Becos sem saída - O nascimento
I
baitasar
Manualdo
se deixa sonecar na espreguiçadeira. É a sua usança de majestade, sentado na
cadeira do sono enquanto o chimarrão e a chaleira descansam no banco de madeira,
no alcance do seu braço espichado. Ele estica as pernas acima dos desconfortos
do chão e da desordem dos dias, se perde na calmaria daquele mate cevado sem
açúcar. Mate doce é caso de frouxo. Um mate amargo que ele sorve cheio de
aconchego e consideração com os gaúchos do pampa. Os gaúchos são missioneiros e
sentinelas: os ventos conservadores daquele chão. As gaúchas são a terra,
açoitadas pelos ventos dos tempos: o berço afetuoso da vida.
Adora os
sábados à tardinha. Fecha os olhos, por momentos, e lá, do mundo dos seus
sonhos mais queridos, vem a beleza da sua Maria, pronta para parir... A barriga
da sua Cariciosa cresceu em lindeza, seu prenhamento o deixou ainda mais estatelado
de dedicação. A alma da sua preta brilhava naquelas formaturas redondas, carnes
amanteigadas de agarrar.
Ele sente
na imaginação das lembranças os dias de dar à luz aos filhos. Aquelas são memórias
que ficarão passando e repassando até sumirem, guardadas suavemente pelas
lembranças dos dias mais de perto. Os rebentos do amor descontrolado do bugre e
da negra. Jeito de ficar um com o outro que a Memória desdenhava, anunciava sua
desconfiança na permanência de tanto esfregamento um no outro.
— Sou bem capaz de apostar que antes do
brotamento o bugre diminui o ímpeto e a guria ficava rolando pelos cantos,
mordida dos ciúmes.
— Não diz assim, minha preta.
— É um abandono inevitável. — de qualquer
das maneiras, todos viveram correrias e medos. Afinal, marinheiros na primeira
viagem são mais cuidadosos e colocam a atenção em tudo. Nada pode ficar
ao acaso. Mas não puderam evitar a brusquidão do imprevisto, e de qualquer
jeito que se olhe o ocorrido, se descobre que não há domingo sem
missa, nem segunda-feira sem preguiça quando o assunto é o arrebentamento da
bolsa e o nascimento é inevitável.
Nas
altas horas da madrugada, Maria Cariciosa começou a dar sinais que o tempo de
nascer estava chegando. Desde sempre esteve apaixonado, encantamento de
feitiço, mas por estes meses de produção do filho, sentiu o seu maior amor. Não
cabia dentro da sua alma que vivia na palma da mão da sua Maria
– Meu amorzinho, você está linda.
— Mentira.
— Você é linda, minha pretinha.
— To feia, gorda, inchada.
— Ei, ei... você é a mulher mais linda
desse mundo.
— Faz de conta que eu acredito.
— A minha pretinha é linda, o meu amor pra
toda vida.
— O que a boca diz, os olhos não repetem.
— Sou muito apaixonado, minha pretinha... —
eu mesmo me incluo em dizer que isso tudo não existe. Esses dois são muito entusiasmados
um pelo outro, mais do que é necessário, a vida miserável deles não é de
permitir arrebatamento de felicidade e carinho. O normal são os surtos de
xingamentos, empurrões e embriaguez, acho que tem muito fingimento, mas, enfim,
o amor e a fé nas obras é que se vê
— Manualdo!
— O que foi, minha pretinha?
— Chama a mãe que ta doendo.
— Onde dói?
— Vai nascer, Manualdo!
— Mas a essa hora?
— E existe hora certa pra nascer? — a ida
para o hospital dos nascimentos precisou da carroça das núpcias. Toda preparada
para a ocasião. Engraxada nos eixos. Protegida por toldo. Pintada ao esmero. O
cavalo bem tratado para não dar vexame de fome. As rodas bem medidas, com o
conveniente de ar. As rédeas novinhas. O assento todo estofado. Tudo encilhado
e pronto, como qualquer soldado em prontidão de alerta no quartel. O dedo no
gatilho e a baioneta calada no fuzil, qualquer movimento suspeito e a bala se
dispara sozinha, faminta para abater o inimigo.
