sábado, 21 de julho de 2012

Cada um tem o jeito de matar as pulgas

Becos sem saída - Fraldas e despedidas


baitasar
A jovem esposa do Manualdo planeja seu retorno à vida. Passados os dias da quarentena com as carnes do marido, necessidade das suas lembranças de dar à luz, Maria Cariciosa vem sentindo nas fomes o fogo de comer carne. Por enquanto, pequenas labaredas. Línguas de paixão passageiras. Fogueiras rápidas provocam pequena agitação e formigamentos na sola dos pés. O andar pra lá e cá provocam as coxas que se entesam. Os bicos já se apontam endurecidos longe da boca dos famintos, quase foram destruídos, agora ameaçam reclamar as saudades dos carinhos com o bugre atrevido.
Descobre que tem vivido de lembranças, vontades e desejo. Já sofre com a ausência do deleite, quer viver mais para si. Está terminando a viagem de parir, ela está de retorno. O pescoço depressa fica em arrepios. Mas tem receio do cio das carnes. Ora está fraca de ânimo ora está retesada nas vontades de se abrir. Vive o medo de virar sementeira de pequenos brotos famintos. E o aborrecimento cresce junto com a cobiça pelo seu homem
—        O comer e o coçar, o ponto está em começar... — o desamamentar é um trauma para todos. Manualdo não entende muito das faltas de vontades da mulher. E não se sente nas intimidades com Ogum para lhe pedir tais conselhos de matrimônio. Pensa que o relógio das horas está no seu favorecimento. A sua menina há de voltar às vontades de comer além da medida.
Memória faz o desmame caminhando pela casa. Os seus sonhos ficaram do tamanho da sua cozinha, lugar onde acende o fogo, e dos seus quefazeres caseiros. Ninguém faz parir seis filhos e fica impune. Mas na Cariciosa o sonho com um trabalho, um ofício, uma ocupação, lhe põe forças nos ombros e nas pernas. Esses afazeres de doméstica lhe secam a sede de afetos e paixões. Ela tem precisão de outros trabalhos, outros jeitos de viver. Não quer ficar fazendo filho. Esses dois vieram pela falta de jeito e sorte. A mãe é que não se põe a jeito, parece fábrica de criança que tem por feição ser mãe. São seis pedaços dela que andam por aí. Três do pai desaparecido e três do Ogum.
A menina não tem por feitio ser apenas mulher de homem e mãe dos filhos. Não é só um pedaço do outro. Tem na desconfiança que da sina escapa, mas vai existir confusão. No beco não conseguem olho em outros jeitos de arrastar a vida. Mulher toma cuidado de filho e faz força pra conservar marido. Melancólica fortuna da mulher pobre: ter homem de sustento e cuidados. A mãe está sempre repetindo — Mas vá lá, ruim com ele, pior sem ele... — quase nenhuma se atreve levar vida de solteira, disponível para uso de qualquer homem. A fama de puta provoca o desemprego de esposa, é preciso escolher ser uma das duas.
Os filhos das duas mulheres, mãe e filha, vêm superando os passos do desmame. Memória está sem pressa. Tem por costume demorar a mamaria. Cariciosa tem afobação de sobra. Cada uma supera, com a sua disposição de espírito, essa apartação do costume de mamar na teta. Uma no mais absoluto silêncio. Enquanto, a outra, menina de vontades, na mais independente gritaria. Reclamando. Têm coisas em que não há jeito. É preciso enfrentar. Até que chega o dia em que a leitaria secou, assim, de repente. Um grande susto para o bolso do Manualdo — Como assim, amorzinho, não tem mais leite?
—        É isso... a fonte secou.
—        A Avó diz que deu leite no peito até quando tu fez dois anos.
—        Secou, o meu leite secou.
—        Nem mais algumas gotinhas? — Nada!
—        Mas os peitos estão com uma encorpadura tão taluda... — o Manualdo recebe um olhar desviado de danação. Sente sua alma condenada às penas do inferno. Está sob novas ordens. Não deixar esgotar o estoque de leite em pó. Maria Cariciosa se põe a elogiar o tal leite comprado no mercadinho — Esse leite que vem em pó é melhor que o da teta.
—        Quem disse isso? — O Zeca da bodega.
—        Minha preta, isso é mentira. Nada pode ser melhor que o leite da tua teta. — e claro, cada um acode onde mais lhe dói, o Manualdo sabe que junto com o leite da vaca de lata, vem a urgência de comprar chupeta, fraldas e mamadeiras — É preciso dá no jeito de comprar quatro, Manualdo.
—        Mas, minha preta, por que quatro?
—        Tu não perde por esperar a utilidade.
—        Com ou sem utilidade, é uma mamadeira...
—        E se os dois querem mamar? — Uma espera pelo outro ou um aguarda pela outra.
Depois se vê na tentação de substituir as fraldas de pano pelo penico. Não é que o motorista profissional de empilhadeira não aprecie a mudança. Depois dos primeiros dias, haviam combinado que as crianças usariam as fraldas de pano. As descartáveis estão fora da estimação de gastos da jovem família. Essas coisas de rejeitar e descartar são jeitos de gente rica, por ali se reaproveita de tudo. A sua pequena família tem que usar os panos limpos pela água e desamassados pelo ferro de passar roupa — É agora ou as crianças ficam sem as fraldas.
