sexta-feira, 13 de julho de 2012

Vai nascer, Manualdo!

Becos sem saída - O nascimento


I
baitasar
Manualdo se deixa sonecar na espreguiçadeira. É a sua usança de majestade, sentado na cadeira do sono enquanto o chimarrão e a chaleira descansam no banco de madeira, no alcance do seu braço espichado. Ele estica as pernas acima dos desconfortos do chão e da desordem dos dias, se perde na calmaria daquele mate cevado sem açúcar. Mate doce é caso de frouxo. Um mate amargo que ele sorve cheio de aconchego e consideração com os gaúchos do pampa. Os gaúchos são missioneiros e sentinelas: os ventos conservadores daquele chão. As gaúchas são a terra, açoitadas pelos ventos dos tempos: o berço afetuoso da vida.
Adora os sábados à tardinha. Fecha os olhos, por momentos, e lá, do mundo dos seus sonhos mais queridos, vem a beleza da sua Maria, pronta para parir... A barriga da sua Cariciosa cresceu em lindeza, seu prenhamento o deixou ainda mais estatelado de dedicação. A alma da sua preta brilhava naquelas formaturas redondas, carnes amanteigadas de agarrar.
Ele sente na imaginação das lembranças os dias de dar à luz aos filhos. Aquelas são memórias que ficarão passando e repassando até sumirem, guardadas suavemente pelas lembranças dos dias mais de perto. Os rebentos do amor descontrolado do bugre e da negra. Jeito de ficar um com o outro que a Memória desdenhava, anunciava sua desconfiança na permanência de tanto esfregamento um no outro.
—        Sou bem capaz de apostar que antes do brotamento o bugre diminui o ímpeto e a guria ficava rolando pelos cantos, mordida dos ciúmes.
—        Não diz assim, minha preta.
—        É um abandono inevitável. — de qualquer das maneiras, todos viveram correrias e medos. Afinal, marinheiros na primeira viagem são mais cuidadosos e colocam a atenção em tudo. Nada pode ficar ao acaso. Mas não puderam evitar a brusquidão do imprevisto, e de qualquer jeito que se olhe o ocorrido, se descobre que não há domingo sem missa, nem segunda-feira sem preguiça quando o assunto é o arrebentamento da bolsa e o nascimento é inevitável.
Nas altas horas da madrugada, Maria Cariciosa começou a dar sinais que o tempo de nascer estava chegando. Desde sempre esteve apaixonado, encantamento de feitiço, mas por estes meses de produção do filho, sentiu o seu maior amor. Não cabia dentro da sua alma que vivia na palma da mão da sua Maria
–          Meu amorzinho, você está linda.
—        Mentira.
—        Você é linda, minha pretinha.
—        To feia, gorda, inchada.
—        Ei, ei... você é a mulher mais linda desse mundo.
—        Faz de conta que eu acredito.
—        A minha pretinha é linda, o meu amor pra toda vida.
—        O que a boca diz, os olhos não repetem.
—        Sou muito apaixonado, minha pretinha... — eu mesmo me incluo em dizer que isso tudo não existe. Esses dois são muito entusiasmados um pelo outro, mais do que é necessário, a vida miserável deles não é de permitir arrebatamento de felicidade e carinho. O normal são os surtos de xingamentos, empurrões e embriaguez, acho que tem muito fingimento, mas, enfim, o amor e a fé nas obras é que se vê
—        Manualdo!
—        O que foi, minha pretinha?
—        Chama a mãe que ta doendo.
—        Onde dói?
—        Vai nascer, Manualdo!
—        Mas a essa hora?
—        E existe hora certa pra nascer? — a ida para o hospital dos nascimentos precisou da carroça das núpcias. Toda preparada para a ocasião. Engraxada nos eixos. Protegida por toldo. Pintada ao esmero. O cavalo bem tratado para não dar vexame de fome. As rodas bem medidas, com o conveniente de ar. As rédeas novinhas. O assento todo estofado. Tudo encilhado e pronto, como qualquer soldado em prontidão de alerta no quartel. O dedo no gatilho e a baioneta calada no fuzil, qualquer movimento suspeito e a bala se dispara sozinha, faminta para abater o inimigo.
O mapa dos desvios na estrada sem pavimentação foi todo decorado. Os buracos no chão, panelas por descaso, não amedrontavam, já era costume a viração sem ajuda de autoridade. As ruas esburacadas tinham menos atenção que os valos ao céu aberto. Estradas de chão batido em via de pobreza só merece atenção em véspera de eleição. Os vileiros sabem que são promessas de mentira, todo mundo sabe, mas toda vez alguém promete e acreditam na fé que daquela vez viram gente de importância. O tempo passa e a estrada só faz ficar pior. Nas horas de apuro é preciso rezas e vencer a caravana de buracos pelo costume. Buraqueira de desprezo.
A carteira do Inamps na vista de todos iria garantir o atendimento de segurado. Por estas horas valia a pena trabalhar com carteira assinada. O Manualdo não cansava de dizer ao Ogum que valia a pena ganhar um pouco menos, assinando a carteira, mas garantir o atendimento de médico à família. O outro apenas resmungava que tinha carnê novo para pagamento — Dívida é dívida, guri...
—        Isso lá, é verdade. — mas aconselha Ogum que leve menos preocupação de comprar — Não esquece que a gente nasce nu e não se enterra de chapéu.
—        Da próxima vez, guri... no próximo filho.
Mas antes do hospital, precisavam pensar como chegar por lá. O Manualdo bem que pensou em fazer chamamento do Cristurano, na noite da véspera, parecia que o bugre estava de adivinhação acertada com as coisas do destino, conspiravam juntos. Bem que tentou convencer a todos que precisavam dos serviços de condução do Cristurano
—        Querida, precisamos chamar o seu Cristurano.
—        E pra quê? — lhe perguntou Maria Memória
—        Usamos o carro que ele põe a disposição da vila...
—        Pra ficar a dever favor pro resto da vida.
—        Minha sogra... se precisar, eu chamo.
—        Não vai haver nenhuma necessidade.
A guria não tinha disposição por mais está discussão de bobagem, para ela que se fosse de qualquer jeito, montada no Ícaro ou no Manualdo, desde que no tempo devido. Não queria se meter em sustos desnecessários

