Becos sem saída - O nascimento
II
baitasar
A vida
não é feita só pela coincidência dos fatos acontecidos. Ela é medida pelo
amontoamento dos jeitos de dizer sim ou não ou talvez, deixar pra lá. Bem, isso
é assunto para depois, desenrolado aos pouquinhos. Mas levar a Maria e a criança
desejosa de nascer para o hospital de nascimentos era urgência que já se iniciava
como uma pequena aventura cheia de preparativos e coincidências.
Logo na
largada, uma das rodas da carruagem ficou atolada no valo. O valo fica por
dentro da vila, na frente das casas, passa como o rego da terra que se
encarrega de levar com a água da chuva: cocos e xixis. Tudo se mistura e vai para
o valão dos descarregos da cidade. Água negra e fedida. Nas enchentes do rio,
quando a água vinha bater na cintura ou nariz, toda aquela imundice subia junto
e entrava pelas portas e janelas. Desde os tempos da construção do dique que
isso não acontece, instalaram bombas d’água que empurram a sujeira para o outro
lado da represa. Graças ao general piedoso, mas como diz a língua do povo — A
boa vontade não supre a obra porque logo ali, atrás da cruz, se esconde o diabo!
E no
frigir dos ovos o valo continuava cheio, e fedido, e o Ícaro não dava conta de
puxar. Todos se puseram a empurrar onde o cavalo de pobre não era suficiente.
Até o vigilante do sono, aquele de pouco menos de metro e meio, se ajeitou e
começou a dar encontrões
— Um, dois, no três!
— Acho que não vai dar...
Todos param,
relaxavam os músculos. O relincho espremido do Ícaro foi aviso de advertência
que o animal estava no final das forças. O Manualdo gritou nervoso
— Merda! Claro que vai!
A Maria
Memória retomou o rumo do funcionamento daquela comunidade, um punhado de
algemados pelo desprezo da vida. Gente gemida, sem revoltas. Suspiros
prolongados de vigário, o desespero lavado dos condenados, o sinal da cruz e
uma oração de conforto sempre foram bem-vindos. Retomou o comando aos gritos. A
barriga mais redonda que a lua
— Tudo de novo, no três!
— To pendurado nas rédeas do Ícaro...
— No três, no três... todos empurramos e o
Ogum puxa!
— Nós queremos puxar. — eram os gêmeos
querendo ajudar com as ordens de comando ao Ícaro. O Manualdo ameaçava perder a
fama de índio sossegado. Não queria que o seu nervoso pulasse para os lados da
Cariciosa. Maria Memória olhou para os gêmeos e os acarinhou com a certeza que
o Ogum dava conta da missão
— Deixem o pai fazer esse serviço de puxar,
ele conhece o bicho pelo olho. — os gêmeos se conformaram de ficar apenas
observando, tudo na vida quer tempo e medida. Manualdo fez as últimas
verificações
— Então, tudo certo?
– E se eu desembarcar, não fica mais
fácil?
— Fica por aí, deitada...
— Tudo bem. — a jovem mãe de primeira
viagem estava assustada para descer e para ficar no seu transporte de emergência.
— Já vamos desatolar! — a Cariciosa faz o sinal em cruz e move os lábios. Recomeçaram
o ritual daquela vida demorada e comprida, todos em equipe de trabalho. Tem
gente maldosa lamentando que o miserável só oferece ajuda ao outro quando a
desgraça é muita. Coisa de quem não tem o que falar, porque, na verdade, besta
é quem serve de escada para os outros subirem enquanto os pés se deformam pelas
toneladas de bagaços esmagados. É isso, se um dia foi gente não tem como saber,
depois de usada a pessoa é jogada fora como bagaço espremido, enrugado, vida
desfeita em fiapos mirrados, secos e ressabiados. Tudo muito simples: a serventia
do pobre ensinado não suja a casa do dono
— Um, dois, três, agora! — Vamos, empurrem!
— Puxa daí, Ogum! — Tá saindo, tá saindo...
— Força, mais um pouquinho! — Não vai dar...
— Vai sim, empurrem! — Vamos gente, força!
— Isso, assim... — o jovem Supimpa se
aproximou com o cabo do relho nas mãos e enfiou no rabo do Ícaro — Socorro! — Conseguimos,
conseguimos! — a carruagem e sua preciosa carga estavam desatoladas. Ícaro
empinou pela primeira vez em anos de abatimento e tolerância, tinha os olhos
esbugalhados, relinchava com agitação e precisou ser dominado pelas rédeas, Ogum
cantarolava canções de ninar, mas foi Supimpa com o cabo do relho esfolado em
uma das mãos e a outra com o dedo em zombaria que fez a ameaça ao nervoso —
Calma, que te repito a cena de chanchada. — todos escutam a ordem do Manualdo —
Vamos para o nascimento desse guri!
— Socorro! — O que é isto?
— Aqui embaixo... — Onde? — Aqui! — lá
estava o guarda das madrugadas, atolado até o pescoço. Pelo tamanho do coitado,
logo já desaparecia na escuridão das águas de embrulhar os estômagos mais
resistentes
— Vão com a minha menina... este eu
arranco da lama sozinha! — o destino mudava de lado, era a vez da Memória
retribuir ajuda de salvamento do vigia noturno. O mundo é pequeno e redondo, dá
voltas e voltas até que a tontura ameaça as cabeças, até se baterem, aí o
passado vira presente e o futuro é o passado. O que foi um dia volta a ser de
novo e o que será repete o que já foi. Voltas e voltas e o início nunca tem fim,
não existe fim por enquanto
— É... a vida é cheia de altos e baixos,
seu noturno... — na ordem da Maria Memória se tocaram no galope do Ícaro, o
animal já estava recuperado da importância da missão. Na medida em que se afastavam
tiveram o tempo de ver Maria Memória estender um cabo de relho para o afogado, o
baixinho ficara mergulhado até na cintura do pescoço com a imundice da borra de
gente.
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Leia também:
19 - Vai nascer, Manualdo!
21 - Bondade não custa favor
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