—        Os filhos são a riqueza do pobre. — enquanto Manualdo se deixa cair da cama, antes de um dia cheio de empilhamentos, Maria Cariciosa observa o marido com seu jeito de dorminhoca — Formosura pouco dura.
—        O que foi, minha preta?  — Barriguinha é essa?
—        A empilhadeira, minha preta. E os restos do carregamento da gravidez dos gêmeos. — o amontoador de cargas vai a passos lentos, transformar panos amarrotados em dobras macias depois de passadas a ferro. Sua missão por agora é alisar as fraldas das crianças com o ferro da Avó.
Na casa da frente, a sogra usa ferro de passar aquecido com brasa. Por conta disso, enquanto prepara os panos de aparar coco e xixi, inicia fogo de lenha na fornalha da sogra. O Manualdo pensa que se benze, mas a impaciência arrebenta suas ventas, o pai novo coloca mais graveto que devia para o início do fogo. A fumaça derrama para fora da fornalha por todos os cantos — Meu Deus, quanta fumaça!
—        Tudo bem, gente, errei na dose da lenha.
Ogum e Memória se aproximam tossindo, raspam os olhos com as mãos para enxergar melhor na fumaça. Ainda acham que estão dormindo dentro do sonho um do outro — É desse jeito que a morte leva os bons e deixa os ruins.
—        A morte sempre tem uma desculpa, Avó.
—        E a pressa que é inimiga da perfeição se oferece de pretexto.
Parecem dois fantasmas surgidos em meio ao nevoeiro. Os guris assustados acordam chorando. A única ainda no sono é a menor, a embriagada de leite de teta. Todos esfregam os olhos na tentativa de abrir porta e janelas. Tudo é picumã. A fumarada cheira a fuligem. Ventilam a casa em abanos e assopros. Portas e janelas são abertas. O ar chegando aos poucos. Úmido e gelado. Pequenos tremores de frios lembram as vantagens de voltarem para a cama.
Depois que todos se acomodam no sono, Manualdo mira a pilha de panos. Expõe seu mais profundo suspiro e se mistura nas fraldas. Aplaina, uma a uma, sem pressa, a roupa de garantia das suas crianças. Tão pequenas. Tão lindas. Tanto parecidas com ele e sua Maria — Antes filhos de pobre que escravos de rico. — o monte se avoluma enquanto ele assobia, nasceu para ser pai.
O próximo passo foi substituir as fraldas pelo penico. O convencimento das crianças foi mais complicado. Trocar o certo pelo duvidoso sempre deixa as pessoas, não importa tamanho nem o tempo de vida, sob o descontrole das crises da sobrevivência. Era preciso convencer - aquelas pessoas em miniatura - que as mudanças vêm para melhorar nossas vidas. Pelo menos, no grosso das vezes. O guri fica minutos sentado no penico, sem se desfazer de nada. Nenhum descarrego. Maria Cariciosa deixa na volta do menino os seus brinquedos de paus e panos. Heróis e bandidos. Nada acontece. Na vez da menina, tudo é feito no mais absoluto controle, cada qual conforme seu natural — Marido, fomos feitas sem desafetação, descarregamos sem demoras as coisas do nosso corpo.
—        Minha preta, deixa de bobagem, é apenas cocô no cabungo. — já é tempo de desmamar mãe e filhos.
Maria Cariciosa arruma trabalho de faxina nos arredores do beco da Servidão. Assim, não tem gastos de ir e vir. E nem tentou coisa de melhor serventia ou pagamento. Acostumou com a idéia que não teria melhor colocação, tem os pés no chão, não tem estudos prontos de formatura e diploma. Estava parada nos estudos muito antes de parir. Apenas, sumiu da escola. Ninguém percebeu sua desaparição. Ficou assim, ela por cá e eles por lá. Não tem vontade de voltar pelos meios daquela criançada. Gente maluca. Vivem aos gritos. Sem proveito. Por enquanto, ela não faz uso de berro nem pancada em seus filhos. Reza para não ter necessidade de uso os gritos de mãe, mas da sina ninguém sai alforriado pela própria vontade. Precisa confiança e treino de uso — Minha filha, é de pequeno que se torce o pepino.
—        Mamã, não tem precisão essa coisa de criar filho como se um fosse pepino e a outra uma inocente virgem.
—        Solta às rédeas e não tens mais o que segurar quando começam a crescer. — fixa os olhos da memória nos gêmeos. Será neles que irá confiar, mais que na Memória. Cada uma sabe o que tem e o remédio que lhe faz bem.
E, de todas as mudanças, a mais difícil, para Maria Cariciosa, é sair para o trabalho e deixar as crianças na creche. Uma decisão difícil. Não se sabia com esse medo. Amedronta deixar as crias do parto nas mãos de outras quaisquer. O Manualdo bem que tenta impedir. Argumentos de marido não lhe faltam, mas as palavras de convencimento não lhe vêm à boca. Não existe argumento de autoridade entre eles. No fundo esse dinheirinho da Cariciosa é muito bem-vindo. Melhor ainda, é ter recebido o apoio daquele santo homem. Cariciosa e Manualdo defendem com veemência o tal Cristurano — É um homem preocupado com a sua gente...