—        Tem certeza? — a Memória conta que já deixaram a carruagem de cama, no melhor dos aprontamentos e no conforto para o jeito de acarretar a Cariciosa — Tem mais aconchego que naquele carrinho com mão de fingimento.
—        Amor, a mãe tem razão, usamos o favor em jeito sem solução.
—        Rapaz, deixa tudo na mão do Ogum.
—        O filho é meu, eu decido o jeito de fazer!
Um pequeno silêncio deixou pra trás a discussão, remar contra a maré era perder tempo. E o tempo, mais a esperteza das pessoas, é que iriam ensinar ao Manualdo que a desgraça de quem pede é ficar sujeito a quem deve. Ogum precisa usar todo sua autoridade de conciliador
—        Meu filho, vamos dar um passeio e combinar a obrigação do roteiro.
Os dois homens saíram a prosear com a cuia do mate e a garrafa da água com quentura frouxa. Memória ficou olhando os dois em conversa enquanto acariciava o arredondamento da própria barriga. Sua sina era estar embarrigada. Pensava que tinha coisa pior acontecendo por aí. É mulher que apanha e que fica sem jeito de dizer não, continua no serviço das vontades do homem. Com ela não tem isso de ser mal-tratada, exige o mínimo de consideração pelos carinhos que oferece. Respeito é bom e é também bonito.
Olhou, por mais uma vez, aqueles dois e admitiu que já bastava, não tinha que se meter em outras complicações além das suas, e ademais, estava sentindo um buraco no estomago. Ela sabe que saco vazio não se para em pé, a Cariciosa e o Manualdo que se entendam, do neto ela cuida depois - Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher... bobagem, se é preciso....


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18 - O afetuoso berço da vida 

20 - Atrás da cruz, se esconde o diabo!

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