — Onde? — Aqui! — lá estava o guarda das madrugadas, atolado até o pescoço. Pelo tamanho do coitado, logo já desaparecia na escuridão das águas de embrulhar os estômagos mais resistentes
—        Vão com a minha menina... este eu arranco da lama sozinha! — o destino mudava de lado, era a vez da Memória retribuir ajuda de salvamento do vigia noturno. O mundo é pequeno e redondo, dá voltas e voltas até que a tontura ameaça as cabeças, até se baterem, aí o passado vira presente e o futuro é o passado. O que foi um dia volta a ser de novo e o que será repete o que já foi. Voltas e voltas e o início nunca tem fim, não existe fim por enquanto
—        É... a vida é cheia de altos e baixos, seu noturno... — na ordem da Maria Memória se tocaram no galope do Ícaro, o animal já estava recuperado da importância da missão. Na medida em que se afastavam tiveram o tempo de ver Maria Memória estender um cabo de relho para o afogado, o baixinho ficara mergulhado até na cintura do pescoço com a imundice da borra de gente.

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Leia também: 
19 - Vai nascer, Manualdo! 

21 - Bondade não custa favor

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