O mapa
dos desvios na estrada sem pavimentação foi todo decorado. Os buracos no chão,
panelas por descaso, não amedrontavam, já era costume a viração sem ajuda de
autoridade. As ruas esburacadas tinham menos atenção que os valos ao céu
aberto. Estradas de chão batido em via de pobreza só merece atenção em véspera
de eleição. Os vileiros sabem que são promessas de mentira, todo mundo sabe,
mas toda vez alguém promete e acreditam na fé que daquela vez viram gente de
importância. O tempo passa e a estrada só faz ficar pior. Nas horas de apuro é
preciso rezas e vencer a caravana de buracos pelo costume. Buraqueira de
desprezo.
A
carteira do Inamps na vista de todos iria garantir o atendimento de segurado.
Por estas horas valia a pena trabalhar com carteira assinada. O Manualdo não
cansava de dizer ao Ogum que valia a pena ganhar um pouco menos, assinando a
carteira, mas garantir o atendimento de médico à família. O outro apenas
resmungava que tinha carnê novo para pagamento — Dívida é dívida, guri...
— Isso lá, é verdade. — mas aconselha Ogum
que leve menos preocupação de comprar — Não esquece que a gente nasce nu e não
se enterra de chapéu.
— Da próxima vez, guri... no próximo
filho.
Mas
antes do hospital, precisavam pensar como chegar por lá. O Manualdo bem que pensou
em fazer chamamento do Cristurano, na noite da véspera, parecia que o bugre
estava de adivinhação acertada com as coisas do destino, conspiravam juntos.
Bem que tentou convencer a todos que precisavam dos serviços de condução do
Cristurano
— Querida, precisamos chamar o seu
Cristurano.
— E pra quê? — lhe perguntou Maria Memória
— Usamos o carro que ele põe a disposição
da vila...
— Pra ficar a dever favor pro resto da
vida.
— Minha sogra... se precisar, eu chamo.
— Não vai haver nenhuma necessidade.
A guria
não tinha disposição por mais está discussão de bobagem, para ela
que se fosse de qualquer jeito, montada no Ícaro ou no Manualdo, desde que no
tempo devido. Não queria se meter em sustos desnecessários
— Tem certeza? — a Memória conta que já
deixaram a carruagem de cama, no melhor dos aprontamentos e no conforto para o
jeito de acarretar a Cariciosa — Tem mais aconchego que naquele carrinho com
mão de fingimento.
— Amor, a mãe tem razão, usamos o favor em
jeito sem solução.
— Rapaz, deixa tudo na mão do Ogum.
— O filho é meu, eu decido o jeito de
fazer!
Um
pequeno silêncio deixou pra trás a discussão, remar contra a maré era perder
tempo. E o tempo, mais a esperteza das pessoas, é que iriam ensinar ao Manualdo
que a desgraça de quem pede é ficar sujeito a quem deve. Ogum precisa usar todo
sua autoridade de conciliador
— Meu filho, vamos dar um passeio e
combinar a obrigação do roteiro.
Os dois
homens saíram a prosear com a cuia do mate e a garrafa da água com quentura
frouxa. Memória ficou olhando os dois em conversa enquanto acariciava o arredondamento
da própria barriga. Sua sina era estar embarrigada. Pensava que tinha coisa
pior acontecendo por aí. É mulher que apanha e que fica sem jeito de dizer não,
continua no serviço das vontades do homem. Com ela não tem isso de ser
mal-tratada, exige o mínimo de consideração pelos carinhos que oferece.
Respeito é bom e é também bonito.
Olhou,
por mais uma vez, aqueles dois e admitiu que já bastava, não tinha que se meter
em outras complicações além das suas, e ademais, estava sentindo um buraco no
estomago. Ela sabe que saco vazio não se para em pé, a Cariciosa e o Manualdo
que se entendam, do neto ela cuida depois - Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher... bobagem, se é preciso....
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Leia também:
18 - O afetuoso berço da vida
20 - Atrás da cruz, se esconde o diabo!
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