—        Sempre perguntando do que precisamos. — achou jeito para que as crianças tivessem as suas vagas na creche da vila. Uma casinha ajeitadinha que junta os curumim da aldeia. As voluntárias da Creche Vó Esperança não são professoras, mas o Cristurano garante que dão conta de cuidar das crianças. Mexeu uns pauzinhos, lá na assistência dos pobres — Esse Cristurano é muito bom.
—        Por que, minha filha?
—        Conseguiu as vagas na creche, mamã.
—        Isso de depender de ajutório não dá certo.
—        A senhora conhece outro jeito dos gêmeos ficarem alimentados, protegidos, limpinhos, enquanto saio para trabalhar?
—        É obrigação de mãe ficar em casa, cuidando das crianças. — o justo e reto não deveria ser um benefício de ajuda dos políticos, mas direito da mulher que precisa trabalhar fora. A Memória sabe que precisam de ajuda, mas não consegue pedir penico, mostrar-se fraca ou vencida — Acorda mamã, a gente precisa desse dinheirinho...
—        E daí? — A senhora pode buscar as crianças... depois do almoço.
—        Não é o dia todo?
—        É muita criança, não tem vaga pra dia inteiro.
—        Ah, o milagroso ajudatório vem pela metade.
—        Tem mais criança que lugar pra cuidar de criança pequena. — e assim, outro desmame se faz. Os gêmeos não têm mais a presença durável da mãe. O pai já se foi para os empilhamentos desde os primeiros choros. Chegou o tempo do desmame da mãe e filhos. É o dia de a Cariciosa levar suas crianças e deixar na creche. Todas as manhãs. Bem cedinho. As claridades do dia ainda estão espreguiçando das vontades da cama. O carrinho para os gêmeos vai todo fechado por cobertor. Foi presente da solidariedade. Os colegas do ganha-pão do esposo sentiram obrigação de ajudar. Discutiram às escondidas. O que acontece com um interessa a todos.
Juntaram dinheiro para o Manualdo comprar o carrinho de bebês. O dinheiro caiu nas mãos da Cariciosa que foi às compras. E fez o milagre de sobrar um tanto para as economias da casa. Comprou carrinho de uma vaga. Não é pequeno, mas é bom para caber um. Não tem importância, ajeitando daqui e dali, lá se vão os dois, embutidos. Amarrotados de panos e com falta de lugar. O berço com rodas mais se parece um tanque de combate na luta da sobrevivência. Lá vão os três, os embutidos com a mãe, tanto faz com frio ou calor. Chuva ou sol. Precisarão aguentar. Precisam aturar.
Está ruim pra disfarçar. A menina esconde as lágrimas. Não há tempo para arrependimentos, cada um tem o jeito de matar as pulgas — Depois da comidinha do almoço, a vovó vem buscar vocês. — mais dois beijos e mais dois abraços, olha para as horas do relógio na parede da portaria de entrada, está ficando justo o tempo de chegar no serviço de arrumadeira
—        Deus proteja vocês e a mim não desampare. — todos fingem um pouquinho. Deixa os gêmeos na portaria. A tia da creche leva as crianças, enquanto a Cariciosa caminha e olha para trás, anda e acena, adianta os passos e manda beijos, marcha e chora, vai devagar e murmura do amor do papai e da mamãe. Queria poder mudar sua fatalidade, mas sabe que não pode. Até que vira e vai a passos virados para frente, firmes. Coração de mãe é terra em que ninguém vai, sai pensando que talvez seja uma mulher de sorte — Quem sabe, quem sabe...
Segue para as faxinas. Ë cedo, mas não se importa mais, sabe que a limpeza para a freguesia começa bem cedo. Bem antes das patroas acordarem. Quando chega ela é acomodada, contada e asseada. A Maria Cariciosa que limpa o pó precisa estar lavada. Desmancha as marcas de dedos, retira o esmalte esfarelado das unhas e a poeira que trás no corpo. Por esse tempo, já deslembrou das crianças. Vai destruindo a imundícia, empurrando com a sua vassoura o pó do chão. Toda manhã precisa demonstrar que foi feita para limpar. Varrer e lavar. Exigências das maneiras de uso da força dos seus braços. Como lhe disse a governanta, outra espécie de capitão-do-mato, esse usa vestido — A cabeça do pensamento pode estar longe, mas a vontade não pode descomparecer do cabo da vassoura.
—        Tenho ganas de fazer tudo direitinho.
—        Na casa do patrão... os que não trabalham não comem. — a Cariciosa precisa fazer a varredura com autoridade de quem sabe onde a sujeira se esconde. Ir atrás e destruir.
Deixa em casa o seu coração com o pão implacável da doçura.

_______________________

Leia também: 
23 - Todos pecam, minha filha 

25 - Avoando

Nenhum comentário:

Postar um comentário